quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Uni, duni, tê


Alguém ainda lembra de Hermes Aquino? Quando criança, eu adorava a música Nuvem Passageira, que acredito tenha sido seu único sucesso, e me intrigava a suavidade com que ele cantava aqueles versos, como se quisesse esconder o verdadeiro significado deles. “Você não vê que a vida corre contra o tempo? Sou um castelo de areia na beira do mar”. Todos nós somos. No caso de alguns, a maré alta surpreende antes da hora e destrói o que parecia feito para durar muito mais do que uma tarde. Mario Quintana uma vez escreveu: “Que haverá com a lua que sempre que a gente a olha é com o súbito espanto da primeira vez?”. A morte provoca um espanto semelhante: por mais que a presenciemos todos os dias nos jornais e nas conversas com parentes e amigos, sempre cabe o assombro, a lâmina no estômago, o desconforto mudo.

Desde o início, a maioria de nós tem consciência, ainda que fugidia, dessa condição provisória, do curto percurso que nos leva à velocidade da luz do berço à sepultura, mesmo que em alguns a fé aplaque o espanto e conduza à resignação. E nos surpreende mais ainda o caráter aleatório, que faz com que uns permaneçam até se cansarem da vida, enquanto outros se vêem privados dela antes mesmo de tateá-la inteiramente. É quase como os nazistas faziam – segundo o comovente relato de uma sobrevivente de Auschwitz ao repórter Geneton Moraes Neto –, ao decidir quem seria brindado com um banho de água corrente e quem levaria uma ducha de gás letal. Uni, duni, tê. Apenas uma imensa vastidão de acaso a nos assombrar.

Eu tinha 12 anos quando uma prima morreu, vítima de um tumor no cérebro. Até então, acreditava que os santos-anjos e pais-nossos ensinados por minha mãe seriam capazes, por si sós, de reverter o quadro, trazê-la de volta a uma vida saudável. Aos 16, já estava convertido ao ateísmo, crença que professo até hoje por falta de opção, e que só se fortalece quando leio histórias como a de Arthur Amorim Santos, definido em seu obituário na Folha de S.Paulo como “o pequeno paleontólogo”. Aos nove anos, Arthur se orgulhava de entender tudo de dinossauros. Conhecia todas as espécies e os períodos em que viveram, e chegou a escrever um livrinho sobre eles: As Aventuras de Yoshito. Morreu de um tipo raro de câncer, como um cristal bonito, que se quebra quando cai. O que dizer sobre isso, além do lamento aparvalhado? O que depreender de um fato tão cruel e ao mesmo tempo tão banal? Não é a primeira vez que escrevo sobre isso, nem será a última. A repetição funciona como um mantra obsessivo, mórbido talvez, que uso para tentar entender o vazio. Inutilmente, claro.

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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Novo feudalismo


Não lembro quem escreveu que a internet, ao invés de democratizar a informação e incentivar o pluralismo, está na verdade criando pequenos feudos onde as pessoas ficam entrincheiradas em suas opiniões, cada vez mais arraigadas e refratárias ao que o outro tem a dizer. Quando digo “o outro”, me refiro aos que possuem opiniões contrárias às da maioria e as expressam de algum modo, seja em artigos na imprensa, textos em blogs ou outro meio qualquer de comunicação. Não sei se é culpa da internet, mas o fato é que estamos ficando intolerantes. E essa espécie de “novo feudalismo”, na qual cada um é dono do seu quadrado e tudo que vem de fora é desqualificado sistematicamente, vem ganhando ainda mais força nos sites e blogs de política.

Ontem, li no blog do jornalista Luís Nassif uma nota afirmando que o historiador inglês Eric Hobsbawm elogiava o ex-presidente Lula, definindo-o como “o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil”, acrescentando que “no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles”. Uma bela frase vinda de um belo intelectual, humanista forjado no marxismo e na convulsão das duas guerras mundiais, que admiro profundamente desde que li A Era dos Extremos. O estranho, apenas, é que se trata de uma frase dita há dois anos, o que curiosamente não é informado no blog. Mas o que mais me chamou a atenção foi o espaço reservado aos comentários dos leitores. Quase sem exceção, eles elogiavam Hobsbawm e aproveitavam para desancar o poeta Ferreira Gullar, que no domingo passado escreveu, em sua coluna na Folha de S.Paulo, um virulento ataque ao ex-presidente. Como se uma opinião automaticamente excluísse a outra.

