sábado, 26 de março de 2011

A ruína das nossas convicções



Fitzgerald escreveu que aos 45 anos nossas convicções são cavernas em que nos escondemos. Não falta muito para chegar lá, mas prefiro enxergar minhas convicções como colinas de onde contemplo o horizonte, para usar a mesma analogia de Scott ao se referir à visão de mundo que temos aos 18 anos. Afinal, não gosto de opiniões cristalizadas. São como fósseis que permanecem milênios imersos no esquecimento, à espera de um arqueólogo que revele seus segredos, se é que realmente há algum segredo a ser revelado.

Escrevo isso porque tinha uma opinião sedimentada sobre a intervenção das forças da ONU na Líbia, onde o ditador Muammar Gaddafi está massacrando uma insurgência que luta pelo fim do seu regime, em vigor desde antes do meu nascimento. Gaddafi não só mata rebeldes. Mata civis também. Daí ser difícil aceitar, sob qualquer justificativa, o sacrifício de homens, mulheres e crianças em nome de uma causa maior, a tal história com H maiúsculo que aprendemos no segundo grau, mas que nunca compreendemos em sua totalidade. Penso – continuo pensando – que as Nações Unidas tomaram a decisão certa ao intervir no país e bombardear a força militar de Gaddafi. Desde, é claro, que os mesmos civis não acabem virando alvos das bombas (um desejo ingênuo, reconheço).

O fato é que o mundo real não comporta maniqueísmos. Como diria Belchior, a vida realmente é diferente, quer dizer: a vida é muito pior. Impossível enxergar vilões ou mocinhos nesse terreno pantanoso no qual se movem grandes potências, repúblicas de bananas e, no meio do bombardeio, nós, os elementos anônimos dessa história cheia de som e fúria e sem sentido algum. Tenho lido nas redes sociais críticas à intervenção na Líbia. Mas elas estão impregnadas de uma retórica fossilizada, dogmática, que põe a culpa invariavelmente “no império norte-americano”, reavivando todo esse blá-blá-blá esquerdista que todos sabemos no que deu. Mas aí vem Luis Fernando Verissimo – também ele um esquerdista convicto, mas não um esquerdista míope – escrever sobre o asssunto, só que utilizando argumentos, contextualização histórica e, claro, um poder de persuasão que apenas os grandes escritores possuem. Com sua lucidez e sensibilidade, Verissimo deixa entrever a capacidade que nós, seres humanos, temos de aprender, acumular informação e formar aos poucos uma massa crítica. Tudo depende dos mestres que escolhemos.

Em sua coluna na última quinta-feira, ele afirmou: “Tudo se repete na Líbia, a começar pela hipocrisia da indignação seletiva: alguns tiranos antes tolerados, quando não abertamente apoiados como o Saddam, passam a ser inaceitáveis e atacáveis enquanto o porrete poupa outros, que ainda servem. Depois virão as baixas civis denunciadas por um lado e negadas pelo outro, as fotos de crianças mutiladas, as discussões sobre a eficiência ou não dos ataques aéreos "cirúrgicos", etc. E teremos mais um exemplo dessa contribuição moderna às táticas de guerra, a estranha doutrina do bombardeio humanitário”.

A questão levantada por Verissimo, acima de todas as outras, é: Gaddafi não teria durado tanto (e não sabemos o quanto ainda vai durar) se não tivesse sido poupado por tanto tempo pelos mesmos países que hoje condenam sua conduta e investem contra ela. É a tal da indignação seletiva. Agora que virou apenas um tipo exótico e meio desvairado, o ditador líbio torna-se descartável, enquanto outros tipos semelhantes permanecem à sombra, fazendo das suas na Arábia Saudita, no Zimbábue, na Guiné Equatorial, no Sudão, no Uzbequistão ou em qualquer outra nação tiranizada por figuras desprezíveis. Essa carapuça cabe também na cabeça dos órfãos do marxismo-leninismo, que não veem problema na permanência de revolucionários vitalícios como Fidel Castro e Kim Jong-Il.

Mas, dito tudo isso, o que fazer? Que medida tomar quando não há mais negociações viáveis e os mortos começam a se decompor em larga escala no território alheio? Não intervir? Deixar a população líbia ser exterminada por seu próprio líder? A história recente ensina que a omissão em muitos casos resultou em tragédias até mais devastadoras do que os “bombardeios humanitários” na Líbia. A ONU não fez nada em Ruanda em 1994, e o que se viu foi um dos mais bárbaros genocídios da história, com quase 1 milhão de mortos. O mesmo aconteceu durante a "limpeza étnica" na Bósnia, entre 1992 e 1995, que culminou com o massacre de Srebrenica. E também em muitos outros cantos esquecidos do mundo, com a conivência dos capacetes azuis.

