segunda-feira, 3 de março de 2014


“Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. (...) Como as palavras perdidas da infância, escutadas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. (...) Como as músicas do momento, as valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos avós. Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com ela pelo corredor –, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”

Julio Cortázar, em O Jogo da Amarelinha