Tanto Hobsbawm quanto Gullar apresentam argumentos pertinentes para justificar seus elogios e críticas, respectivamente. Pode-se concordar com eles ou não, mas vale a pena ler o que têm a dizer, para o bem de uma consciência crítica plenamente formada. Foi o que acredito ter feito. Concordo em parte com Gullar, embora ache que Lula foi um dos maiores presidentes – se não o maior – que o Brasil já teve. Errou? Muito, sobretudo no primeiro mandato. E a forma demagógica com que atuou nos últimos anos é quase tão condenável quanto o apoio irrestrito a José Sarney, o descaso diante das denúncias do mensalão, a aproximação com o Irã e a recusa teimosa em reconhecer os méritos do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Essa é só uma amostra da fartura de equívocos cometidos na era Lula. Mas poderia elencar aqui uma série de virtudes do mesmo governo que fizeram desse período uma época sem precedentes, das quais o combate à exclusão social e à miséria absoluta foram as mais louváveis.

Fechar os olhos para essas contradições é agir com irresponsabilidade e desrespeito à história. E chamar um dos maiores poetas e intelectuais brasileiros de “gagá”, “fichinha” ou “representante das elites mais reacionárias do Brasil” é não aceitar a opinião do outro, por mais embasada e honesta que seja – e é, no caso de Ferreira Gullar. Mas na internet essa parece ser mesmo a regra. Os esquerdistas se entrincheiram em blogs como o de Nassif e os direitistas ficam aquartelados no portal de um Reinaldo Azevedo, por exemplo (muito embora o conceito de direita e esquerda, hoje, seja absolutamente nebuloso).

Com isso, estimulamos o sectarismo e reprimimos a capacidade primordial de pensar por conta própria, discutir e convencer ou ser convencido. Afinal, é mais fácil se esconder em comentários anônimos ou vociferar contra o oposto (quase sempre com um vocabulário simplório e raciocínios que não se completam) como se ele fosse um inimigo da verdade. Neste universo digital de compartimentos estanques, o consenso se torna a regra e quem pensa diferente que vá procurar sua turma. Afinal, a internet não é uma mesa de bar, onde pessoas de todo tipo sentam, bebem, conversam, discutem e trocam conhecimento mutuamente, enriquecendo o debate sobre as coisas que realmente importam.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Lugar nenhum


Nos extras do DVD de Desejo e Reparação, o diretor Joe Wright conta que deixou uma cena de fora da edição final do longa, argumentando que, quando a assistiu, ela não lhe pareceu suficientemente realista: três soldados ingleses caminhando pelos campos devastados da França durante a Segunda Guerra se deparam com uma perna de criança no alto de uma árvore. Apenas a perna, que se desprendera do corpo após uma bomba ter atingido a casa em que ela morava com a família. Daquela criança anônima restara apenas a perna na árvore. Vi a cena, também incluída nos extras, e ela nem me pareceu assim tão insólita, embora seja mesmo difícil transformar em imagem e movimento o que antes era apenas um bloco de palavras, nascidas da imaginação prodigiosa de Ian McEwan, autor do romance em que o filme é baseado.

McEwan imaginou uma perna no alto de uma árvore, mas a realidade muitas vezes consegue se embrenhar ainda mais fundo no território do absurdo. Hoje, vi a foto de um filhote de elefante morto no alto de uma árvore, a quatro ou cinco metros do rio que corria embaixo. Era como uma fruta estranha, pendendo dos galhos de uma floresta no Sri Lanka, onde – assim como no Brasil – as águas estão matando. Na região onde o elefante foi achado, elas subiram 5,5 metros, o que explica um animal tão pesado pendurado lá em cima quando voltaram ao nível normal. Não há ficção capaz de recriar uma imagem assim sem que o romance em questão não seja rotulado como uma obra de realismo fantástico. Trata-se de território exclusivo do absurdo, do onírico, mas ao qual de tempos em tempos a vida real se lança, deixando o mundo atordoado.

