sábado, 30 de maio de 2009

Antecedentes criminais


É óbvio que o Brasil não detém o monopólio das tragédias. Diria até que, apesar das nossas desditas cotidianas, há povos mais desafortunados ao redor do mundo, que parecem viver em estado crônico de sofrimento. Existe, porém, uma modalidade de tragédia na qual somos hegemônicos em nível mundial: as tragédias anunciadas. Nesse quesito, somos tão imbatíveis quanto o escrete canarinho da Copa de 70. Governos se abancam, governos se despedem, e continuamos a nos deparar melancolicamente com desastres perfeitamente evitáveis, como o que aconteceu esta semana no Piauí. A frágil barragem que segurava a fúria de uma correnteza brutal estava prestes a romper, como percebeu um morador da região – leigo em engenharia, porém pós-graduado em matéria de sofrer – mas nenhuma medida foi tomada para retirar as pessoas que estavam lá. Ontem assisti a uma entrevista (gravada antes do episódio) do engenheiro responsável pelo laudo que considerava a barragem absolutamente segura. Ele afirmou de forma enfática ao interlocutor que o concreto não se romperia, e ignorou os apelos de um bombeiro que havia sugerido a retirada dos moradores. Deu no que deu. Não seria o caso, portanto, de as famílias dos mortos entrarem com um processo contra esse engenheiro e contra o Estado por homicídio doloso? Doloso mesmo, com intenção de matar, como um bêbado ao volante sabe que mais cedo ou mais tarde vai arrancar a vida ou as pernas de alguém.
A tragédia anunciada no Piauí é apenas um item a mais na extensa lista de antecedentes criminais que revela o nosso caráter acomodado, incapaz de impedir ou prevenir que pessoas morram em desabamentos, enchentes, secas, acidentes de carro e de avião ou doenças seculares como meningite e dengue. Enfim, somos complacentes com diversas formas de desastre perfeitamente evitáveis quando há fiscalização, responsabilidade, cumprimento de leis e, em último caso, punição. Mas não. Vivemos num limbo, num deserto de idéias e de iniciativas capazes de dar cabo desses assassinatos coletivos dos quais não se consegue descobrir e muito menos punir os autores. Na falta de expressão mais adequada, cabe aqui o batido clichê de que estamos deitados eternamente em berço esplêndido, esperando sabe-se lá o quê, enquanto a roda gira e nos deixa mais uma vez esperando o próximo bonde da história.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

"Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente."

