sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O oceano que nos habita


Não lembro quem disse que "é possível resgatar um homem da escória, mas a escória estará sempre dentro dele". Recordei dessa frase ao assistir a um vídeo que mostra imagens da orca Tilikum e de sua domadora Dawn Brancheau, minutos antes do ataque fatal desferido pela baleia, em meio a uma apresentação no parque aquático Sea World, nos Estados Unidos. São imagens ternas, acima de tudo. O tratamento amoroso da domadora e a forma dócil com que o animal o recebe não prenunciam nada, como se estivéssemos diante de um elefante seduzido por uma criança. Mas a natureza não permite divagações desse tipo, e é claro que a imensidão do oceano estará sempre dentro de Tilikum, assim como a selva estará sempre dentro de um leão, ainda que nasçam em cativeiro. Ainda que seus pais, avós e tataravôs tenham nascido em cativeiro.
Assim também somos nós. Carregamos nossas escórias particulares mundo afora, anos seguidos, encerrando em um cofre imaginário nossas convicções, traumas, preconceitos, vergonhas, frustrações, perdas e remorsos, ainda que nada disso seja verbalizado ou esteja devidamente deglutido e assimilado pelo organismo. Afinal, ainda somos seres primitivos, herdeiros do temor ancestral da escuridão. Um dia, porém, o cofre se escancara, deixando à mostra aquilo que nos habita. Sylvia Plath escreveu: “Sou habitada por um grito”. E continuou: “Tenho pavor dessa coisa escura
que dorme em mim;
Todo o dia sinto seu retorcer emplumado, sua índole ruim”. No caso dela, o grito venceu, deixando atrás de si um estrago e tanto.
O fato é que um dia, quando menos se espera, viramos baleia. Algo em nós se rompe, o oceano se liberta e nos tornamos assassinos ou suicidas – ou as duas coisas. Como Steiner, aquele personagem de A Doce Vida que tinha um Mediterrâneo represado dentro de si. Culto, bem-sucedido e com uma bela família, Steiner era uma espécie de reserva moral para Marcello, personagem de Marcello Mastroianni, que ambicionava abandonar a carreira de repórter de celebridades para se tornar escritor. Um dia, Steiner deu cabo de si mesmo e de seus filhos, esfacelando seu sagrado paraíso particular. Como explicar? Da mesma forma que com Tilikum, o golpe fatal é um átimo de fúria, como um raio sem sentido, precedido e seguido de calmaria.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Estorvo desnecessário


Não interessa qual o ganho econômico da aproximação do governo brasileiro com o Irã de Mahmoud Ahmadinejad. Não importa se o Brasil pretende se posicionar de forma definitiva como protagonista da nova geopolítica mundial nessa época tão sombria, e a partir desse desejo – legítimo e até necessário – começar a marcar posição, como fez anteriormente em Honduras, primeiro com inteligência e depois de forma equivocada. Enfim, não se fala, aqui, de acordos vantajosos ou de escolhas estratégicas. Mas sim de consciência – incluindo a minha, a sua e a de qualquer outra pessoa que se envergonhe de ver seu país dialogando com a barbárie. Pois o fato é que existe algo de muito grave em apertar a mão de um homicida e travar com ele diálogos amistosos, como se fosse uma conversa descontraída no sofá com um parente que há muito não se vê. Aconselhado ou não por Celso Amorim, Lula comete esse equívoco com objetivos que não são meramente pragmáticos, afinal há parceiros comerciais muito mais atraentes para nós que o Irã e causas menos espinhosas para meter a colher. Qual o seu objetivo então? É possível que, assim como se aproximou de Hugo Chávez (do qual agora se afasta timidamente), o presidente brasileiro enxergue no similar iraniano um ícone de uma nova esquerda, mais sintonizada com a urgência do século 21 e com a mudança de peças no tabuleiro do planeta. Mas…

Mas que resquício de esquerda pode ser encontrado num homem e num regime que negam veementemente o Holocausto cometido pela Alemanha nazista contra o povo judeu e pregam a eliminação de Israel do mapa? Ao tentar reescrever a história a qualquer custo, limando a maior tragédia já cometida pelo homem contra si mesmo, Ahmadinejad faz pilhéria do sofrimento alheio e compactua com o mais estúpido, insano e perverso líder que a direita já produziu, e olhe que não faltam candidatos ao título. Se há algo no presidente iraniano que o aproxima da esquerda é seu esforço tirânico de executar opositores, reprimir o livre-arbítrio e varrer do seu território empobrecido qualquer espécie de contestação. Ou seja, Ahmadinejad é feito de matérias-primas tão semelhantes e ao mesmo tempo tão distintas quanto Hitler e Stálin, e como eles é uma escória humana, estulta e belicista, situada nos dois extremos do pensamento político.

Ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 2003, a iraniana Shirin Ebadi foi enfática ao falar da aproximação entre Lula e Ahmadinejad numa entrevista ao Estado, publicada em janeiro: “Será que o povo brasileiro sabe o que o governo iraniano faz nas ruas ou às escondidas? Será que não se pergunta por que seu governo despreza as violações dos direitos humanos no Irã? Me entristeceu muito ver o presidente Lula reconhecer publicamente a vitória de Ahmadinejad para um segundo mandato tão rapidamente. Como pôde fazer isso? Como seu presidente pode se unir a um governo que tortura e mata seus estudantes e jovens, sua gente nas prisões, oponentes e minorias? Lula não deveria fazer amizade com governos criminosos”. É um apelo sem meias-palavras, feito por uma mulher que sente cotidianamente na pele os efeitos colaterais de se opor ao presidente iraniano.