Gaddafi apenas não aceitou o papel de rei morto, rei posto imposto a Hosni Mubarak no Egito e a Zine al Abidine Ben Ali na Tunísia. Está descendo o sarrafo em quem ousa usurpar seu trono indigno e, ao que parece, só pretende sair morto de lá. Que saia. Mas, enquanto Verissimo se foi para mais uma coluna dominical, eu fiquei com a incômoda sensação de que há uma pulga se refestelando atrás da minha orelha. E com a constatação de que o mundo contemporâneo é muito mais complexo do que nos velhos tempos de polarização entre direita e esquerda, capitalismo e comunismo, democracia e ditadura do proletariado.

terça-feira, 15 de março de 2011

Selvagem?


Desde que desceu das árvores, o homem vem percorrendo um caminho que o leva cada vez mais para longe de sua própria origem selvagem. É possível que lá atrás, enquanto se refugiava numa caverna para se abrigar do frio e da escuridão, um homem de Neandertal tenha vislumbrado, ali em frente ao fogo, um futuro melhor para seus tataranetos. Quem sabe até pensou num apartamento confortável, com aquecedor central e cama king size, num prédio com segurança 24 horas, imune a invasores – pelo menos aqueles com presas e garras gigantes. De lá para cá, o homem foi tratando de transformar em realidade essa quimera, e se aglomerou em centenas, depois milhares e depois milhões e bilhões, invadindo quase todos os confins do planeta e compensando a fragilidade física com artefatos de utilidades variadas, do barbeador elétrico às armas de destruição em massa. Enfim, o fato é que chegamos lá.

Mas o curioso é que algumas pessoas escolhem justamente o caminho oposto: um improvável retorno à selva primordial de onde viemos. Em maior ou menor medida, muitos de nós sentimos uma necessidade atávica de primitivismo, de encarnar o arquétipo rousseauniano do bom selvagem, puro e incorruptível. Muitos indivíduos - escritores e artistas aí incluídos, como Thoreau e Gauguin - pregaram essa volta às origens ou a seguiram à risca, por mais complicada que seja a readaptação a um cenário que abandonamos há tanto tempo. Como reaprender a dormir numa caverna, conviver de perto com animais selvagens ou resignar-se com a escuridão absoluta sem um interruptor por perto? Como viver sem remédios para pressão alta, lojas de conveniência ou mesmo uma singela taça de vinho tinto?

Timothy Treadwell foi um desses indivíduos. Ele optou deliberadamente por ignorar os milênios de civilização acumulada em nosso DNA para conviver sem meio termo com o lado selvagem da Terra. Selvagem mesmo: ele foi parar nos confins do Alasca, território onde o homem é quase nada (e mesmo assim faz um estrago danado) e o urso pardo reina como um semideus. A trajetória de Treadwell, interrompida bruscamente, foi reconstituída em O Homem-Urso, documentário de Werner Herzog que assisti no último domingo. Um filme rico em imagens, já que o aventureiro e ativista deixou gravadas horas e mais horas de filmagens em boa qualidade, além do áudio que captou sua morte e a da namorada, atacados por um urso. Não ouvimos, felizmente, essa gravação.

Mas nem por isso O Homem-Urso deixa de ser um testemunho doloroso, movido pelos questionamentos de Herzog, que tenta a todo custo entender as motivações e escolhas de Treadwell, um sujeito meio insano que se diz apaixonado pela vida na selva e defensor dos ursos, com quem jamais desenvolve uma relação mútua de afeição. Daí o próprio Herzog refletir: “O que me assusta em todos os rostos de ursos que ele filmou é que não vejo qualquer parentesco, compreensão, nenhuma piedade. Vejo apenas a esmagadora indiferença da natureza”.

Teatral e histriônico, Treadwell mascara em parte a solidão e a dificuldade de se adaptar a condições tão extremas. Sua via-crúcis voluntária me fez lembrar a vivida pelo jovem Christopher McCandless, que serviu de inspiração para Jon Krakauer escrever o livro Na Natureza Selvagem, transposto para o cinema por Sean Penn, sobre o qual já falei por aqui. Uma busca incessante por um sentido oculto nos confins do mundo, marcada por estoicismo e auto-sacrifício. Mas para quê? Tanto Treadwell quanto McCandless esboçaram argumentos para justificar seus atos, mas o que fica de tudo aquilo quando se sabe que ambos foram embora cedo demais?

Ou talvez não. Treadwell parecia ansiar a morte, sobretudo uma morte violenta, como se ela purgasse o seu desnorteio. Já para McCandless, como escrevi no texto anterior, “morrer solitário no Alasca não era o epílogo esperado por quem sorveu sem meias-medidas o legado dos seus antecessores?”. Tanto um quanto o outro viveram situações-limite por convicção, e não involuntariamente, em função de um acidente de percurso, como o garotão narcisista de 127 Horas ou o Robinson Crusoé moderno vivido por Tom Hanks em Náufrago. Além de tudo, estes que cito agora sobreviveram, o que confere uma moral à história de suas vidas e as dignifica. A verdade de tudo isso é que eu, você ou qualquer outro que não abre mão de um cobertor quentinho no frio ou de um cineminha seguido de um jantar numa sexta-feira à noite jamais vai entender o que se passava ali, no íntimo de Treadwell e de McCandless. Uma necessidade obscura de voltar ao útero da própria espécie. De sentir o medo primordial do frio, do breu e do bafo quente do predador sempre à espreita.