Vladimir Maiakovski

terça-feira, 26 de maio de 2009

As cinzas da história


Cheguei a duvidar das palavras de Mario Vargas Llosa quando atingi a página 50. Até aquele momento, Soldados de Salamina me parecia um bom livro, e não um “livro magnífico, dos melhores que li em muito tempo”, segundo o autor de Tia Julia e o Escrevinhador. Mas continuei desbravando a obra do espanhol Javier Cercas, alcançando a segunda parte (que me pareceu muito boa) e por fim a terceira. Só então compreendi a grandeza do romance, a sua força arrebatadora, que me impelia incessantemente rumo a um epílogo comovente, combinando de forma espantosa elementos típicos de um épico de guerra com incursões metalingüísticas (o livro dentro do livro, o narrador com o mesmo nome do autor, a homenagem ao escritor chileno Roberto Bolaño). Mais do que o estilo elegante, me chamou a atenção o olhar entre impiedoso e compreensivo com que ele se debruça sobre o falangismo, movimento que serviu de lastro intelectual para a escalada do fascismo na Espanha, tornando-se, após o golpe, o partido único da sanguinária ditadura de Franco. Cercas elege como cerne do livro um episódio surreal ocorrido com o político, cronista e escritor Rafael Sánchez Mazas, fundador da Falange e espécie de reserva moral (se é que isso pode ser possível) do franquismo. Preso pelos republicanos nos estertores da Guerra Civil Espanhola, Mazas foi para o paredon junto com outros fascistas, mas escapou milagrosamente do fuzilamento e fugiu pelo mato. Em meio à perseguição, foi flagrado por um soldado republicano, que não o denunciou. Personificando um Javier Cercas fictício (um escritor e jornalista fracassado), o autor refaz todo o percurso que o levou à história real de Mazas, das primeiras informações, colhidas com estudiosos e sobreviventes dos tempos do front até o fuzilamento, num dos trechos que desvelam a grande literatura praticada por Cercas:
“O soldado olha para ele; Sánchez Mazas também, mas seus olhos deteriorados não entendem o que vêem: sob o cabelo empapado, a testa larga e as sobrancelhas pontilhadas de gotas, o olhar do soldado não expressa compaixão, nem ódio, nem desdém, mas uma espécie de secreta e insondável alegria, algo no limite da crueldade e resistente à razão, mas que tampouco é instinto, algo que está no sangue com a mesma cega obstinação que o próprio sangue persiste em seus dutos e a terra em sua órbita inamovível e todos os seres em sua teimosa condição de seres, algo que se esquiva às palavras como a água do riacho se esquiva das pedras, porque as palavras só estão feitas para expressar-se em si mesmas, para expressar o dizível, quer dizer, tudo, exceto o que nos governa ou faz viver ou concerne ou somos, ou é este soldado anônimo e derrotado que agora olha esse homem cujo corpo quase se confunde com a terra e a água marrom da cratera, e que grita com força para o ar sem deixar de olhá-lo: Por aqui não tem ninguém! Então dá meia-volta e se vai.”
Porém, mais do que um estudo sobre a natureza do ódio, temos aqui um tratado sobre o altruísmo, já que percebemos que o verdadeiro objeto da obsessão de Cercas (o narrador, não o autor) não é Mazas – embora ele só se dê conta disso no final –, e sim o soldado anônimo que poupou a vida do falangista. A busca pela memória desse herói invisível responde pelos momentos mais pungentes de Soldados de Salamina, e o alçam à condição de obra maior. É quando Cercas discorre sobre literatura e jornalismo com Bolaño (numa homenagem ao prestigiado autor de Os Detetives Selvagens e Putas Assassinas) ou sobre guerra, heroísmo e esquecimento com Miralles, um veterano octogenário de muitas guerras que pode (ou não) ter sido o homem que salvou Sánchez Mazas da morte atroz numa clareira enlameada em algum lugar da terra devastada em que se converteu a Espanha no final dos anos 30. Através dessas conversas de forte teor emocional, descortina-se não apenas a aberração da guerra, qualquer que seja ela. Mas também a memória pulverizada dos que ficaram para trás, sem direito a futuro, nome ou gratidão, assassinados anonimamente como formigas numa calçada lotada de pedestres.

Literatura e jornalismo:

“Um escritor não escreve nunca sobre o que conhece, mas precisamente sobre o que ignora.”

“Nada irrita tanto um escritor que não escreve quanto perguntá-lo sobre o que está escrevendo.”

“Para escrever um romance não é preciso imaginação, só memória. Os romances são combinações de lembranças.”

“Um homem de ação é um escritor frustrado. Se Dom Quixote tivesse escrito um só romance de cavalaria, nunca teria sido Dom Quixote.”

“Um bom jornalista é sempre um bom escritor, mas um bom escritor quase nunca é um bom jornalista.”

Heroísmo e esquecimento:

“Pensei: nem uma única destas pessoas sabe desse velho meio caolho e terminal que fuma cigarros às escondidas e que agora mesmo está comendo sem sal a uns poucos quilômetros daqui, mas não há uma só que não esteja em dívida com ele.”

“Na realidade, eu acho que no comportamento de um herói há quase sempre algo cego, irracional, instintivo. Algo que está em sua natureza e ao qual não pode escapar.”

“Homens não pedem perdão: fazem o que fazem, dizem o que dizem, e depois agüentam.”

