segunda-feira, 28 de junho de 2010

Amigo é pra essas coisas


Estou lendo um livro de Saul Bellow, chamado Ravelstein, no qual ele recria no terreno da ficção a amizade que cultivou ao longo de décadas com o filósofo Allan Bloom, o Ravelstein do título. Uma amizade marcada pela sinceridade sem amarras, pelo compartilhamento dos pequenos e grandes prazeres da vida e pela afeição mútua e silenciosa. Assim costumam ser as verdadeiras relações de amizade entre homens (e, provavelmente, entre mulheres). Ravelstein e Bellow (Chick no romance) são intelectuais de formação sólida, com bagagem cultural suficiente para que suas tertúlias sejam atraentes não apenas para os dois, mas também para o leitor. Ambos estão na casa dos 70 anos: o primeiro se aproxima a passos largos do fim e o segundo tem plena consciência do que representa viver o ocaso da existência.

Saboroso, o romance me faz lembrar das minhas próprias amizades. Enquanto bebo um agradável vinho chileno e escuto um solo de Coltrane, percebo que gostaria muito de ter um dos meus velhos amigos aqui agora para podermos conversar, ouvir música e beber, não necessariamente nesta ordem. É claro que nossos diálogos não mereceriam ser reproduzidos em livro (embora alguns tenham inspirado certos questionamentos e reflexões presentes neste blog), nem acho que tenhamos essa intenção. Mas uma relação mais próxima com meus amigos – como a de Chick/Bellow e Ravelstein/Bloom – me faz uma falta imensa. Não chegamos ainda à fase crepuscular das nossas vidas, mas, aos 40 anos, já é possível fazer balanços, tecer comentários auto-depreciativos e ridicularizar ou lamentar as nossas escolhas. É possível, também, projetar o que faremos no futuro, de preferência pensando que estaremos juntos sentados numa varanda de apartamento ou numa mesa de bar para questioná-lo ou louvá-lo.

Há algo de único na amizade entre homens que, creio, não pode ser reproduzido na amizade entre um homem e uma mulher. É a cumplicidade silenciosa de quem conhece intimamente os conflitos do outro, num momento da vida em que a competição mútua já foi devidamente mitigada. De quem sabe perfeitamente o que é uma crise no casamento ou o tédio causado por anos seguidos numa mesma profissão. Só um velho amigo sabe compartilhar aquele saco cheio do mundo ou o desejo irrefreável de rever (e se possível reacender) um amor de juventude e acertar as contas com o passado. Só homens falam de futebol, mulheres e bebidas com a autoridade necessária para que a opinião de um seja levada em conta pelo outro (uma afirmação profundamente machista, admito).

A maioria dos meus grandes amigos está longe. Meu melhor amigo é certamente o que vive mais distante, embora nos vejamos com alguma freqüência, quando ele vem ao Brasil. É curioso como nos entendemos com pequenos silêncios ou com frases que dizem muito mais do que os substantivos, artigos e verbos são capazes de expressar. E como a bebida nos une sem que precisemos tomar um porre para explicitar o que sentimos – embora, após a terceira garrafa de vinho, sejamos capazes de edificar reflexões arrebatadoras, fruto das nossas visões de mundo ao mesmo tempo próximas e distantes.

É fato que muitas dessas amizades foram e são essenciais na minha formação. Lembro das muitas madrugadas que jamais acabavam no Puppy, um boteco sagrado cravado no meio da Avenida Paulista, nas quais um mundo se descortinava para mim e onde eu cultivei um número significativo de amigos que permanecem comigo, apesar da distância. Ou de uma noite em que fiquei falando sobre filosofia e literatura com um grande amigo na varanda de uma pousada em Florianópolis, enquanto minha mulher e minha filha dormiam lá dentro e nós acabávamos com os maços de cigarro e com o conteúdo de duas garrafas de vinho e uma de uísque. Ou de uma vez em que mostrei meus poemas recém-escritos para um velho amigo no Extudo, um barzinho que abrigava a boemia baiana nos anos 90. Boas lembranças. Mas agora estou sozinho em casa, numa noite de segunda-feira, bebendo um vinho chileno, ouvindo um solo de Coltrane, e não tenho com quem conversar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ausência


“- Uma velha pergunta : o senhor escreve para fugir da morte?

- Não, porque ninguém foge da morte. É uma ilusão. O que pode acontecer é pensarmos – e devo ter pensado – que se escreve porque não se quer morrer. Parte-se do princípio de que a obra vai ficar, não se sabe por quanto tempo. Hoje, não sou tão ambicioso. Eu me limito a dizer que escrevo para tentar compreender as coisas.”

José Saramago, em entrevista a Geneton Moraes Neto.

