terça-feira, 27 de setembro de 2011

Sobre homens e rinocerontes



Leio na Folha de S.Paulo que os rinocerontes estão sendo dizimados na África. Animais portentosos, eles são vítimas de caçadores que chegam até as savanas com artefato pesado: helicópteros, fuzis AK-47 e óculos de visão noturna. Ou seja, o que existe de mais inovador em tecnologia a serviço do que existe de mais primitivo na civilização. Este ano, foram mortos 279 rinocerontes só na África do Sul, todos eles com chifres amputados. É que na China (e também no Vietnã) o pó obtido com a moagem dos chifres é considerado milagroso: a ele são atribuídos desde o fim da impotência sexual até a cura do câncer, entre outros benefícios.

Não há, obviamente, qualquer comprovação científica. Nem haverá, já que o chifre é feito de queratina, o mesmo material de que são feitas as nossas unhas. Mas, em vez de arrancá-las das próprias mãos e pés e depois transformá-las em pó, os novos-ricos do império em expansão chinês preferem pagar até US$ 60 mil pelo quilo do pó de chifre de rinoceronte. Já não bastavam o espermacete extirpado das baleias e o marfim arrancado dos elefantes: agora se mata outro gigante para obter a poeira afrodisíaca do seu chifre. Chineses são particularmente afeitos à crueldade com animais. É só lembrar o que fazem com os ursos, torturados diariamente para a extração de bile, usada também para fins medicinais sem comprovação científica.

Mas seria injusto culpar apenas os chineses pela estupidez coletiva que se espalha para muito além das fronteiras asiáticas. Matar rinocerontes é apenas mais uma das aberrações rotineiras cometidas pelo ser humano. O que me faz pensar no quanto a evolução da nossa espécie é capenga, torta, como se assentada em areia movediça. Pelo visto, a seleção natural não legou necessariamente ao presente os seres mais inteligentes e sensíveis, e sim os mais brutalizados e capazes de transferir essa brutalidade às gerações seguintes. Basta uma rápida zapeada pelos canais de notícia ou uma folheada sem compromisso pelo jornal do dia para nos darmos conta da nossa própria bestialidade. E, por outro lado, da nossa própria genialidade.

Somos capazes de descobrir um planeta semelhante à Terra nos confins do universo, o HD85512 b, mas não conseguimos tirar o ronco crônico da barriga do nosso cardápio, mesmo sabendo que a produção global de alimentos é mais do que suficiente para prover três refeições diárias a todos os habitantes da Terra. Podemos nos comunicar via Skype ou MSN com um amigo na Nova Zelândia ou no Nepal, mas somos incapazes de nos comunicar com o cara que nos dá uma fechada no trânsito ali na esquina, pronto para uma briga, um tiro ou ao menos algumas palavrinhas pouco amistosas. Construímos prédios com mais de cem andares, mas também sequestramos aviões para jogá-los - e a nós mesmos - contra esses mesmos prédios. Sei que o uso da primeira pessoa do plural pode soar estranho nas frases acima, mas recorro a ela porque tenho consciência de que pertenço à mesma espécie de Amadeus Mozart, mas também à de Adolf Hitler.

A verdade é que, neste início de século cheio de som e fúria, idade contemporânea e idade da pedra prosseguem convivendo lado a lado, irmanadas e indissociáveis como gêmeas siamesas. Civilização e barbárie, sabedoria e abjeção. A mão que afaga é a mesma que apedreja, como escreveu Augusto dos Anjos. Não há diferença significativa entre matar um homem, um rinoceronte ou um percevejo. Mata-se sem objetivos claros, quase como um espasmo, um cacoete. É a nossa sina, a nossa maldição. Estamos ainda muito no início, por mais que as Ferraris, os Ipads e as tomografias computadorizadas digam que não. Habitamos um paradoxo feito de água, terra e ar, mas também de aço, concreto e fibras óticas. É nesse paradoxo que vivemos e nos abismamos, assistindo a neandertais modernos prosseguirem em sua busca por mais chifres, dólares e gigantes abatidos.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Sentado à beira do caminho