Mais: esse apelo deixa entrever o caminho que deveria ser trilhado pela política externa brasileira. Afinal, uma nação que se candidata a ser algo mais que um opaco coadjuvante na superaquecida máquina do mundo precisa aprender a apontar as feridas, sejam elas próprias ou alheias. Condenar, por exemplo, o ímpeto armamentista dos americanos, israelenses e russos ou a violação dos direitos humanos na China, Venezuela, Paquistão e, claro, Brasil. No caso do Irã, a situação é ainda mais grave por se tratar de um país que ambiciona a bomba nuclear. Aproximar-se hoje de Ahmadinejad pode significar amanhã uma incômoda cumplicidade com um novo holocausto. Nós, brasileiros, não merecemos carregar mais esse estorvo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Brincadeira de amigos


Tenho a impressão de que os críticos levam Quentin Tarantino mais a sério do que ele mesmo. Seus filmes me parecem antes de tudo uma diversão inconseqüente, como um porre juvenil, ainda que uma diversão esteticamente vigorosa, calcada na reciclagem de lixo pop e nas releituras (ou paródias) de clássicos obscuros e cults de terror B. Levá-lo a sério é conceder a ele um mérito que não possui. A exceção, claro, é Pulp Fiction, no qual despontava a centelha de um autor capaz de criar diálogos inventivos e torcer a narrativa a ponto de deixá-la semelhante a um círculo. Depois dele, tudo que o cineasta produziu é exuberante, fantasioso, muitas vezes agradável e divertido, mas é só espremer um pouco e o que temos é o vazio.

Bastardos Inglórios flerta com o vazio o tempo todo, como Kill Bill e Jackie Brown também flertavam. Mas há, neste último, um verniz de sofisticação que tenta evocar uma aura de seriedade, como se Tarantino tivesse enfim abandonado a adolescência para colher os louros da maturidade. E existem momentos em que se vislumbra um cinema de adulto: a seqüência inicial é estupenda, com uma tensão latente que desemboca no mais cruel dos desfechos. Faz a gente pensar: rapaz, ele chegou lá? Mas aos poucos esse alumbramento cede lugar ao enfado. Não sou rato de videoclube para identificar cada tributo que o cineasta presta a seus mestres, e não acho que um filme deve se limitar a ser um rol de referências, uma brincadeira de amigos recheada de piadinhas que só os entendidos conseguem pescar.

O que vejo, com certo fastio, é mais do mesmo: a violência estilizada gasta pelo uso recorrente, temperada com diálogos espertos ou pretensamente espertos e enquadramentos que impressionam muito mas não expressam nada. Ao propor um final alternativo para a Segunda Guerra Mundial, Tarantino assume de vez a sua veia paródica, deixando claro que estamos assistindo a uma comédia de guerra, com personagens caricatos e piadinhas infames. Nada contra. Afinal, não foram poucas as comédias do gênero que assistimos durante décadas na Sessão da Tarde. Mas por que então tratar Bastardos Inglórios como uma obra maior de um cineasta idem? Não há nela nada que a aproxime de grandes filmes de guerra já feitos, como Glória Feita de Sangue, Apocalipse Now ou Além da Linha Vermelha, para ficar em três filmes que me vêm à mente espontaneamente. Sua narrativa banal mas cheia de estilo é um prato cheio para adolescentes, mas me deixou com fome. O massacre final, com closes do rosto de Hitler sendo aos poucos deformado pelas balas de metralhadora, soa como ódio em estado bruto, primário e sem sentido. Isso é sinal de maturidade?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Descendo a montanha


Nunca a passagem do tempo se manifestou de forma tão cristalina para mim quanto nos dias que antecederam a chegada dos meus 40 anos, completados hoje. É como se o meu corpo tivesse tomado consciência do que essa idade representa – socialmente, culturalmente e fisicamente – e resolvesse então mandar o seu cartão de visitas. Ao tirar a pressão durante um exame de rotina, tomei conhecimento de um malévolo plano de ataque preparado pelo meu corpo contra mim. Minha pressão estava altíssima (em fatídicos 16 x 11) sem que eu sentisse qualquer sintoma, e é bem possível que, caso não tivesse descoberto a tempo, o exército inimigo teria conseguido desferir o ataque na forma de um derrame, um infarto ou um aneurisma.

Fiquei assustado. E pela primeira vez me dei conta de que meu corpo não é necessariamente um aliado nesta minha breve trajetória pelo planeta. Ele pode, sim, acabar comigo de uma hora para outra. Agora mesmo, neste momento em que escrevo, algumas células podem estar conspirando para formar um carcinoma em algum órgão vital. Ou um pelotão de placas de gordura pode estar se preparando para encarar o front das paredes de minhas artérias. Enfim, sou habitado por uma leva de traidores. Só espero conseguir ir vencendo uma por uma as batalhas futuras que me esperam a partir de agora, quando começo a descer lentamente a montanha, como um soldado em retirada. A guerra, é claro, sei que não vou vencer, mas aí seria querer demais. O importante é que cada vitória será comemorada com um belo vinho, muitos carinhos e alguns passeios tranqüilos por lugares que gosto. Afinal, o meu hedonismo, ao contrário da minha pressão, continua intacto.

***

“Agora que a velhice começa, preciso aprender com o vinho a melhorar envelhecendo e, sobretudo, a escapar do terrível perigo de, envelhecendo, virar vinagre.”

Dom Helder Câmara