“Os heróis só são heróis quando morrem ou são mortos. E os heróis de verdade nascem na guerra ou morrem na guerra. Não há heróis vivos, jovem. Todos estão mortos. Mortos, mortos, mortos.”

“Ninguém se lembra deles, sabe? Ninguém. Ninguém se lembra sequer por que morreram, por que não tiveram mulher e filhos e um quarto com sol; ninguém, e menos que ninguém, as pessoas por quem lutaram. Não há nem haverá jamais uma rua miserável de alguma aldeia miserável de algum país de merda que venha a receber um dia o nome de algum deles.”

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Latifúndio devastado



Luiz Carlos Merten expôs uma tese interessante sobre Antichrist, o explosivo filme de Lars Von Trier exibido semana passada em Cannes: a de que o cineasta dinamarquês defende a teoria de que o homem foi criado à imagem e semelhança do Diabo, e não de Deus. A despeito da predileção do diretor por provocações muitas vezes vazias, não deixa de ser uma viagem interessante. Caso confirmada, essa teoria poria abaixo tudo que se pensa a respeito da humanidade: em vez de nascermos bons e irmos aos poucos nos corrompendo pelo contato com a sociedade, carregaríamos todos uma carga de maldade latente, que poderia irromper em determinado momento ou ficar sempre ali guardada para uma eventual necessidade. 

Lars Von Trier aprecia essa tese, como se pode conferir sobretudo em Dogville. E o anjo cego encarnado por Björk em Dançando no Escuro seria apenas uma anomalia em meio à torpeza generalizada. De certa forma, essa teoria explicaria por que a maldade permanece renitente a assombrar os vivos e a produzir aberrações com forte poder destrutivo. Sendo assim, Hitler – para citar o mais notório dos nossos anticristos – seria a imagem e semelhança do Lúcifer lá de cima. Em vez de tridentes, chifres e pés-de-cabra, teríamos o bigodinho tosco, o cabelo lambido e o comportamento insano. Ou, já que somos todos iguais ao dito-cujo, ele também não poderia ostentar traços nipônicos, pele escura e olhos azuis?

A verdade é que, passado tanto tempo (ou quase nada em termos geológicos), ainda não sabemos quem somos, e qualquer maniqueísmo serve apenas para confundir, e não elucidar. Até porque a humanidade habita uma zona cinzenta, um latifúndio devastado sem pátria ou proprietário, onde a perversão, o ódio e a indiferença convivem lado a lado, até com uma certa harmonia, com o altruísmo, a compaixão e o amor. Impossível separar bons e maus em departamentos estanques, como jogadores de uma partida de vôlei, devidamente cindidos por uma rede imaginária. Estamos mais para peladeiros numa partida de futebol disputada na várzea, com todo o contato físico que ela implica e na qual a lama e a poeira vão aos poucos diluindo as cores dos uniformes, fazendo com que todos pareçamos idênticos, como membros de uma mesma irmandade marrom e indefinida. É isso que somos, até que se prove o contrário.

sábado, 16 de maio de 2009

Os piores cegos


Nunca esqueci de uma crítica que Inácio Araujo escreveu na Folha de S.Paulo sobre Mar Aberto, aquele thriller angustiante em que um casal é esquecido em alto-mar durante um passeio de mergulho. Nem tanto pela brilhante análise que fez do filme em si, mas pela maneira como refletiu sobre o vazio psicológico dos personagens, que segundo Inácio tinham “à disposição apenas lugares-comuns para se comunicar”. Fui ao arquivo digital do jornal e recuperei o texto, que inclui o seguinte trecho: “Podemos indagar sobre o significado de vidas que parecem copiadas de catálogos publicitários, que vivem uma aventura de angústia profunda sem nunca a experimentarem em toda a intensidade.
 Daí, talvez, o final silencioso restituir-nos esse enigma do que seja uma vida”.

