quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Cicatrizes



À medida que envelhecemos, cicatrizes e outras marcas do tempo se colam ao nosso corpo. São restos de feridas profundas, tatuagens ou vestígios de antigas enfermidades que, aliados a rugas e cabelos brancos, dão forma a quem somos quando atingimos uma certa maturidade. Nosso rosto e principalmente nosso corpo mudam, deformando-se ou alcançando uma inesperada harmonia. De certa forma, somos como rochas desfiguradas pela erosão dos ventos e do sol, ou como rios assoreados pela falta de vegetação nas margens. Eu tenho cá minhas marcas do tempo: uma cicatriz quase imperceptível de uma queda de mobilete, que prendeu meu pé esquerdo ao pedal e ao motor fervendo; a marca de uma cirurgia nas costas para a retirada de um cisto no sacro-ilíaco; uma pequena deformação na pálpebra direita, causada por um terçol mal-curado; a coluna rígida que me tira a mobilidade, consequência mais evidente de uma doença reumática; e por fim um sulco entre as sobrancelhas fruto de uma herpes-zóster. Esses sinais - aliados aos cabelos grisalhos, às pequenas bolsas sob os olhos e aos quilos a mais - contam a minha história exterior.

Mas a nossa verdadeira história é aquela contada pelas cicatrizes que ficam voltadas para o lado de dentro. Se fosse possível fazer um exame de ressonância magnética ou tomografia computadorizada que mostrasse essas cicatrizes, saberíamos de verdade qual a matéria-prima de que somos feitos. Nosso cérebro, como o de qualquer pessoa que passou pelas intempéries que a vida impõe, é tomado em toda a sua extensão por feridas, na forma de frustrações, remorsos, arrependimentos. Algumas, provavelmente, estão lá desde que começamos a ser gente, ainda no útero. Outras cicatrizaram completamente, mas sua presença deixa claro que elas existem e fazem parte do que somos. E há aquelas que nos deixam em permanente alerta, como uma perda particularmente dolorosa, equivalente a marcas de dentes de tubarão numa perna dilacerada. Elas estão lá para nos dizer que é preciso ter cuidado, que não dá para se jogar com tudo. Enfim, que o mundo costuma aplicar peças traiçoeiras.

Tenho estado triste nos últimos dias. Porque pela primeira vez estou sentindo pontadas que me afetam em cheio, mesmo não me atingindo diretamente. Uma dor forte e persistente que minha filha vem sentindo nas costas, nos fazendo ir a médicos e realizar um sem-fim de exames, vem mexendo comigo como jamais imaginei. Eu sinto a dor dela em meu íntimo, pesando feito cruz nas minhas costas, me retalhando em postas e me dilacerando por dentro, como se arames farpados arranhassem meus órgãos internos. Sei que ela não tem nenhum problema grave, o que me tranquiliza em termos racionais, e sei que vai ficar boa logo. Mas emocionalmente estou abalado e cheio de feridas. É claro que momentos como esses são inerentes ao ato de viver. São essas situações-limite que nos ajudam a criar uma couraça e aguentar trancos futuros. Senão, seríamos apenas aquelas caras felizes das redes sociais, vidas sem matizes ou sombras, como nos folhetos de lançamentos imobiliários. A dor é necessária, eu sei. Mas hoje só quero uma coisa: que ela termine o mais breve possível.