sábado, 16 de maio de 2009

Os piores cegos


Nunca esqueci de uma crítica que Inácio Araujo escreveu na Folha de S.Paulo sobre Mar Aberto, aquele thriller angustiante em que um casal é esquecido em alto-mar durante um passeio de mergulho. Nem tanto pela brilhante análise que fez do filme em si, mas pela maneira como refletiu sobre o vazio psicológico dos personagens, que segundo Inácio tinham “à disposição apenas lugares-comuns para se comunicar”. Fui ao arquivo digital do jornal e recuperei o texto, que inclui o seguinte trecho: “Podemos indagar sobre o significado de vidas que parecem copiadas de catálogos publicitários, que vivem uma aventura de angústia profunda sem nunca a experimentarem em toda a intensidade.
 Daí, talvez, o final silencioso restituir-nos esse enigma do que seja uma vida”.

É uma análise precisa de como algumas pessoas – muitas, aliás – transitam numa espécie de universo paralelo, no qual tudo que produz incômodo ou desconforto se torna invisível. Pessoas com apenas duas dimensões, planas, chapadas, sem contrastes ou assimetrias, incapazes de romper a existência de papel couchê em que estão encarceradas. São como fotocópias coloridas de um único e bem-sucedido modelo de existência. Bem-sucedido no sentido de provocar um bem-estar contínuo, por mais que esse bem-estar seja ele também uma fotocópia, como aqueles folhetos luxuosos dos lançamentos imobiliários de alto padrão: uma convenção preestabelecida, rigorosamente respeitada e seguida. Famílias inteiras são construídas de acordo com essas convenções, e quando me deparo com pessoas assim – e me deparo quase todo o tempo – tenho a impressão de que não vejo uma vida, e sim um estereótipo, solidamente oco como todos os estereótipos.

Mesmo os conflitos, os dramas vividos padecem de uma falta de autenticidade atroz, quase uma simulação dramatúrgica hiper-realista. Só que estamos falando aqui de gente, gente que se reproduz, adoece e morre sem que efetivamente se entranhe nessas e em outras experiências. Gente cuja indiferença (inclusive em relação à injustiça e à desigualdade) é uma espécie de mecanismo de autodefesa. Imagino, portanto, que a superfície deva ser um território seguro e tranqüilo, um oásis de frivolidade onde é possível criar os filhos em condomínios fechados, conviver com iguais, ir a festas badaladas, destilar amenidades, exercitar o esnobismo, beber vinhos caros não porque são vinhos, mas porque são caros, sorrir risadas postiças, crer remotamente em alguma instância superior e, de vez em quando, sofrer um pouco, para mostrar que a vida, afinal, não é só uma festa móvel.

Não faço aqui, obviamente, uma apologia do sofrimento. Penso até que nossa brevíssima passagem pela Terra seria menos traumática se não levássemos ao longo dos anos tantas rasteiras do acaso. Faço na verdade uma apologia da lucidez, do mergulho vertical rumo à zona abissal que é a existência humana. Abdicar deliberadamente do colossal conhecimento apreendido e acumulado nesses cinco mil e tantos anos é jogar fora a dádiva fatal que nos foi dada. É desperdiçar a única aventura que realmente importa nesses 70 anos ou pouco mais que temos antes do oblívio. Lembro agora do Ivan Ilitch de Tolstoi lamentando a brevidade da própria vida, constatando que não viveu como deveria e concluindo que sua vida estava envenenada e que o veneno não seria eliminado, mas sim penetraria cada vez mais nele. Ilitch ao menos conseguiu, já nos estertores, empreender o mergulho, mas aí já era tarde e o estrago tinha sido feito. A maioria, porém, opta por permanecer na superfície, imune a essa chaga imunda e imperfeita chamada realidade. Como o pior cego, aquele que não quer ver, do ditado popular.

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