É uma análise precisa de como algumas pessoas – muitas, aliás – transitam numa espécie de universo paralelo, no qual tudo que produz incômodo ou desconforto se torna invisível. Pessoas com apenas duas dimensões, planas, chapadas, sem contrastes ou assimetrias, incapazes de romper a existência de papel couchê em que estão encarceradas. São como fotocópias coloridas de um único e bem-sucedido modelo de existência. Bem-sucedido no sentido de provocar um bem-estar contínuo, por mais que esse bem-estar seja ele também uma fotocópia, como aqueles folhetos luxuosos dos lançamentos imobiliários de alto padrão: uma convenção preestabelecida, rigorosamente respeitada e seguida. Famílias inteiras são construídas de acordo com essas convenções, e quando me deparo com pessoas assim – e me deparo quase todo o tempo – tenho a impressão de que não vejo uma vida, e sim um estereótipo, solidamente oco como todos os estereótipos.

Mesmo os conflitos, os dramas vividos padecem de uma falta de autenticidade atroz, quase uma simulação dramatúrgica hiper-realista. Só que estamos falando aqui de gente, gente que se reproduz, adoece e morre sem que efetivamente se entranhe nessas e em outras experiências. Gente cuja indiferença (inclusive em relação à injustiça e à desigualdade) é uma espécie de mecanismo de autodefesa. Imagino, portanto, que a superfície deva ser um território seguro e tranqüilo, um oásis de frivolidade onde é possível criar os filhos em condomínios fechados, conviver com iguais, ir a festas badaladas, destilar amenidades, exercitar o esnobismo, beber vinhos caros não porque são vinhos, mas porque são caros, sorrir risadas postiças, crer remotamente em alguma instância superior e, de vez em quando, sofrer um pouco, para mostrar que a vida, afinal, não é só uma festa móvel.

Não faço aqui, obviamente, uma apologia do sofrimento. Penso até que nossa brevíssima passagem pela Terra seria menos traumática se não levássemos ao longo dos anos tantas rasteiras do acaso. Faço na verdade uma apologia da lucidez, do mergulho vertical rumo à zona abissal que é a existência humana. Abdicar deliberadamente do colossal conhecimento apreendido e acumulado nesses cinco mil e tantos anos é jogar fora a dádiva fatal que nos foi dada. É desperdiçar a única aventura que realmente importa nesses 70 anos ou pouco mais que temos antes do oblívio. Lembro agora do Ivan Ilitch de Tolstoi lamentando a brevidade da própria vida, constatando que não viveu como deveria e concluindo que sua vida estava envenenada e que o veneno não seria eliminado, mas sim penetraria cada vez mais nele. Ilitch ao menos conseguiu, já nos estertores, empreender o mergulho, mas aí já era tarde e o estrago tinha sido feito. A maioria, porém, opta por permanecer na superfície, imune a essa chaga imunda e imperfeita chamada realidade. Como o pior cego, aquele que não quer ver, do ditado popular.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Tão longe, tão perto


