terça-feira, 26 de maio de 2009

As cinzas da história


Cheguei a duvidar das palavras de Mario Vargas Llosa quando atingi a página 50. Até aquele momento, Soldados de Salamina me parecia um bom livro, e não um “livro magnífico, dos melhores que li em muito tempo”, segundo o autor de Tia Julia e o Escrevinhador. Mas continuei desbravando a obra do espanhol Javier Cercas, alcançando a segunda parte (que me pareceu muito boa) e por fim a terceira. Só então compreendi a grandeza do romance, a sua força arrebatadora, que me impelia incessantemente rumo a um epílogo comovente, combinando de forma espantosa elementos típicos de um épico de guerra com incursões metalingüísticas (o livro dentro do livro, o narrador com o mesmo nome do autor, a homenagem ao escritor chileno Roberto Bolaño). Mais do que o estilo elegante, me chamou a atenção o olhar entre impiedoso e compreensivo com que ele se debruça sobre o falangismo, movimento que serviu de lastro intelectual para a escalada do fascismo na Espanha, tornando-se, após o golpe, o partido único da sanguinária ditadura de Franco. Cercas elege como cerne do livro um episódio surreal ocorrido com o político, cronista e escritor Rafael Sánchez Mazas, fundador da Falange e espécie de reserva moral (se é que isso pode ser possível) do franquismo. Preso pelos republicanos nos estertores da Guerra Civil Espanhola, Mazas foi para o paredon junto com outros fascistas, mas escapou milagrosamente do fuzilamento e fugiu pelo mato. Em meio à perseguição, foi flagrado por um soldado republicano, que não o denunciou. Personificando um Javier Cercas fictício (um escritor e jornalista fracassado), o autor refaz todo o percurso que o levou à história real de Mazas, das primeiras informações, colhidas com estudiosos e sobreviventes dos tempos do front até o fuzilamento, num dos trechos que desvelam a grande literatura praticada por Cercas:
“O soldado olha para ele; Sánchez Mazas também, mas seus olhos deteriorados não entendem o que vêem: sob o cabelo empapado, a testa larga e as sobrancelhas pontilhadas de gotas, o olhar do soldado não expressa compaixão, nem ódio, nem desdém, mas uma espécie de secreta e insondável alegria, algo no limite da crueldade e resistente à razão, mas que tampouco é instinto, algo que está no sangue com a mesma cega obstinação que o próprio sangue persiste em seus dutos e a terra em sua órbita inamovível e todos os seres em sua teimosa condição de seres, algo que se esquiva às palavras como a água do riacho se esquiva das pedras, porque as palavras só estão feitas para expressar-se em si mesmas, para expressar o dizível, quer dizer, tudo, exceto o que nos governa ou faz viver ou concerne ou somos, ou é este soldado anônimo e derrotado que agora olha esse homem cujo corpo quase se confunde com a terra e a água marrom da cratera, e que grita com força para o ar sem deixar de olhá-lo: Por aqui não tem ninguém! Então dá meia-volta e se vai.”
Porém, mais do que um estudo sobre a natureza do ódio, temos aqui um tratado sobre o altruísmo, já que percebemos que o verdadeiro objeto da obsessão de Cercas (o narrador, não o autor) não é Mazas – embora ele só se dê conta disso no final –, e sim o soldado anônimo que poupou a vida do falangista. A busca pela memória desse herói invisível responde pelos momentos mais pungentes de Soldados de Salamina, e o alçam à condição de obra maior. É quando Cercas discorre sobre literatura e jornalismo com Bolaño (numa homenagem ao prestigiado autor de Os Detetives Selvagens e Putas Assassinas) ou sobre guerra, heroísmo e esquecimento com Miralles, um veterano octogenário de muitas guerras que pode (ou não) ter sido o homem que salvou Sánchez Mazas da morte atroz numa clareira enlameada em algum lugar da terra devastada em que se converteu a Espanha no final dos anos 30. Através dessas conversas de forte teor emocional, descortina-se não apenas a aberração da guerra, qualquer que seja ela. Mas também a memória pulverizada dos que ficaram para trás, sem direito a futuro, nome ou gratidão, assassinados anonimamente como formigas numa calçada lotada de pedestres.

Literatura e jornalismo:

“Um escritor não escreve nunca sobre o que conhece, mas precisamente sobre o que ignora.”

“Nada irrita tanto um escritor que não escreve quanto perguntá-lo sobre o que está escrevendo.”

“Para escrever um romance não é preciso imaginação, só memória. Os romances são combinações de lembranças.”

“Um homem de ação é um escritor frustrado. Se Dom Quixote tivesse escrito um só romance de cavalaria, nunca teria sido Dom Quixote.”

“Um bom jornalista é sempre um bom escritor, mas um bom escritor quase nunca é um bom jornalista.”

Heroísmo e esquecimento:

“Pensei: nem uma única destas pessoas sabe desse velho meio caolho e terminal que fuma cigarros às escondidas e que agora mesmo está comendo sem sal a uns poucos quilômetros daqui, mas não há uma só que não esteja em dívida com ele.”

“Na realidade, eu acho que no comportamento de um herói há quase sempre algo cego, irracional, instintivo. Algo que está em sua natureza e ao qual não pode escapar.”

“Homens não pedem perdão: fazem o que fazem, dizem o que dizem, e depois agüentam.”

“Os heróis só são heróis quando morrem ou são mortos. E os heróis de verdade nascem na guerra ou morrem na guerra. Não há heróis vivos, jovem. Todos estão mortos. Mortos, mortos, mortos.”

“Ninguém se lembra deles, sabe? Ninguém. Ninguém se lembra sequer por que morreram, por que não tiveram mulher e filhos e um quarto com sol; ninguém, e menos que ninguém, as pessoas por quem lutaram. Não há nem haverá jamais uma rua miserável de alguma aldeia miserável de algum país de merda que venha a receber um dia o nome de algum deles.”

2 comentários:

Ricardo Ballarine disse...

Li "Soldados de Salamina" há uns cinco anos, e naquela época não bateu. Talvez tenha que retornar.

Paulo Sales disse...

É um livro que vai te pegando aos poucos. Mas a partir da segunda parte, e principalmente na terceira, é impossível não se comover com aquela história e com a desdita daquele país. Os diálogos da terceira parte são magníficos.