quarta-feira, 30 de abril de 2014


“Na maturidade da vida, você espera um certo descanso, não é? Você acha que merece isso. Eu, pelo menos, achava. Mas aí você começa a entender que premiar a virtude não compete à vida. Também, quando você é jovem, acha que pode prever as prováveis dores e tristezas que a velhice poderá trazer. Você imagina a si mesmo solitário, divorciado, viúvo, imagina os filhos crescendo e indo embora, os amigos morrendo. Você imagina a perda de status, a perda do desejo – e de ser desejado. Você pode até pensar na sua própria morte, que, por mais que esteja acompanhado, só poderá enfrentar sozinho. Mas tudo isso é olhando à frente. O que você não consegue fazer é olhar à frente e depois imaginar a si mesmo olhando para trás daquele ponto no futuro. Aprendendo as novas emoções que o tempo traz. Descobrindo, por exemplo, que à medida que as testemunhas da sua vida vão diminuindo, existe menos confirmação, e portanto menos certeza, a respeito do que você é ou foi. Mesmo que você tenha registrado tudo assiduamente – em palavras, sons, imagens – você pode descobrir que se dedicou à forma errada de registro.”

Julian Barnes, em O Sentido de um Fim.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Cem anos de fascínio



Macondo está órfã. José Arcádio, Úrsula, Rebeca, Remédios, Melquíades e todos os Aurelianos Buendía, incluindo aquele primeiro, que o pai levou para conhecer o gelo numa tarde remota, também estão órfãos. Florentino Ariza e Fermina Daza estão órfãos. O senhor muito velho com umas asas enormes está órfão, assim como Estevão, o afogado mais bonito do mundo. Assim como a moça que deixou um rastro de sangue na neve antes de morrer. Ou como Erendira e sua avó desalmada, ou como o general em seu labirinto, o patriarca em seu outono, o coronel a quem ninguém escreve. Assim como o sábio triste que desejou uma noite de amor com uma adolescente virgem no dia dos seus 90 anos. Assim como eu.

Gabo nos deixou a todos órfãos porque foi um pai que nos mostrou como ninguém o caminho a ser seguido. Um pai que aprendemos a amar à medida que o conhecíamos, à medida que desbravávamos lentamente (ou melhor: avidamente) o seu infinito particular. O que dizer do fascínio que senti aos 15 anos, quando tomei um livro seu pelas mãos e me embrenhei nos amores contrariados de O Amor nos Tempos do Cólera? E o que dizer quando, logo em seguida, ainda impregnado pelo fascínio daquela história eterna, ele me levou pela mão e me mostrou o universo de desencanto e fantasia em estado bruto que encontrei em Cem Anos de Solidão? Quantos alumbramentos, quantas descobertas, quanto delírio silencioso.

Li muitos livros seus ao longo dos meus primeiros vinte anos. Depois, por já ter lido quase tudo, demorei a voltar a ele. Não importa. Seu lugar está garantido aqui, no monstro que se debate no lado esquerdo do meu peito. Há duas semanas, reli Memória de Minhas Putas Tristes, seu pequeno, singelo e derradeiro romance. E senti uma pontinha daquele sentimento avassalador que seus romances provocavam no jovem que fui. No homem que sou. Era um velhinho querido, amado, como são os velhos por quem devotamos doses maciças de afeto. Fique em paz, Gabo. Meu querido Gabo. Nós, que pertencemos às estirpes condenadas a cem anos de fascínio, teremos muitas outras oportunidades sobre a Terra de reencontrar você. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Depois do pesadelo




Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da ditadura militar, iniciada há exatos 50 anos, se concentram no seu fim. Sou testemunha dos estertores da barbárie institucionalizada, que foi embora mais ou menos como começou: meio como farsa e como prenúncio de tempos difíceis. Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas. 

Um ano antes, creio, escrevi uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica enaltecia a capacidade do general Figueiredo em conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, obviamente inspirada na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo: “Ok, você venceu, batata frita”. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado. Fui alçado às incertezas da adolescência nesse ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e notícias distantes sobre o governo Geisel. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto. 

A ditadura acabou e aos 15 anos eu descortinei o mundo real. Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E, principalmente, me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas horríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara. 

Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens, um caso que até hoje me dilacera. Já Feliz Ano Novo me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso. A usar camisas com estampa de Che Guevara. A escrever poemas engajados horrorosos. A descobrir ecos do nosso sofrimento no Chile, na Argentina, no Uruguai. Era apenas um filho da revolução, um tímido e sonhador integrante da geração Coca-Cola, menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que ele me oferecia.