sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O Brasil nos tempos da cólera


Há duas epidemias de cólera em curso em dois países da América Latina. A primeira é no Haiti, onde uma população recém-saída do devastador terremoto de janeiro agora se vê dizimada pela doença. Já são mais de mil mortos e 18 mil infectados, e esses números são preliminares. Como quase sempre acontece no Haiti, as proporções das tragédias são estratosféricas, e a elas se seguem invariavelmente o caos e a explosão de desordem. A outra epidemia de cólera acontece no Brasil. Mas não se trata da mesma enfermidade presente no pequeno país centro-americano ou daquela que serve de pano de fundo para O Amor nos Tempos do Cólera, o belo e caudaloso romance de García Márquez. O Brasil padece de cólera moral.

Não há nenhuma novidade em dizer que temos uma sociedade doente, cindida por sintomas que na verdade são variações de um mesmo diagnóstico. Mas é curioso que a epidemia de cólera – ou de raiva, ira, preconceito, racismo ou qualquer outro termo que se queira usar – tenha se externado justamente agora. Como se um fato contaminasse outro e assim por diante. Há 15 dias, escrevi sobre as manifestações de preconceito contra nordestinos na internet, lideradas por um grupo de estudantes de classe média. Esse já é um episódio datado, mesmo que ainda atual. Datado porque a ele se seguiu uma onda de ódio que parece não ter fim: ódio contra pobres, ódio contra gays, ódio, enfim, contra o que é diferente – ou o que soa diferente a corações e mentes acostumados a um mundo sem matizes.

O problema, para pessoas assim, é que a civilização é dinâmica. E a pirâmide social brasileira – que durante muito tempo se configurou como um corpo letárgico, com castas rigidamente depositadas umas sobre as outras – presencia uma mobilidade inédita. Hoje, cada vez mais gente anda de carro, para desespero de pessoas como o jornalista Luiz Carlos Prates, comentarista de uma emissora de tevê catarinense, que esbravejou contra os “miseráveis” motorizados e atribuiu a eles a culpa pelos graves acidentes ocorridos no último feriado nas estradas de Santa Catarina. Gente, segundo ele, que “jamais leu um livro, mora apertado numa gaiola que hoje chamam de apartamento, não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem”. Coincidentemente, também peguei a estrada no feriado e vi muitos motoristas cometendo barbaridades, sendo que muitos deles dirigiam automóveis de luxo, não os habitualmente adquiridos pelos “desgraçados” a que se refere Prates, quase derramando saliva pelos cantos da boca.

E, como a doença está se alastrando sem controle país afora, não podiam faltar outras demonstrações de cólera, como a ocorrida domingo em São Paulo, na Avenida Paulista pela qual caminhei tantas vezes nos finais de noite da minha juventude. Desta vez um fato ainda mais grave, porque nele o destempero verbal veio acompanhado do destempero físico: um adolescente armado de uma lâmpada de escritório e respaldado por outros adolescentes investe contra três rapazes vindos em sentido contrário. Vi as imagens hoje e foram elas que me motivaram a escrever este texto. Foi um ato gratuito e covarde, como costumam ser os atos dessa natureza: o sujeito pára, se posiciona sorrateiramente e desfere o golpe na cabeça do rapaz, como se empunhasse um sabre de luz do filme Guerra nas Estrelas. Não satisfeito, golpeia novamente e só então o outro revida.

Mais tarde, através do advogado de defesa dos jovens, ficamos sabendo o motivo: as vítimas seriam homossexuais, e quem sabe até "teriam paquerado os agressores", que obviamente se viram obrigados a exibir toda a sua virilidade. Ah, então existe uma motivação, o que talvez faça muitos respirarem aliviados. Os rapazes não são, portanto, um equivalente paulistano dos delinquentes de Laranja Mecânica, que agrediam por agredir, sem qualquer propósito ou justificativa. Não, eles têm uma causa. Assim como o sujeito que matou um rapaz na saída da Parada Gay, na mesma São Paulo, há alguns meses. Assim como o estuprador que só estupra porque a mulher está com um vestido curto demais, colado demais, sedutor demais. Assim como Hitler, para quem judeus, ciganos, deficientes físicos, homossexuais e outras minorias não cabiam na sua utopia particular. E por aí vai.