Às vezes basta uma ironia involuntária para nos darmos conta de um absurdo crucial da condição humana: o abismo que separa nossas conquistas – sejam elas intelectuais, científicas ou artísticas – das nossas desditas cotidianas. Ao ler a Folha de S.Paulo de ontem, me deparei com uma esclarecedora reportagem sobre o caos político que vem minando a vida de milhares de civis no Sri Lanka, país de nome exótico situado ao sul da Índia. Multidões morrendo de inanição ou bombardeio, fugindo em massa para se instalar de forma precária em barracos improvisados, enquanto o governo local e o grupo rebelde Tigres Tâmeis se flagelam num ritual antropofágico movido a minas terrestres, submetralhadoras e ataques suicidas. E, justamente na página seguinte (daí a ironia involuntária a que me referi no início), encontro uma matéria sobre o conserto do telescópio espacial Hubble, aquele que nos traz imagens comoventes dos confins do universo. Olhei agora para o céu limpo, no qual desponta um resto de lua minguante já caminhando para oeste, e tentei imaginar onde, no meio dessa vastidão escura, estaria ele, orbitando a Terra a 559 km de altitude. O Hubble é uma obra-prima da ciência, com suas imagens que viajam até o princípio do mundo para que nós, aqui nesta bola de gude celestial, possamos compreender – ou ao menos esboçar uma teoria plausível – de onde viemos, quem somos e para onde vamos. E aqui entra a seguinte questão: se chegamos tão longe, não poderíamos chegar tão perto? Não poderíamos ter um outro Hubble, tão potente e tecnologicamente sofisticado quanto o primeiro, só que direcionado para as entranhas do que chamamos civilização? Um Hubble que em vez da Nebulosa da Águia mirasse o Sri Lanka? Ou o Haiti? Ou o Sudão?
Não há nenhuma novidade em estabelecer, como faço agora, um paralelo crítico entre a nossa evolução científica e o nosso malogro social. Mas não é sintomático que o passar do tempo não nos tenha trazido sequer um arrefecimento das nossas desgraças? Neil Armstrong e o garotinho sem uma perna no campo de refugiados de Vavuniya pertencem à mesma espécie? Se pertencem, então de que forma o pequeno passo dado pelo primeiro ao pisar na Lua representou um salto gigantesco para a humanidade, o segundo aí incluído? A verdade é que dois mundos distintos e estanques convivem lado a lado, como em outros tempos conviveram o homo sapiens e o homem de Neanderthal. Se o Hubble estacionado a 500 km do solo representa o nosso roçar primevo e ainda incipiente numa realidade de ficção-científica, o Sri Lanka nos lança de volta à pré-história. Talvez Stanley Kubrick quisesse dizer exatamente isso quando seu hominídeo arremessou o osso rumo ao céu e ele se transformou em espaçonave. Ou seja, que passado e futuro são apenas simulacros grosseiros um do outro, refletindo, cada um a seu modo, o nosso fracasso como espécie. Sinceramente, não sei se é por aí. Sei apenas, do alto da minha insipiência, que um dia o sol vai explodir, sugando tudo ao redor, inclusive as cidades, guerras, anéis de ouro, televisões de plasma, telescópios espaciais e garotos famintos. E passado e futuro vão pertencer à mesma massa amorfa da eternidade, como ingredientes de um bolo já ingerido.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Rebeldia de almanaque


Aos 18 anos eu ansiava por rebeldia. Queria pôr em prática os ensinamentos obscuros que havia absorvido nas leituras incipientes do Manifesto Comunista (em edição condensada e didática) e do volume O que é socialismo?, da coleção Primeiros Passos. Ou seja, apesar de conhecer apenas a quintessência da superfície, me sentia preparado para emitir palpites definitivos sobre o universo da foice e o martelo ou me juntar à marcha heróica de alguma revolução iminente. Bobagens, claro. No final dos anos 80, num país recém-saído e ainda traumatizado pela ditadura, tudo o que a garotada da minha geração queria era namorar, beber e jogar bola – atividades às quais eu também me dedicava com afinco, embora sem muito êxito. Havia, porém, um incômodo com aquela realidade edulcorada, que logo se traduziu em inadequação. Sabia desde a infância que vivia no lugar e na época errados, mas ao atingir a maioridade, com os hormônios pulando dentro de mim como foliões no Carnaval baiano, a situação se agravou. O que fazer com aquela imperiosa necessidade de sublevação, se não havia armas nem bandeiras para empunhar? Reconheço que teria sido presa fácil de algum messias vermelho disposto a depor o Estado para implantar uma ditadura do proletariado. Assim como reconheço a frustração por ser velho demais, já trabalhando e deixando a primeira faculdade no meio, quando os caras-pintadas, com sua rebeldia alegórica, saíram às ruas para exigir a saída de Collor e sua corja. Ou seja: fiquei num limbo entre os soturnos militantes do VAR-Palmares, ALN e MR-8 e a gente bronzeada que mostrou seu valor com as bochechas em verde e amarelo. E quer saber? Abençoado seja esse limbo.