***

Não sei se devemos lamentar a morte de alguém que conseguiu viver 87 anos. Afinal, é um tempo razoavelmente longo para um ser humano aproveitar a dor e a delícia de ser o que é, antes de se entregar definitivamente à inconsciência. Estou falando uma grande bobagem, claro, pois mesmo a idade da Terra seria insuficiente para vivermos em plenitude o que o ato de existir nos oferece. Mas talvez seja uma forma inexata de dizer que, mais do que a perda do homem, a ausência de José Saramago no mundo representa a perda de um tipo muito peculiar de consciência, de um humanismo ferrenho, de uma exaustiva e inútil necessidade de compreender a própria existência. Saramago viveu muito, é certo, mas mesmo assim nos sentiremos órfãos precoces. Faltará a estatura dos seus pontos de vista, o sólido alicerce das suas idéias e até mesmo a sua teimosia em defender um modelo político-econômico fracassado.

Quase não li seus livros. Gostei muito de Ensaio sobre a Cegueira, mas de resto esbarrei no seu “português de Portugal” e nos temas pouco atrativos dos seus romances. Mas aprecio muito seus textos não ficcionais, suas opiniões, suas entrevistas, seu desencanto. Do seu Everest particular, Saramago via um mundo desigual ao extremo, estúpido, brutalizado, em vias de se dissipar. Deixou esse mundo sem uma resposta satisfatória para seus questionamentos – mas, nesse caso, nem mesmo outros 87 anos seriam suficientes para encontrá-la.

***

“A pergunta que não consigo responder é muito simples: para quê? Para que tudo isso? Vou morrer sem encontrar a resposta. Creio que ninguém nunca encontrou.”


quinta-feira, 17 de junho de 2010

Futuro do presente


A internet é tão nova e tão intrinsecamente ligada aos conceitos de modernidade e tecnologia que não conseguimos imaginá-la como um repositório de antiguidades. Um museu de palavras, imagens, sons e sentimentos, no qual é possível encontrar tudo que foi produzido pela humanidade ao longo de anos, décadas e séculos. Pensando retrospectivamente, do futuro até os dias atuais, será que tudo que circula hoje pela rede permanecerá acessível daqui a 200 anos? Não deixa de ser curioso imaginar nossos textos plenamente vivos quando nós – eu, você e os seis bilhões de habitantes do planeta, sem exceção – já tivermos alcançado a condição de pó. Se isso realmente acontecer, o sonho de quase todos os escritores – de fazer com que a própria obra sobreviva ao fim físico – vai ser enfim realizado. Se hoje lemos Shakespeare, Cervantes ou mesmo Homero e Platão é porque as gerações posteriores perpetuaram o seu legado. Já os menos afortunados só podem se tornar conhecidos de novos leitores se um exemplar mofado encontrado num sebo deixar enfim a prateleira para cair nas mãos de algum desavisado. A situação é ainda mais dramática para os que jamais foram publicados: a papelada sai das gavetas direto para o lixo, e daí para o esquecimento sem retorno. Um mundo que se acaba.

Hoje, a internet permite que qualquer escritor tenha suas gavetas virtuais devassadas por leitores desconhecidos. Basta que aconteça uma conjunção de fatores não tão improváveis, como uma busca num site de pesquisa ou um link passado via e-mail ou Twitter. E, no futuro, é bem provável que esses pensamentos quase anônimos espalhados por blogs, redes sociais e outras ferramentas digitais permaneçam flutuando num purgatório virtual, até que uma palavra-chave inocentemente digitada no Google (haverá Google?) os resgate do limbo, levando o internauta a uma viagem ao passado, rumo à nossa página. Ele certamente estranhará o projeto gráfico antiquado, as palavras escritas num idioma só na aparência semelhante ao seu, as idéias de sentido confuso e os temas anacrônicos.

A questão é: haverá algum tipo de epifania, como acontece quando nos deparamos hoje com uma reflexão escrita dois mil anos atrás por um filósofo grego? Vai depender, é claro, da qualidade do que deixarmos escrito para essa posteridade improvável. Imagino num futuro longínquo um curioso fuçando o meu humilde blog, e de certa forma se relacionando com o meu jeito de pensar e ver o mundo. Um mundo completamente diferente do dele. Que tipo de sentimento nutrirá pelas palavras que escrevo hoje aqui? Haverá alguma identificação, algum elo capaz de superar a indiferença, o tempo e a distância? Que ele, dois séculos depois, responda a esses questionamentos postando um comentário logo aí abaixo. Infelizmente, eu não poderei responder.