O fato é que quando a motivação de uma pessoa para agredir outra está na não-aceitação do que essa outra pessoa é – não o que ela pensa ou defende – então estamos caminhando por um território sombrio. É o mesmo campo minado habitado por israelenses e palestinos, já que um não aceita a existência do outro, embora a convivência pacífica entre ambos fosse a alternativa mais viável. Ou seja: não basta odiar o outro; é preciso acabar com ele. É preciso acabar com os pobres que compram carros, acabar com os gays que andam nas ruas e deveriam voltar aos guetos, acabar com os nordestinos que votam em Dilma Rousseff. O que me leva a pensar que nossa epidemia talvez não seja de cólera, seja de demência mesmo.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O ser e o nada



Leio na Folha de S.Paulo que cientistas conseguiram capturar um átomo de antimatéria. É um feito promissor, que pode abrir caminho para novas descobertas no campo da física, embora eu não tenha qualquer noção do que significa em termos práticos a antimatéria. A reportagem diz que em condições normais ela não costuma existir, já que o universo é todo feito de matéria convencional – prótons de carga positiva e elétrons negativos. O Big Bang, aquele sopro primordial que lançou no espaço todos os planetas, estrelas, cometas, nebulosas, peixes, plantas, cachorros e pessoas que sabemos ou não existir, também produziu muita antimatéria, embora não se saiba onde ela foi parar. Essa incógnita ganha ares de dramaticidade quando se sabe que, ao se encontrarem, partículas de matéria e de antimatéria provocam uma espécie de auto-aniquilação. Ou seja, mandam para o vácuo tudo aquilo que somos nós.

O fato é que, por mais que tente, não consigo compreender os fatores envolvidos na descoberta e na manipulação da antimatéria, e só me resta contemplar, do alto de minha estupidez, a complexidade da nossa insignificância, a valorosa perseverança da vida diante de um ambiente hostil. Fiquei tentado a pensar que, caso esse átomo recém-descoberto venha a se chocar com um átomo de matéria, os dois poderão ser aniquilados, levando a reboque tudo ao redor, inclusive nós, que seríamos sugados tão rápido que nem teríamos tempo de esboçar um adeus a quem amamos ou ao mundo que conhecemos. Gostaria de saber mais sobre física, para quem sabe desvendar as questões primordiais que movem o homem desde sempre: de onde viemos, quem somos, para onde vamos. O que me consola (ou desanima) é que sujeitos dotados de intelecto muito mais musculoso, como Albert Einstein, Stephen Hawking ou Carl Sagan, também ficaram pelo caminho. Encontraremos uma resposta satisfatória? Provavelmente sim, só não sei quando.

Continuo lendo a reportagem e, à medida que avanço, ela vai se tornando absolutamente incompreensível, um pouco como o Aleph de Borges, impossível de descrever, embora fascinante. A diferença é que a leitura do conto do mestre portenho abre imensas clareiras em nossas mentes simplórias, nos transportando para um universo paralelo habitado por uma espécie de tudo ao mesmo tempo agora. Já a reportagem – e o autor não tem qualquer culpa nisso – provoca apenas um pasmo resignado. Mas, enfim, aonde quero chegar com tanta baboseira? Não faço a mínima idéia. Apenas compartilho aqui a minha suprema ignorância, as minhas inquietações tolas e o meu singelo desejo de entender por que precisamos ir embora do mundo. Afinal, não é fácil resignar-se frente ao fato de que, daqui a 200 anos, todos nós – eu, você, nossos filhos e até aquele bebê que acaba de nascer numa maternidade do Nepal – não seremos nada além de partículas de antimatéria, sem qualquer serventia ou história para contar.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O homem é um bicho mau


Em O Gato por Dentro, sua singela declaração de amor aos felinos, William Burroughs relembra um episódio de infância traumático: estava com colegas e um “professor sulista com jeito e aparência de político” num acampamento escolar próximo a um rio, quando um texugo se aproximou do grupo. Era um animal pequeno, inofensivo, mas assim mesmo o professor sacou a arma e atirou contra ele. O texugo não foi atingido e, sem se dar conta do perigo, continuou se aproximando,“brincalhão, amistoso e inexperiente como os índios astecas que levaram frutas para os espanhóis, que cortaram fora suas mãos”, descreve Burroughs. Então o professor se aproximou ainda mais e, à queima-roupa, disparou vários tiros contra o bicho, que rolou morrendo pela ribanceira. Aquilo marcou o escritor, e o fez escrever: “O texugo só queria brincar e fazer umas travessuras, e leva um tiro com um .45 do exército. Dá para entender isso? Para se identificar com isso? Sinta isso. E pergunte a si mesmo: que vida vale mais? A do texugo ou daquele perverso de merda branco? Como diz Brion Gysin: o homem é um bicho mau.”