No Brasil, ao contrário, o que temos é um romance enfadonho, que se repete a cada ano com o festival de horrores habitual: casas, ruas e bairros desaparecendo em minutos e mortos aparecendo em escala semelhante à de grandes terremotos. Aqui, o nonsense tem como matérias-primas a monotonia e a reincidência. Mesmo as imagens – com algumas exceções que só confirmam a mesmice – parecem saídas do banco de dados das emissoras, num espetáculo de som e fúria que não significa nada. Contabilizamos nossos prejuízos, choramos nossos mortos, festejamos nossos sobreviventes e não identificamos nossos culpados. Nossa jornada é a dos errantes, que esquecem o passado para tentar prosseguir. Calando a dor, escondendo as lágrimas e caminhando inapelavelmente rumo a lugar nenhum. 

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

O princípio do terremoto


Há algum tempo já era possível perceber que o debate político nos Estados Unidos equilibrava-se de forma perigosa sobre placas tectônicas movediças – e que em algum momento o terremoto seria inevitável. Pois ele (ou sua primeira manifestação) aconteceu no último sábado, em Tucson, no Arizona. Um sujeito com nebulosas motivações políticas matou seis pessoas e feriu outras 14, incluindo a deputada democrata Gabrielle Giffords, uma das mais ativas representantes do Partido Democrata no Congresso americano, que permanece em estado gravíssimo. Atentados como esse ocorrem vez por outra nos Estados Unidos, país que tem entre seus pilares o belicismo atávico e o respeito sagrado às liberdades individuais – até mesmo para comprar uma pistola automática no supermercado da esquina.

Mas há algo de diferente neste caso em relação ao massacre de Columbine, por exemplo. Estamos diante da personificação, na prática, da retórica extremista do Tea Party, o movimento da extrema direita capitaneado, entre outros, por Sarah Palin, ex-senadora e candidata derrotada ao cargo de vice-presidente. Uma retórica que insufla preconceitos e reverbera ao máximo os já virulentos discursos do Partido Republicano e as manifestações de cunho racista contra Barack Obama. É a incapacidade de aceitar o outro, ainda mais quando esse outro mexe com conceitos arraigados, ao pregar o fim de privilégios seculares e a necessidade de se repartir o bolo entre mais convidados. É curioso que o presidente esteja sofrendo ataques verbais tão pesados por conta principalmente de um projeto tão legítimo: a reforma da saúde, que vai proporcionar o acesso a hospitais e tratamentos para gente que nunca pôde contar com ele. Gente que pertence à escória, como aquela que George W. Bush largou à própria sorte em New Orleans para morrer na passagem do furacão Katrina. Como alguém em sã consciência pode se opor a isso? Ou melhor: como uma nação em sã consciência pode ter uma oposição liderada por Sarah Palin?

Obama, de fato, não conseguiu ainda retirar o país da sua pior crise econômica desde 1929, provocada em grande parte pela incompetência do antecessor. Parece claudicar em momentos cruciais, e em outros se vê paralisado pela complexidade e extensão da presença americana em outros países, mais um legado amargo de Bush. Se por um lado conseguiu avançar nas investigações em Guantánamo e programar a retirada do Iraque, por outro seu exército ainda continua matando civis indiscriminadamente no Afeganistão. Mas, acima de tudo, Obama passa a impressão de ser um sujeito bem-intencionado e preparado para conduzir os Estados Unidos a um novo patamar, distante do belicismo estúpido e da farra de bancos e especuladores imobiliários. Além, é claro, de se dispor a elevar milhares de pessoas à categoria de cidadãos americanos.

Por tudo isso, fica ainda mais difícil compreender o que querem os ultradireitistas, que na sua cruzada moralista e fundamentalista trazem de volta o discurso do medo e da paranóia, tão caro ao fascismo. Uma cruzada contagiosa, entretanto, que pode estar criando um cenário semelhante ao dos explosivos anos 60, quando um presidente foi morto e o seu provável sucessor (e irmão) também. Um período de acirramento dos conflitos raciais, que provocou a morte dos dois mais importantes líderes negros da história americama – e que de certa forma permitiu ao país mais poderoso do mundo ter hoje um negro no poder, fato que vai muito além de puro simbolismo.