Mas esta semana, ao ler uma história deliciosa protagonizada por Frei Betto em 1968 (publicada no Estadão), percebi um tênue sabor de rebeldia na saliva, ficando com uma inveja danada daquele pessoal que não dormia nunca. Chefe de reportagem do extinto Folha da Tarde, Betto foi convidado (por ser o único com o passaporte em dia) para cobrir com outros nove repórteres o casamento de Roberto Carlos e Nice na Bolívia (explica-se: como o divórcio ainda não era legalizado no Brasil e Nice era separada do primeiro marido, eles precisaram oficializar o matrimônio em solo estrangeiro). Já bastante endinheirado, o criador dos detalhes tão pequenos de nós dois fretou um avião para levar esse pessoal ao país vizinho, onde Ernesto Che Guevara fora assassinado meses antes pelo exército local, com ajuda da CIA. Frei Betto poderia tranquilamente escrever algumas linhas atulhadas de frivolidade sobre o evento e em seguida encher a cara e a pança no banquete promovido pelo Rei. Fez a primeira parte, mas trocou a embriaguez do álcool pela embriaguez de um sonho jornalístico. Entrevistou um monte de gente que conviveu com Guevara na selva ou participou da sua captura, chegando a pedir uma audiência com o então presidente boliviano, o general René Barrientos, no Palácio Quemado, sede do governo. Foi lá que conseguiu o maior furo de sua curta vida de jornalista, ao perguntar: "Afinal, quem mentiu? O senhor, ao dizer que Che foi enterrado, ou o chefe das Forças Armadas, general Alfredo Ovando Candía, ao afirmar que ele foi cremado?". Barrientos respondeu tranquilamente: “Nenhum dos dois mentiu. Parte do corpo foi enterrada, parte, cremada". Naquele momento, a lenda acabava de dar lugar ao fato.

É verdade que hoje, quando Che Guevara está mais para um mito pop do que para um grande homem do seu tempo, tudo isso soa meio ingênuo e inócuo. Mas o mundo fervia em 1968. E eu não estava lá para descarregar todo o meu desconforto existencial de almanaque.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Em carne viva


Algumas obras nos marcam tanto que é impossível voltar a elas, de tão dilacerante que foi a experiência. Outro dia postei um comentário no blog de Luiz Carlos Merten (http://blog.estadao.com.br/blog/merten/) – que considero o mais preparado e sobretudo o mais sensível crítico de cinema do país – sobre a não-inclusão de Ninguém Pode Saber numa dessas listas de melhores filmes do século 21. Não imaginava que, assim como eu, ele também devota profunda admiração por esse trabalho do japonês Hirozaku Kore-Eda, tendo até citado outros longas do autor que não conheço e postado uma entrevista que fez com ele – um humanista convicto e cultor da alteridade – em Cannes. Ninguém Pode Saber é uma dessas obras a que me referi no início. Não conseguiria enfrentá-la de novo, agora sabendo de antemão em que culmina a série de infortúnios por que passam quatro garotinhos abandonados pela mãe num apartamento em Tóquio. Seria, de certa forma, como retornar a um trauma pessoal atenuado pelo tempo. Deve haver, em alguma região da minha mente, uma superfície em carne viva, que se inflama de imediato ao descobrir ou presenciar qualquer tipo de agressão – física ou psicológica – contra crianças. E o abandono dos filhos na história de Kore-Eda, surpreendentemente baseada num episódio real ocorrido no Japão, é uma dupla agressão, capaz de provocar um talho invisível que se aprofunda progressivamente na carne e no espírito daqueles meninos. Merten adiantou também que o cineasta está de volta ao Festival de Cannes com Still Walking, sobre uma mãe que persegue uma borboleta por achar que ela é a reencarnação do seu filho morto. Em 2004, Ninguém Pode Saber perdeu para o engajado documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, numa decisão essencialmente política do então presidente do júri, Quentin Tarantino.