domingo, 13 de junho de 2010

A importância do caos


Num universo cada vez mais conservador e politicamente correto como o do futebol, a presença de Diego Maradona na Copa do Mundo merece ser louvada. Gosto de ouvi-lo dizer que seus jogadores poderão praticar sexo e beber vinho nos dias de folga da seleção argentina. Gosto de vê-lo cobrar faltas com perfeição e em seguida acender um charuto para curtir os últimos momentos do treino, já com o dia indo embora. Sua anarquia extemporânea (não há nada mais anacrônico do que um Che Guevara tatuado no braço) representa a agonia de uma era. No futebol pragmático e irremediavelmente chato de hoje, Maradona e seu time personificam um sopro derradeiro de invenção, uma manifestação caótica do imponderável, uma desordem genial. Vendo a seleção argentina jogar, eu me deparo com artistas, não com atletas. Capazes de executar lançamentos longos e precisos, trocas de passes em altíssima velocidade e finalizações surpreendentes. E, fora do campo, um maestro desajeitado e histriônico, a nos lembrar de um tempo em que os gênios decidiam uma Copa, não os esquemas táticos ou o comprometimento dos atletas com seu país. Não deixa de ser sintomático que Maradona tenha reaparecido justamente num torneio realizado na África, onde o improvável desafia o pragmatismo para o bem (as torcidas alegres e barulhentas ou a linda dança dos jogadores sul-africanos antes de entrarem em campo) ou para o mal (os feridos num amistoso desastroso entre Nigéria e Coréia do Norte).

Nesse sentido, não há nada mais oposto do que Argentina e Brasil. As diferenças entre Maradona e Dunga vão muito além da já gasta dicotomia Apolo versus Dionísio. São formas de encarar o mundo que se confrontam em meio ao enxame de abelhas promovido pelas vuvuzelas. Com seu ufanismo tolo, sua ótica tosca e seus jogadores medíocres (com raras exceções), o treinador brasileiro lembra um general de comédias antigas, desses que acabam sendo invariavelmente ludibriados por seus subordinados. Não importa quem seja o campeão: se Brasil, Argentina (o meu preferido) ou um terceiro país à sua escolha. Afinal, reflito aqui muito menos sobre futebol e muito mais sobre o comportamento humano. Sobre ordem e caos, e em como ambos são necessários em nossas vidas, desde que na medida certa.

sábado, 5 de junho de 2010

Um cara decente



“E pouco depois de dar esse telefonema, ele estava de pé no escritório e sentiu uma tontura. ‘Tô ficando tonto’, disse. Aí ele se sentou numa cadeira, e eu vi os olhos dele ficarem vazios. O olhar dele ficou vazio. Ele tinha morrido. Mas eu pensei que ainda desse para fazer alguma coisa, saí de carro correndo para a casa de um cardiologista que morava ali perto. Não encontrei o cardiologista, voltei pra casa e ele já estava morto. Foi terrível viver com essa imagem de ver o pai morrer, ver a morte tomar conta de uma pessoa. Ficar com os olhos vazios assim.”


Luis Fernando Verissimo, em Conversa sobre o Tempo.


***


Não pude ver os olhos de meu pai ficarem vazios. Quando cheguei esbaforido do trabalho com meu irmão, ele estava lá na cama enquanto os paramédicos tentavam reanimá-lo. Mas não havia mais vida naqueles olhos nem naquele corpo. Lembro que me senti mal, como se o coração fosse transbordar de sangue, e corri ao banheiro para chorar. Minha mãe veio em seguida e me deu um comprimido para que me acalmasse. A partir daí, fiquei em suspensão. Deixei de sentir tristeza e um alheamento incômodo me invadiu, só me abandonando uns dois dias depois do enterro. Os paramédicos terminaram o serviço e deram início aos trâmites burocráticos. Após um curto tempo, sentei ao lado de meu pai e fechei seus olhos apagados. Restava muito pouco da pessoa que sete meses antes fora diagnosticada com um câncer no pulmão com metástase no cérebro. Os cabelos surpreendentemente pretos e vastos para a idade tinham caído após as sessões de quimioterapia e – como disse minha mãe – ele foi se apagando aos poucos, como uma vela. Meu pai deixou a vida com dignidade, em sua cama, como no verso de Lorca.


Passados quase oito anos, é uma saudade que não cessa. E faz com que me apegue ainda mais a minha mãe, pelo temor de perder a outra parte do meu alicerce. Hoje não posso compartilhar com ele minhas impressões sobre os jogos do Flamengo. Não posso compartilhar os vinhos que compro e bebo sozinho na varanda lamentando a sua ausência. Não posso compartilhar os livros que leio, os discos que escuto, os filmes que assisto. Não posso compartilhar as viagens que faço de vez em quando com a minha (e sua) família, nas quais sua presença seria louvada. Enfim, faço minhas as palavras de Verissimo, ao final de Conversa sobre o Tempo, quando ele diz: “Eu gostaria de ser lembrado como um cara decente. Um cara decente como foi meu pai, decente em todos os sentidos da palavra”. Acho que é por aí.