terça-feira, 15 de março de 2011

Selvagem?


Desde que desceu das árvores, o homem vem percorrendo um caminho que o leva cada vez mais para longe de sua própria origem selvagem. É possível que lá atrás, enquanto se refugiava numa caverna para se abrigar do frio e da escuridão, um homem de Neandertal tenha vislumbrado, ali em frente ao fogo, um futuro melhor para seus tataranetos. Quem sabe até pensou num apartamento confortável, com aquecedor central e cama king size, num prédio com segurança 24 horas, imune a invasores – pelo menos aqueles com presas e garras gigantes. De lá para cá, o homem foi tratando de transformar em realidade essa quimera, e se aglomerou em centenas, depois milhares e depois milhões e bilhões, invadindo quase todos os confins do planeta e compensando a fragilidade física com artefatos de utilidades variadas, do barbeador elétrico às armas de destruição em massa. Enfim, o fato é que chegamos lá.

Mas o curioso é que algumas pessoas escolhem justamente o caminho oposto: um improvável retorno à selva primordial de onde viemos. Em maior ou menor medida, muitos de nós sentimos uma necessidade atávica de primitivismo, de encarnar o arquétipo rousseauniano do bom selvagem, puro e incorruptível. Muitos indivíduos - escritores e artistas aí incluídos, como Thoreau e Gauguin - pregaram essa volta às origens ou a seguiram à risca, por mais complicada que seja a readaptação a um cenário que abandonamos há tanto tempo. Como reaprender a dormir numa caverna, conviver de perto com animais selvagens ou resignar-se com a escuridão absoluta sem um interruptor por perto? Como viver sem remédios para pressão alta, lojas de conveniência ou mesmo uma singela taça de vinho tinto?

Timothy Treadwell foi um desses indivíduos. Ele optou deliberadamente por ignorar os milênios de civilização acumulada em nosso DNA para conviver sem meio termo com o lado selvagem da Terra. Selvagem mesmo: ele foi parar nos confins do Alasca, território onde o homem é quase nada (e mesmo assim faz um estrago danado) e o urso pardo reina como um semideus. A trajetória de Treadwell, interrompida bruscamente, foi reconstituída em O Homem-Urso, documentário de Werner Herzog que assisti no último domingo. Um filme rico em imagens, já que o aventureiro e ativista deixou gravadas horas e mais horas de filmagens em boa qualidade, além do áudio que captou sua morte e a da namorada, atacados por um urso. Não ouvimos, felizmente, essa gravação.

Mas nem por isso O Homem-Urso deixa de ser um testemunho doloroso, movido pelos questionamentos de Herzog, que tenta a todo custo entender as motivações e escolhas de Treadwell, um sujeito meio insano que se diz apaixonado pela vida na selva e defensor dos ursos, com quem jamais desenvolve uma relação mútua de afeição. Daí o próprio Herzog refletir: “O que me assusta em todos os rostos de ursos que ele filmou é que não vejo qualquer parentesco, compreensão, nenhuma piedade. Vejo apenas a esmagadora indiferença da natureza”.

Teatral e histriônico, Treadwell mascara em parte a solidão e a dificuldade de se adaptar a condições tão extremas. Sua via-crúcis voluntária me fez lembrar a vivida pelo jovem Christopher McCandless, que serviu de inspiração para Jon Krakauer escrever o livro Na Natureza Selvagem, transposto para o cinema por Sean Penn, sobre o qual já falei por aqui. Uma busca incessante por um sentido oculto nos confins do mundo, marcada por estoicismo e auto-sacrifício. Mas para quê? Tanto Treadwell quanto McCandless esboçaram argumentos para justificar seus atos, mas o que fica de tudo aquilo quando se sabe que ambos foram embora cedo demais?

Ou talvez não. Treadwell parecia ansiar a morte, sobretudo uma morte violenta, como se ela purgasse o seu desnorteio. Já para McCandless, como escrevi no texto anterior, “morrer solitário no Alasca não era o epílogo esperado por quem sorveu sem meias-medidas o legado dos seus antecessores?”. Tanto um quanto o outro viveram situações-limite por convicção, e não involuntariamente, em função de um acidente de percurso, como o garotão narcisista de 127 Horas ou o Robinson Crusoé moderno vivido por Tom Hanks em Náufrago. Além de tudo, estes que cito agora sobreviveram, o que confere uma moral à história de suas vidas e as dignifica. A verdade de tudo isso é que eu, você ou qualquer outro que não abre mão de um cobertor quentinho no frio ou de um cineminha seguido de um jantar numa sexta-feira à noite jamais vai entender o que se passava ali, no íntimo de Treadwell e de McCandless. Uma necessidade obscura de voltar ao útero da própria espécie. De sentir o medo primordial do frio, do breu e do bafo quente do predador sempre à espreita.

***

“Enquanto observamos os animais em sua alegria de ser, em sua graça e ferocidade, fica mais claro um pensamento: isso não é apenas um vislumbre na natureza selvagem. É um olhar dentro de nós mesmos, da nossa natureza.”

Werner Herzog, em O Homem-Urso 

2 comentários:

Camila disse...

o endereço do blog é apologia ao personagem do kerouac?

Paulo Sales disse...

Oi, Camila.
Na verdade o endereço do blog tem a ver com um pseudônimo que criei há muito tempo, em homenagem aos personagens de Kerouac: Sal Paradise, de On the Road, e Jack Duluoz, de Big Sur. Tive dificuldade em encontrar um endereço disponível com o meu nome e optei por ele. Já o nome do blog, Este Lado do Paraíso, é em homenagem a Scott Fitzgerald, um de meus autores favoritos.