***

“Enquanto observamos os animais em sua alegria de ser, em sua graça e ferocidade, fica mais claro um pensamento: isso não é apenas um vislumbre na natureza selvagem. É um olhar dentro de nós mesmos, da nossa natureza.”

Werner Herzog, em O Homem-Urso 

domingo, 13 de março de 2011

Quadro-negro


Há pouco mais de 10 anos, escrevi para o jornal em que trabalhava uma resenha sobre um livro de fotografias de Robert Capa, o homem que captou como ninguém os grandes conflitos do século 20. E comecei o texto citando o retrato de uma menina num campo de refugiados durante a Guerra Civil Espanhola. Sua expressão de alheamento contrastava com a realidade que vivenciava naquele momento: ela e sua família fugiam dos bombardeios do exército franquista, que já havia matado vários civis naquele 15 de janeiro de 1939. Era a grande história se sobrepondo às pequenas coisas da vida. Mas, como escrevi, o que mais me comoveu foi o caráter anônimo daquela garota eternizada por Capa: "Quem é essa menina? Ela sobreviveu à Guerra Civil Espanhola? Ela ainda é viva?" Fiz e ainda me faço esses questionamentos, pois existe algo nas grandes tragédias que sempre me emociona: o drama vivenciado por cada indivíduo arrastado pela correnteza de uma guerra ou de um terremoto.

Mas talvez seja mais do que isso. Se, entre centenas de fotos espetaculares de guerra, eu foquei minha atenção no sofrimento particular de uma única garota é porque involuntariamente eu tento, 80 anos depois, resgatá-la do oblívio. O século 20 - e o novo século parece ir pelo mesmo caminho - foi pródigo em devastar populações inteiras, fazendo com que os sobreviventes precisassem peregrinar rumo a um improvável novo Éden, perdendo pelo caminho um pai, uma filha ou nacos significativos de dignidade. Mas, e quanto àqueles que não completaram o percurso? Os adultos, velhos e crianças com pequenos universos dentro deles? Onde foram parar esses mundos? Num terremoto como o do Haiti, por exemplo, quantas existências não foram violentamente suprimidas, como palavras escritas com giz que um professor apaga para substituir por outras? Para cada relato de um ser humano salvo dos escombros existem centenas de outros soterrados em definitivo no quadro-negro da história.

Milhões de nós passam pela vida e se despedem dela sem que essa passagem seja sequer registrada, impressa em papel fotográfico, como a garota da foto de Capa. São borrões, como aqueles seres sem rosto que vemos de relance quando passam por um trem de metrô em caminho inverso ao que estamos indo. Lembro agora do final de O Rei de Havana, quando Pedro Juan Gutierrez relata a agonia final do seu personagem: "O cadáver se corrompeu em poucas horas. Chegaram os urubus. E o devoraram pouco a pouco. O festim durou quatro dias. Foi devorado lentamente. Quanto mais apodrecia, mais gostavam daquela carniça. E ninguém jamais ficou sabendo de nada". Sim, ninguém ficou sabendo de nada. Por um tempo, é possível que parentes ou amigos lembrem daquela pessoa, e até se perguntem por onde ela anda. Mas depois a própria lembrança se evapora.

Nesse sentido, a fotografia é uma invenção revolucionária. Porque, se nossa memória não é preservada, ao menos nossa imagem é. Não sei se isso serve de consolo, mas não deixa de ser um registro, uma pequena nódoa, de que um dia estivemos por aqui, e que um dia pensamos, sorrimos, choramos, amamos. Isso não é pouco. Outro dia recebi por e-mail imagens belíssimas, tiradas entre 1909 e 1912 pelo fotógrafo Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii, de habitantes de pequenos povoados russos. São fotos coloridas de altíssima qualidade. É como se, ao olhar para elas, olhássemos para nós mesmos. Os tipos físicos e as vestimentas são diferentes, a arquitetura também, mas algo nos aproxima, como se passado e presente não estivessem cindidos por 100 anos de história. Mas vale lembrar que nesse intervalo, a humanidade presenciou a Revolução Russa, as duas grandes guerras, o Holocausto. O que dirão, então, os futuros inquilinos do planeta ao contemplar nossas fotos nas redes sociais, sorrindo como se flertássemos com a eternidade? Certamente vão sorrir também, e pensar: "Eles não sabiam de nada".