Quando comecei a viajar sozinho, sem meus pais, a classe média ainda não tinha chegado ao paraíso das viagens aéreas. Conheci o Brasil em longas jornadas noite adentro, muitas vezes enfrentando 18, 24, 32 horas em ônibus que pareciam fincar raízes na estrada. Não me arrependo. Muitas imagens se apagaram da memória, mas ainda guardo na retina cenas pungentes: velhos surgindo do nada e indo para lugar algum no meio da noite, neblinas que encobriam pastos e lagoas pouco antes da aurora, casinhas coloridas e já descoloridas pelo tempo e a miséria. Conheço o Brasil, sua vegetação monótona a se estender por quilômetros e estados intermináveis, sua pobreza quase intransponível, sua aridez acolhedora. Suportei o desconforto de ônibus que mesmo no início da viagem já revelavam o mau-cheiro do banheiro e do suor acumulado nas poltronas por viagens e passageiros sem fim. Suportei o tédio das noites insones, das manhãs de calor quase insuportável, dos finais de tarde arrebatadores.

Em janeiro de 1988, pouco antes de completar 18 anos, fiz minha primeira viagem desgarrado de meus pais. Mas ainda era uma viagem adolescente: fui com os pais de um amigo, e com mais outros dois amigos, para Brasília e em seguida para uma pequena cidade chamada Ipameri, ao sul de Goiás. Ficamos numa fazenda linda, com tucanos, pés de goiaba e pessoas cuja bondade era quase uma característica física, como a pele torrada de sol e os traços ligeiramente oblíquos. Foi o primeiro clarão, a chama primordial, e percebi ali que amaria conhecer novas paragens, deixar enfim o ninho e enveredar pelo país. Repito: ainda não era possível, para um adolescente de classe média, ir à Europa ou mesmo à Argentina. Afinal, estávamos na década perdida.

Aos 20 anos, em outubro de 1990, deixei tardiamente a puberdade e me lancei na idade adulta. Depois de 50 horas, completei o percurso que separa Salvador do Rio Grande do Sul. Estava, enfim, longe da zona de conforto e da companhia dos amigos no ônibus. Sozinho como um espantalho na lavoura. Chegava ao sul, então o ponto extremo, a minha Terra do Fogo particular. Essa viagem até hoje representa uma cisão na minha existência, uma fratura no meu percurso linear. Não conheci apenas um estado. Conheci novas formas de convivência, novos sotaques e um novo olhar sobre o que queria para mim mesmo (embora ainda hoje não faça idéia do que queira para mim mesmo). Ao lado de uma grande amiga, percorri o estado de carona, subindo em carros e caminhões desconhecidos, deixando o frio me tomar e me levar ao acaso, sem rumo, guiado por intuições de última hora. No sul conheci amigos genuínos, mulheres inebriantes e a exata percepção de que a vida era muito mais do que minha provinciana rotina soteropolitana julgava crer. Ali eu me achei, e me perdi.

Continuei viajando nos anos seguintes, enveredando Brasil adentro de ônibus, das serras mineiras ao agreste cearense. Mas algo em mim se perdeu no sul, e não foi minha inocência. Talvez a percepção de que o mundo não me reservaria mais noites como aquelas, pessoas como aquelas, descobertas como aquelas. Hoje, duas décadas depois, percorro distâncias bem maiores em bem menos tempo, me enchendo de Lexotan para evitar o pânico da vulnerabilidade absoluta. Recorro ao conforto dos bons hotéis, dos carros alugados e dos bons restaurantes. E tento resgatar quem fui: aos 20 anos, cantando Belchior na beira de uma estrada da Serra Gaúcha: "Até parece que foi ontem minha mocidade". O polegar levantado, o olhar impetuoso e uma sensação inequívoca de que a vida inteira se descortinava à minha frente.

