quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Talibãs apaixonados




Betty Blue, o romance de Philippe Djian que foi levado às telas com maestria por Jean-Jacques Beineix, se encerra em forma de tragédia. Ao se deparar com o que restou de sua namorada Betty (Béatrice Dalle), tomada pela insanidade e presa a uma cama de hospital, Zorg (Jean-Hughes Anglade) toma uma decisão extrema: poupá-la de tamanho sofrimento. É impossível mensurar a dimensão da sua dor quando ele pega um travesseiro e a sufoca. Zorg sai de lá vazio, oco como um tronco tomado por cupins, do mesmo modo que Frank, o personagem de Clint Eastwood em Menina de Ouro, após cometer eutanásia na sua aprendiz e jovem lutadora Maggie (Hillary Swank), a quem amava com fervor de pai.

Tanto Zorg quanto Frank estão moídos por uma tristeza infinita, revirados em si mesmos por se sentirem obrigados a cometer atos tão extremos. A vida, nas duas situações, é tirada como uma forma de preservação, se é que isso é possível. São homens matando mulheres, o que é deplorável, mas também são seres humanos poupando outros seres humanos de um destino sombrio, para dizer o mínimo. Ao sacrificarem por compaixão as pessoas que amam, eles sacrificam a própria dignidade, reduzindo suas vidas a escombros. Ambos põem em prática o que se poderia chamar de crime passional, numa acepção rigorosa do termo, hoje tão banalizado.

É algo bem diferente do que acontece com espantosa frequência nas cidades brasileiras, onde execuções motivadas por ódio, ciúmes ou intolerância recebem a alcunha de crimes passionais. São chamados assim sem qualquer tipo de reflexão pela polícia, pela imprensa e pela população em geral – numa inversão de valores que torna o algoz uma espécie de justiceiro a lavar sua honra com sangue. Ao contrário dos crimes de Frank e Zorg, profundamente misericordiosos, atos como esses revelam antes de tudo um incômodo egoísmo. Os motivos alegados são invariavelmente os mesmos: matam a mulher que, em teoria, amam por conta de uma suposta impossibilidade de viverem sem ela. Mas e a vida dela? E os filhos de ambos, as famílias destroçadas?

Suicidar-se em seguida não melhora a situação, antes a agrava. Mas, numa sociedade patriarcal e ainda presa a sua origem rural, o morto sobrevive forjando um arquétipo de herói. É o Brasil arcaico sobrevivendo no Brasil moderno e sobrepondo-se a ele. Nesse cenário desolador, nós caminhamos a passos largos rumo ao passado, como bandeirantes broncos e desajeitados, incapazes de encarar um mundo no qual pessoas de sexos diferentes, etnias diferentes e orientações sexuais diferentes sejam capazes de conviver entre si. É uma espécie de fundamentalismo, guardando desagradável semelhança com o mundo islâmico contemporâneo, que condena mulheres a uma vida de desterro por trás de panos grossos e inacessíveis ao cotidiano. Somos como talibãs ocidentais, apaixonados por futebol, praia, cerveja e mulheres de biquíni minúsculo, desde, é claro, que não sejam as “nossas” mulheres.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O gigante inerte




Quando eu cursava jornalismo em São Paulo, lá pelos idos de 1994, acompanhei a gravação de um programa na TV Gazeta (que ficava no mesmo prédio da minha faculdade) com o então candidato a presidente Lula. Lembro de ter ficado a uns três metros dele, observando-o tirar o microfone da lapela enquanto conversava com seus assessores. Quis me aproximar, dizer alguma coisa, apertar sua mão, mas a timidez falou mais alto. Na mesma época, eu e um amigo estávamos saindo de um cinema especializado em filmes de arte, perto da Av. Paulista, e nos deparamos com José Genoíno no saguão. Ficamos um tempo ali, a uns três metros de distância, observando um dos políticos mais queridos, atuantes e respeitados do Brasil enquanto ele conversava com amigos de um jeito simpático e descontraído. Pensamos em nos aproximar, dizer alguma coisa, apertar sua mão, mas novamente a timidez falou mais alto.

O PT perdeu as eleições presidenciais naquele ano. Amparado pelo êxito do Plano Real, Fernando Henrique começava ali o reinado de oito anos do PSDB, que rendeu uma série de melhorias significativas ao país, embora tenha decepcionado no aspecto social e na forma quase obsessiva com que rezou pela cartilha do neoliberalismo. Enquanto isso, Lula, Genoíno e outros petistas, como Aloísio Mercadante e Eduardo Suplicy, permaneceram incólumes como os portadores legítimos de uma utopia, a nossa utopia. Eram os caras que a gente queria ver no poder, para encarar de frente o abismo da desigualdade social, da educação em frangalhos, da saúde sucateada, dando um basta na corrupção sem freios, na politicagem mesquinha.