Segue abaixo um texto que escrevi na época do lançamento desse que considero um dos grandes filmes deste sombrio e ainda incipiente século 21.

  

O desamparo dos inocentes*

 Cineasta japonês imerge no abandono e na indiferença no dilacerante ‘Ninguém pode saber’

 Paulo Sales

Há filmes que nascem para confrontar o espectador com seus sentimentos mais dolorosos, permitindo a ele alcançar a essência da própria insignificância. Ninguém pode saber (Dare mo shinarai, 2004) pertence a essa estirpe. Um dos principais expoentes do novo cinema japonês, Hirozaku Kore-Eda aborda com sensibilidade e ternura temas como desamparo e indiferença, tendo como ponto de partida um fato real (e tristemente comum no Japão), ocorrido em Tóquio na década de 80: uma mãe que abandonara os quatro filhos num apartamento na periferia da cidade, apenas com um pouco de comida. Munido desse alicerce, o cineasta concebeu uma história dilacerante.

A mãe, em Ninguém pode saber, comporta-se de maneira infantil e se envolve em relacionamentos fortuitos. Através deles, teve quatro filhos de pais diferentes. Ela se muda com as crianças para um apartamento pequeno e aconchegante, numa região pacata de Tóquio. À exceção do mais velho, Akira (Yuya Yagira, ganhador do prêmio de melhor ator no Festival de Cannes), de 12 anos, os outros chegam ao prédio escondidos (dois dentro de malas e uma que viajou separada do grupo). O motivo: no Japão, mães solteiras cheias de filhos são malvistas e dificilmente conseguem alugar apartamentos.

Assim, as quatro crianças vivem praticamente aprisionadas, enquanto a mãe sai para trabalhar e se divertir. Precocemente maduro, Akira supre essa ausência cuidando da casa e dos irmãos, indo ao banco, comprando e cozinhando comida. Na primeira vez, a mãe fica um mês fora. Na segunda, não volta mais. Akira, Keiko (Ayu Kitaura), 10 anos, Shigeru (Hiei Kimura), 7, e Yuki (Momoko Shimizu), 4, tentam sobreviver longe da escola e dos parques de diversão, contando apenas com o amor mútuo. Os pais, quando são encontrados, revelam-se indiferentes e apenas dão alguns trocados a um Akira cada vez mais preocupado com a conta bancária e com o destino dele e de seus irmãos.

Os meses passam, a mãe já é uma lembrança distante e os meninos vão ficando cada vez mais empobrecidos e com roupas puídas, enquanto as contas começam a atrasar (luz, água e gás são cortados). Todo esse drama é vivido em silêncio, evidenciando a frieza das relações sociais num país que vive para o trabalho. Akira não quer pedir ajuda a entidades assistenciais, pois teme a possibilidade de ver seus irmãos separados. Então acontece a pancada, o golpe que faz com que as crianças abandonem de vez o fiapo de inocência para encarar, com medo e tristeza, mas também com determinação inabalável, a vida adulta.

Kore-Eda apresenta o cotidiano das crianças - que oscila entre brincadeiras infantis, tédio e solidão - sem apelar para qualquer golpe baixo. Não há sentimentalismos na narrativa, embora ela comova profundamente. Rodadas com câmera na mão e pontuadas por uma bela trilha minimalista, as cenas são compostas de longos silêncios e pequenos detalhes dos corpos das crianças, como as mãos que se apertam ou se acariciam. Conduzidos com maestria, os pequenos atores revelam-se sublimes em sua espontaneidade. E o diretor maneja o tempo a seu favor, construindo seqüências longas e contemplativas, como só o cinema oriental é capaz de construir.