Nunca esqueci desse trecho do livro, e lembrei dele ao ler uma notícia que me chocou: um filhote de coala foi encontrado na Austrália com 15 tiros no corpo, ao lado da mãe morta. Um animal tão frágil e pequeno quanto o texugo de Burroughs, que sobreviveu não se sabe como e agora está sendo tratado por veterinários. Seu estado, claro, é muito grave, já que as balas o atingiram no estômago e no intestino e ele passou por duas cirurgias para a remoção dos bagos de chumbo. Chamado de Frodo na clínica onde está internado, o filhote é uma fêmea com pouco mais de um ano, e pertence a uma espécie ameaçada de extinção na Austrália.

Cada vez mais chego à conclusão de que o homem regrediu alguns milênios em sua escala evolutiva quando criou a pólvora e posteriormente as armas de fogo. A partir desse momento, o ato de matar, que até então exigia envolvimento físico e confronto com o oponente, tornou-se algo banal, que podia ser praticado à distância, sem qualquer desgaste físico – e, a julgar pelo que assistimos ao longo dos últimos séculos, sem desgaste moral também. Mata-se sem pretexto, sem objetivo, sem sentido, já que apertar um gatilho é tão fácil quanto dar um peteleco numa formiga que sobe no nosso braço. Camus sabia bem do que estava falando em O Estrangeiro.

Era isso o que faziam os viajantes de trem nos Estados Unidos do século 19, ao atirar por diversão em bisões enormes que ocupavam pradarias a perder de vista no caminho do oeste, até ficarem quase extintos. É isso o que ainda fazem os caçadores de gorilas no Quênia, dizimando populações inteiras da espécie. Por uma certa ótica, o ser humano se sofisticou com o uso das armas de fogo, e passou a fazer o mesmo com outros seres humanos – a imagem que me vem à mente de imediato é a de Ralph Fiennes no papel do nazista Amon Goeth, atirando a esmo em judeus espalhados pelo campo de concentração em A Lista de Schindler. Daí a matar a distâncias ainda mais seguras – o avião que despeja bombas e varre do mundo populações inteiras – foi um pulo. “O horror, o horror”, como diria Brando/Kurtz em Apocalypse Now.

Dado todo esse histórico, por que ainda nos surpreendemos quando alguém desfere 15 tiros num filhote de coala? Afinal, já vimos pessoas desferirem tiros até em filhotes de pessoas. É que talvez permaneça, pelo menos em alguns de nós, um espanto primordial. Um travo de humanismo e desconforto com a injustiça, que parece ter ficado para trás quando a pólvora ganhou o mundo e nos trouxe até esta terra devastada. Esse espanto talvez nos redima um dia, mas é mais provável que o mal se torne de vez uma força da natureza, como um relâmpago ou um vulcão – o que, pensando bem, talvez já esteja acontecendo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Gente é para brilhar


“Não quero ver mais essa gente feia. Não quero ver mais os ignorantes. Eu quero ver gente da minha terra. Eu quero ver gente do meu sangue”.

Pobre Paulista, Ira!

Hoje mais cedo comentei com um velho amigo sobre o significado dessa letra do Ira! Estávamos – eu mais do que ele – em dúvida sobre o significado dos versos acima. Seriam eles uma demonstração explícita de racismo e xenofobia? Ou apenas ironia e rebeldia juvenil? Tanto faz. Conhecemos Nasi, vocalista e um dos líderes da banda, na época em que fazíamos faculdade, em São Paulo, quando o entrevistamos em sua casa para um fanzine que nunca chegou a ser publicado. E chegamos à conclusão de que, pela personalidade dele e dos demais integrantes, seria improvável que Pobre Paulista se configurasse como uma ode ao preconceito.

