terça-feira, 12 de novembro de 2013

Xeque-mate


Em O Sétimo Selo, Ingmar Bergman constrói uma parábola meio insólita sobre o sentido da vida em contraponto à certeza da extinção. Ao desafiar a morte para uma partida de xadrez, o cavaleiro nórdico recém-chegado da guerra busca encontrar esse sentido obscuro e ao mesmo tempo adiar o fim iminente. Não é dos meus filmes preferidos, mas essa parábola atulhada de um determinismo profundamente niilista não deixa de ser interessante. Nossa existência é de certo modo uma partida de xadrez que tem a morte como oponente. Sua duração depende da nossa capacidade de improvisação diante do acaso – que pode se traduzir em doenças, acidentes ou assassinatos. Mas, por mais que tentemos a todo custo derrotar o oponente e fugir das ciladas ocultas em cada casa do tabuleiro, o jogo se encerra invariavelmente com o mesmo resultado.


Nessa partida, o mais difícil é sobreviver às ausências infligidas pelo correr das décadas. Aprendemos a suportar os peões que tombam aos montes, o cavalo abatido em pleno salto ou a torre derrubada ali na esquina. Mas outras lacunas nos ferem com gravidade e nos enfraquecem irremediavelmente. Perdemos nossos ícones primordiais e vamos à lona em câmera lenta, enquanto o adversário sorri do outro lado – afinal, ele tem todo o tempo do mundo à sua espera. Eu mesmo perdi um desses ícones de infância há bem pouco tempo, como já havia perdido outros em anos mais remotos. Percebemos, então, que o tabuleiro está ficando vazio, como uma terra devastada pela cinza das horas.

Mas não nos despedimos apenas de pessoas. Com elas, vão-se embora também as referências de um tempo em que a vida parecia mais simples e idílica, por mais difícil que fosse em realidade. Perdemos a inocência, e com ela as certezas e convicções inabaláveis. É  mais ou menos o que disse o espanhol Enrique Vila-Matas no livro Chet Baker Pensa na sua Arte: “Acaso a vida não era melhor quando não tínhamos a menor sombra de dúvida sobre quem éramos? Mas já é difícil que se possa voltar a ser um coração simples, sobretudo quando se conseguiu chegar a saber que o mundo inteiro é denso e estranho, tão estranho que, precisamente, o inalcançável se situa no nosso interior.”

Uma vez, entrevistei o poeta argentino Juan Gelman e ele me disse que uma infância feliz é a pátria mais invulnerável. Um território ao qual podemos voltar sempre que a realidade nos devora. Um reino de Nárnia para além do fundo do armário, onde voltamos a ser onipotentes. Sim, essa pátria permanece, apesar das quedas em sequência que o adversário nos obriga a vivenciar. Mas creio que uma parte dela, seja um muro ou um campanário, acaba se esfacelando com o passar do tempo e se convertendo em um misto de resignação e desespero. É quando descobrimos que o mundo é denso e estranho, como disse Vila-Matas, e somos incapazes de domá-lo.