sábado, 17 de setembro de 2011

Nossa grande geração perdida



Outro dia, Adriano Silva escreveu no blog Manual de Ingenuidades um texto muito interessante sobre o legado – ou a ausência de – que a nossa geração (os milhões de brasileiros nascidos entre 1965 e 1975) vai deixar para o futuro. Nele, o jornalista faz uma comparação entre os quarentões de hoje e os da geração anterior à nossa, e sua constatação é impiedosa: “Nós não estamos deixando marca alguma na música, nas artes, na cultura. Somos uma geração pequena. Ínfima em termos de manifestações que captam, marcam e traduzem o espírito de um tempo e que fazem a história. E que não está deixando nenhuma herança, nenhuma contribuição anímica relevante para a próxima geração. Não implantamos nenhum paradigma para ser superado por eles. Nós não fizemos nenhuma revolução, não trouxemos nenhuma voz nova ao microfone. Somos uma geração conservadora, de manutenção – e não uma geração renovadora, de ruptura”.

Lembrei do texto de Adriano ao assistir, na noite de anteontem, ao documentário Uma Noite em 67, que rememora o 3o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, ocorrido em 21 de outubro daquele ano. O filme de Renato Terra e Ricardo Calil mescla imagens de arquivo com depoimentos atuais dos principais protagonistas do festival. E através dele vemos uma geração vitoriosa. Recém-saídos da adolescência, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Carlos e Edu Lobo começavam ali a consolidar seu nome na história da cultura nacional. Havia muito talento reunido, mas havia também a percepção de que eles não seriam apenas um hiato entre uma geração e outra. Seriam A geração.

Todos os artistas que citei acima são hoje sessentões. Há pelo menos 40 anos têm uma carreira solidificada e fazem parte, merecidamente, do cânone da música popular brasileira. Eles chegaram lá. E, como Adriano Silva em seu texto, eu também pergunto: e nós, onde chegamos? Há, é claro, artistas respeitados no país com idade entre 35 e 45 anos. Gente boa, talentosa e batalhadora na música, na literatura, no cinema, no teatro. Mas que, quando reunida, não dá voz a uma geração. Nosso principal legado é a invisibilidade. Somos culturalmente desimportantes.

Eu mesmo acreditava, aos 20 anos, que possuía um talento particular. Via em mim um pequeno gênio incompreendido, capaz de escrever poemas cheios de som e fúria e romances que mudariam o curso das letras mundiais. Mas basta uma rápida folheada na papelada amarelada que escrevi nesse período para perceber que os poemas não foram escritos por algum Rimbaud tropical nascido nos estertores do século 20. Nem os arremedos de romances cheios de diálogos pueris deixam entrever um novo Hemingway ou Fitzgerald. Não fui o único. Os amigos que fiz ao longo de décadas, muitos dos quais me pareciam talentosíssimos, também não vingaram. Hoje sobrevivem em empregos para os quais não parecem ter sido talhados e toda aquela centelha dá mostras de ter se apagado.

Mas por que não conseguimos? O que fez com que fracassássemos como arautos do fim de século? Acho que faltou, sobretudo, talento. Mas houve também alguma imaturidade, falta de senso de oportunidade e uma opressora dificuldade de lidar com as obrigações da vida moderna. No início dos anos 1990, não havia mais espaço para a porralouquice nem para o desbunde, muito menos para o engajamento nas questões sociais que foram marca registrada da geração anterior. Estou chutando, claro, e discordâncias serão bem-vindas. Apenas tateio as nossas vulnerabilidades para tentar entender o que deu errado. Mas, por outro lado, será que não estou sendo rigoroso demais, pegando pesado demais? Afinal, se ainda não fizemos não significa que não faremos. Como diria Renato Russo, é preciso acreditar na nossa grande geração perdida. Tenho 41 anos. O que me impede de começar agora, do zero, uma improvável carreira literária ou quem sabe até me lançar como um roqueiro temporão (não, a coluna não deixaria, muito menos o senso do ridículo). O negócio, enfim, é partir para cima, como um atacante veterano em busca do milésimo gol. Quem sabe a gente não consegue?