Dezoito anos separam 1994 de 2012. Hoje, o que o homem de 42 anos teria a dizer àquele jovem idealista de 24? Bem, a primeira coisa seria: não acredite em utopias, meu rapaz. Não existem mais ilusões. Agora o principal: o que eu teria a dizer a Lula e Genoíno hoje, se a timidez novamente não falasse mais alto? A primeira pergunta seria: onde foram parar o Lula e o Genoíno de 1994? Ou será que eles nunca existiram, eram apenas espectros projetados por nossos anseios em uma parede descascada? Ao observar imagens recentes de Genoíno, com seu semblante abatido, me sinto tomado por uma profunda desilusão. Bem ou mal, devemos em grande parte o estado democrático em que vivemos a pessoas como ele. Adianto que não estou aqui defendendo uma punição mais branda para seus delitos, que são graves, apenas tentando entender como uma trajetória tão elevada se deixou arruinar. Genoíno não tem a prepotência nem o perfil stalinista de um José Dirceu. Sempre foi um conciliador, um sujeito que acreditava no diálogo, um cara do bem, imaginávamos.

Com Lula, a situação me parece ainda mais séria. Seu governo foi, apesar de todos os equívocos, histórico. Daqui a cem anos, ele será lembrado como um dos estadistas que construíram o Brasil do século 21, para o bem e para o mal. Mas... que tipo de proveito Lula tirou ou está tirando de tudo isso? Como uma personalidade tão amada e admirada, dentro e fora do país, pode ser capaz de deliberadamente encardir a própria biografia de um modo tão vil? Que espécie de pragmatismo justifica uma aliança com Paulo Maluf ou um abraço em Fernando Collor? Nunca o velho ditado “diz-me com quem andas e te direi quem és” foi tão apropriado.

Esse sentimento de desilusão é nocivo. Estamos sendo tomados por um profundo ceticismo, por mais que o julgamento do mensalão represente um marco civilizatório na política brasileira, como se dissessem: isso aqui não é mais a Ilha de Vera Cruz. O fato é que, ao condenarmos o Genoíno de hoje, amassamos e jogamos fora o Genoíno de ontem, e com ele todas as nossas convicções, nossas utopias ingênuas, nosso ideal de um país viável. Perguntamos a nós mesmos: quem restou, com a digna exceção de personalidades isoladas e sem cacife político para chegar ao poder, como Marcelo Freixo? Ninguém. Habitamos um cemitério de ilusões, um deserto de idéias. O fruto disso tudo todo mundo sabe: um país que nada tem de cordial, embebido em dispersão, inércia e brutalidade. Um gigante que, ao contrário do que mostra a propaganda do Johnny Walker, permanece longe de despertar.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Ausências




Anoiteço lentamente na companhia de Dave Brubeck, a quem velo com fervorosa admiração neste final de quarta-feira, enquanto saboreio um delicioso vinho argentino. Dave vai embora, um dia antes de completar 92 anos, com sua música atemporal e seu jeito sereno e até certo ponto obsessivo de encarar a vida e a arte. Ouço seu piano em contraponto ao sax alto de Paul Desmond, sua alma gêmea musical. Até poucos minutos atrás estava revendo um documentário sobre ele, Redescobrindo Dave Brubeck, que mostra imagens do músico já bem velhinho, com uma simpatia arrebatadora, tocando com os filhos e colhendo com serenidade os frutos do reconhecimento. Dave viveu bem, produziu muito e ficará eternizado por temas como Take Five e Blue Rondo a la Turk, mas também por se posicionar radicalmente contra o racismo. Enfim, um homem de valor.

No mesmo dia, Oscar Niemeyer cessou sua chama, com espantosos 104 anos. Já era um adolescente quando Brubeck nasceu, e ninguém há de negar que sorveu como poucos o seu tempo – ou, melhor dizendo, os seus tempos. Outro dia, comecei a escrever um texto sobre o fascínio que a longevidade de Niemeyer e Manoel de Oliveira (o cineasta português, ainda vivo e ativo aos 105 anos) provocava em mim. Invejava a oportunidade que eles tiveram de contemplar o século 20 se descortinando aos seus olhos, o mesmo século ao qual cheguei já nos estertores. Tanto Niemeyer quanto Oliveira têm (me recuso a usar o verbo no passado) de velhice mais ou menos o que eu tenho de vida. É um oceano de tempo. Como se ambos ousassem roçar a eternidade e brincar com o nosso conceito de finitude. Como se ambos fossem monumentos feitos de ossos, sangue e sentimento, a atestar a nossa permanência na Terra, imperecíveis como pirâmides egípcias. Mas agora sei que o velho arquiteto comunista finalmente capitulou.

Fico imaginando o que os olhos de Niemeyer, Oliveira e mesmo os de Brubeck já viram. Nascidos nas primeiras décadas do século 20, já eram adultos em 1939, quando a insânia nazista desaguou na guerra mais brutal da história humana. Brubeck, inclusive, presenciou o horror da batalha, da qual felizmente saiu sem sequelas físicas (já que as psicológicas invariavelmente permanecem). Talvez o mundo de hoje, tomado por uma imbecilidade sem tamanho, já não precise deles, embora Manoel ainda resista e mostre que o seu tempo particular prossegue, num desafio que nos impressiona e sobretudo nos comove. Talvez nenhum deles tenha conseguido entender como a barbárie permanece incólume, mesmo após 100 anos de sofrimento generalizado. Ou quem sabe não é exatamente o oposto: quem, como eles, viu o mundo quase se desintegrar no início dos anos 40 talvez não se espante mais com nada, e esteja mais apto que qualquer um de nós a enriquecer com arte o que outros homens preenchem com pinceladas de estupidez.