Essa conversa seria apenas um bate-papo sobre reminiscências de um período particularmente agradável de nossas vidas se não tivessse sido motivada por um fato grave: as manifestações de racismo desferidas por pessoas de São Paulo, em sua maioria, contra os nordestinos. O motivo: Dilma Roussef teria sido eleita presidente do Brasil unicamente por causa da maciça votação que obteve entre os “jegues”, “burros” e “cabeça chata do carai”. As frases, capitaneadas na terra de ninguém chamada Twitter por uma tal Mayara Petruso, paulistana, estudante de direito, reverberaram em muitas outras frentes. São afirmações como: “Faça um favor para o país: mate um nordestino”, “Tomara q todos os nordestinos morram de sede e fome, so pra sentir a merda q fizeram pro Brasil”, “Tomara que esses nordestinos morram de fomeee, seus burros”. E por aí vai.

Existe um fato fundamental nessa história toda que precisa ser ressaltado. A candidata do PT venceria as eleições mesmo se os votos do Nordeste (ou do Norte e Nordeste) não tivessem sido computados. Ou seja, ela ganharia mesmo que o país fosse cindido ao meio, como sugeriu Carlos A. Júnior numa mensagem (“Dividam o Brasil ao meio, me nego a ser da mesma nação dos nordestinos”).

Bem, como diria Dorival Caymmi, acontece que eu sou baiano. Nordestino, para ser mais abrangente. Não votei em Dilma, por achar que o Brasil precisa acima de tudo de alternância no poder, para acabar com os vícios do partido único e evitar uma incômoda propensão ao autoritarismo que enxergo em alguns setores do PT. Mas considero absolutamente legítima a vitória da candidata, até porque o candidato no qual votei, José Serra, de um partido que admiro, o PSDB, se deixou levar pelo oportunismo mais deslavado e por táticas rasteiras. Mais: a vitória de Dilma representa a derrocada – definitiva, ao que parece – do voto de cabresto. Pode-se discordar da escolha, mas jamais do fato de que os mais pobres votam com mais consciência hoje do que há 10, 20 anos. Votam em quem, na opinião deles, vai ao encontro das suas necessidades imediatas, muito mais prementes que as minhas ou as de quem lê este texto.

Como baiano, nordestino ou mesmo brasileiro, não me considero atingido por essas ofensas. Como ser humano, sim. Se por um lado são uma aberração, por outro são o epílogo perfeito para uma das eleições mais estúpidas da nossa história recente. Regredimos algumas décadas nos últimos quatro meses, sobretudo no último, quando as discussões sobre o futuro de um dos países mais desiguais e miseráveis do mundo se restringiram a temas pinçados da idade média, o que permitiu a proliferação de uma improvável corja de neocarolas. Bobagens de parte a parte, acusações tolas, extremismo desnecessário, denúncias sem substância. E, para coroar tudo isso, as vociferações virtuais da turma de Mayara Petruso.

Nada disso teria maior importância se o episódio não abrisse um precedente perigoso: manifestações como essas deixam claro que o fascismo agoniza mas não morre. Nesse sentido, é sintomático que uma das revoltosas, de nome Rayssa Medeiros, tenha citado como exemplo a ser seguido o indivíduo mais abjeto nascido no século 20: “so hitler acaba com a raça dos petistas.. construindo camara de gas no nordeste matando geral..”. Soa como uma versão feminina do Capitão Nascimento. A história ensina que ignorância, sobretudo se somada a desencanto e indiferença, produz efeitos devastadores para a humanidade. Rayssa provavelmente não sabe que garotas como ela – jovem e bem-humorada, a julgar por sua foto no Twitter – deixaram de existir apenas por serem judias. Não pelo que pensavam, não por aquilo que queriam para si ou para sua família, mas porque haviam nascido em berço judaico.

O fato é que tudo isso deixa entrever o nosso lado racista, preconceituoso, babaca mesmo, que tentamos jogar para baixo do tapete em nome de uma cordialidade inexistente, de uma democracia racial e social ainda no paleolítico. Por fim, contrapondo os versos do Ira!, que anseiam por gente da sua terra, gente do seu sangue, eu lembro de um verso de Caetano Veloso – singelo, alegórico e datado, mas nem por isso menos legítimo: “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”.