Ninguém pode saber é uma obra-prima, em tudo que essa definição encerra em termos de reflexão e profundidade. Aproxima-se, nesse sentido, de uma arte ainda mais reflexiva: a literatura. Ao mostrar o cotidiano de quatro crianças abandonadas e sua capacidade de sobreviver nas condições mais adversas, Kore-Eda celebra a vida e questiona as formas que escolhemos para desfrutá-la: o tempo desperdiçado, a brutal apatia em relação ao outro e, acima de tudo, a ausência de sentimentos num mundo árido e desprezível.

 

* Publicado originalmente no Correio da Bahia

sábado, 2 de maio de 2009

Um mundo em extinção


Não sei quem escreveu que quando uma pessoa morre, morre um mundo com ela. Muito menos quem concebeu o clichê de que cada cabeça é um mundo. Sei apenas que, mais do que frases de efeito, são reflexões de uma exatidão primorosa. Há uns cinco anos, minha tia-avó (na verdade o mais próximo que tive de uma avó em termos de afeto e presença) sugeriu que eu escrevesse um livro contando a história da vida dela. Estávamos na varanda da minha casa conversando, e ela então passou a listar vários acontecimentos interessantes que a tornaram o ser humano que se tornou: uma pessoa de semblante invariavelmente alegre, com uma sede de viver invejável, que trabalhou mais de 50 anos como enfermeira em tudo quanto é canto. Eram acontecimentos não apenas da vida dela, mas pertencentes também à saga da minha família, iguais aos de muitas outras, mas por outro lado completamente distintos (não foi por acaso que Tolstói iniciou Anna Karenina dizendo que todas as famílias felizes são iguais entre si. As infelizes são infelizes cada uma à sua maneira). Nessa época, minha tia já havia passado dos 80 anos, e hoje ela completou 87. Mas a pessoa que encontrei, primeiro numa missa, desinteressante como quase todas as missas, e depois sentada numa cadeira na sala de sua casa, não era mais a pessoa que cinco anos antes me relatara casos pitorescos. Como aquele em que foi raptada na infância pelo pai marinheiro, que a levou para morar com ele no Rio, e só depois de algum tempo e algumas confusões jurídicas voltou para a mãe, minha bisavó, mulher pobre e viúva recente, que conhecera esse marinheiro e com ele tivera minha tia. Ela lembrava inclusive de uma “laranjinha gelada” que chupou no navio que a levava para a então capital brasileira junto com o pai, que a amava.
É esse mundo que de certa forma está acabando, como uma vela no fim, enquanto minha tia se lança inevitavelmente rumo à senilidade, numa espécie de morte a conta-gotas. Mesmo que eu tente reproduzir aqui esta e outras histórias, elas serão apenas um espelho do que aconteceu oito décadas atrás, e nunca o acontecimento real, as sensações ambíguas, o sabor inconfundível da laranja, o temor da separação e talvez um incipiente senso de aventura naquela cabine de navio, vendo o oceano revolto à sua frente. Hoje ela me olha, mas não me vê. Olha para minha filha, sua afilhada (como eu), e vê apenas uma garotinha desconhecida. Não sabe que 11 anos atrás celebrou meu casamento, após aceitar o convite para ser a sacerdotisa de uma cerimônia informal e divertida, regada a uísque e canções do Creedence. Não sabe sequer que foi raptada e andou de navio, e que sua vida teria sido completamente diferente se tivesse ficado por lá, vivendo com outra família e com uma condição financeira melhor do que sua mãe poderia oferecer. Senti uma pontada de tristeza ao constatar que a longevidade, no seu caso, não foi um bom negócio, pelo menos nesses últimos dois anos em que sua memória se pulverizou. E, com este texto, tento sem êxito reparar o que fiz ao não atender ao seu pedido de pôr no papel uma vida bem vivida, mas que, como todas as outras, se aproxima a passos de lebre do ponto final.