A verdade é que algo vai muito errado quando o respeito às idéias e comportamentos alheios são solapados pela intolerância e pela estupidez de maneira tão aberta e ostensiva. É possível que estejamos assistindo ao despertar de um “momento novo e assustador”, como disse o jornalista Matt Bai, do New York Times (em artigo publicado hoje na Folha de S.Paulo). Bai acrescenta: “A questão mais premente é onde tudo isso vai acabar – se vamos começar a reavaliar o tom exacerbado de nosso debate político ou se estamos mergulhando em alta velocidade em um período assustador, mais semelhante ao final dos anos 1960. Tucson ou será a tragédia que nos trará de volta da beira do abismo, ou será a primeira de uma série de recordações sinistras que ainda estão por vir.”

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

País desvelado



Gosto de rever Central do Brasil sempre que o filme passa na tevê, como fiz na semana passada. E desta vez fiquei comovido ao me deparar com uma cena da qual não lembrava – e que me fez retroceder ao meu próprio passado. Lá estava a “pedra da boca” da minha infância, agora servindo de pano de fundo para uma seqüência em que Dora e Josué viajam num pau-de-arara. A mesma montanha que eu aguardava ansiosamente para ver quando passava por Milagres, no interior baiano, indo com meus pais rumo a Santa Inês, a pequena cidade onde minha mãe nasceu. Lembro que voltava a cabeça e ficava um bom tempo contemplando pelo vidro traseiro aquele enorme maciço de pedra com uma boca imensa esculpida naturalmente em sua face. Não deu para ver, no filme, se ainda havia na boca umas letras enormes formando a palavra Tyresoles, nome de uma fábrica de pneus que não sei se ainda existe.

A “pedra da boca” era apenas um dos atrativos de uma viagem de cinco horas, muitas vezes cansativa para um garoto de sete ou oito anos, que me transportava para um universo radicalmente oposto ao que estava acostumado. Minha mente de criança absorvia tudo aquilo com fascínio e avidez: a vastidão avassaladora de céu e sertão, as pessoas e animais que eram pouco mais que borrões na margem da pista, as estradas de uma Bahia árida e empobrecida cortando vilarejos anônimos – traduções de um país que aos poucos se desvencilhava do seu passado rural e seguia firme na direção do caos urbano. Quando me tornei adolescente, e já não acompanhava meus pais rumo a Santa Inês, continuei cruzando estradas. Agora de ônibus, reproduzindo numa escala muito maior o tédio e o encanto que experimentara na infância. Horas que não acabavam, dias que se sucediam e as mais lindas auroras da minha vida. Peregrinações – solitárias ou não – por Goiás, Minas, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, que me permitiram conhecer um Brasil indômito e incansável.

Hoje, com as passagens aéreas bem mais baratas, não há mais sentido em enfrentar 32 horas de ônibus de Salvador a São Paulo, por exemplo, se o mesmo trajeto pode ser feito em duas. Até porque as estradas se tornaram um fosso de insegurança e violência. Perdemos, por outro lado, a capacidade de conhecer verdadeiramente o país. Vamos para Nova York ou Paris e não sabemos mais o que significam nomes como Gijoca, Ipameri, São Mateus ou Curvelo, para ficar em pequenas cidades que conheci e das quais guardo boas recordações. Vivenciar a realidade do país em que nascemos é fundamental para descobrirmos as suas contradições e desigualdades – e tentarmos entender por que elas permanecem ano após ano. É algo, de certa forma, semelhante ao percurso empreendido por Dora em Central do Brasil, no qual ela não descortina apenas um novo mundo à medida que se embrenha nele. Descobre a si mesma também. O fato é que carregamos em nós este país arcaico, injusto e gigantesco, por mais que nos deslumbremos com as maravilhas do Primeiro Mundo e por mais que não nos identifiquemos com aquele povo encurvado, de pele ressequida e olhar parvo, que habita um território que não ousamos reconhecer como nosso.