terça-feira, 4 de janeiro de 2011

País desvelado



Gosto de rever Central do Brasil sempre que o filme passa na tevê, como fiz na semana passada. E desta vez fiquei comovido ao me deparar com uma cena da qual não lembrava – e que me fez retroceder ao meu próprio passado. Lá estava a “pedra da boca” da minha infância, agora servindo de pano de fundo para uma seqüência em que Dora e Josué viajam num pau-de-arara. A mesma montanha que eu aguardava ansiosamente para ver quando passava por Milagres, no interior baiano, indo com meus pais rumo a Santa Inês, a pequena cidade onde minha mãe nasceu. Lembro que voltava a cabeça e ficava um bom tempo contemplando pelo vidro traseiro aquele enorme maciço de pedra com uma boca imensa esculpida naturalmente em sua face. Não deu para ver, no filme, se ainda havia na boca umas letras enormes formando a palavra Tyresoles, nome de uma fábrica de pneus que não sei se ainda existe.

A “pedra da boca” era apenas um dos atrativos de uma viagem de cinco horas, muitas vezes cansativa para um garoto de sete ou oito anos, que me transportava para um universo radicalmente oposto ao que estava acostumado. Minha mente de criança absorvia tudo aquilo com fascínio e avidez: a vastidão avassaladora de céu e sertão, as pessoas e animais que eram pouco mais que borrões na margem da pista, as estradas de uma Bahia árida e empobrecida cortando vilarejos anônimos – traduções de um país que aos poucos se desvencilhava do seu passado rural e seguia firme na direção do caos urbano. Quando me tornei adolescente, e já não acompanhava meus pais rumo a Santa Inês, continuei cruzando estradas. Agora de ônibus, reproduzindo numa escala muito maior o tédio e o encanto que experimentara na infância. Horas que não acabavam, dias que se sucediam e as mais lindas auroras da minha vida. Peregrinações – solitárias ou não – por Goiás, Minas, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, que me permitiram conhecer um Brasil indômito e incansável.

Hoje, com as passagens aéreas bem mais baratas, não há mais sentido em enfrentar 32 horas de ônibus de Salvador a São Paulo, por exemplo, se o mesmo trajeto pode ser feito em duas. Até porque as estradas se tornaram um fosso de insegurança e violência. Perdemos, por outro lado, a capacidade de conhecer verdadeiramente o país. Vamos para Nova York ou Paris e não sabemos mais o que significam nomes como Gijoca, Ipameri, São Mateus ou Curvelo, para ficar em pequenas cidades que conheci e das quais guardo boas recordações. Vivenciar a realidade do país em que nascemos é fundamental para descobrirmos as suas contradições e desigualdades – e tentarmos entender por que elas permanecem ano após ano. É algo, de certa forma, semelhante ao percurso empreendido por Dora em Central do Brasil, no qual ela não descortina apenas um novo mundo à medida que se embrenha nele. Descobre a si mesma também. O fato é que carregamos em nós este país arcaico, injusto e gigantesco, por mais que nos deslumbremos com as maravilhas do Primeiro Mundo e por mais que não nos identifiquemos com aquele povo encurvado, de pele ressequida e olhar parvo, que habita um território que não ousamos reconhecer como nosso. 

2 comentários:

Andréa disse...

oi...tomei um susto qdo abri seu blog...encontrar essa boca, essa pedra, que tb faz parte da minha infancia...a família reunida, gente pra caramba (6 filhos) e a brincadeira de quem ia ver primeiro a boca grande na passagem para Jequié...e agora, sábado, estou retornando a minha terra com minha mãe para rever nossos lugares antigos, a casa, o jardim, a praça e possivelmente passar por Milagres e ver a boca, passar por Pau de Vela e tomar um suco (será que existe ainda?)...é sempre bom voltar as origens...beijoca

Paulo Sales disse...

Nossa, como fiquei feliz em compartilhar essa lembrança com você. Engraçado que da última vez que eu passei por lá tinha apenas treze anos (talvez tenha passado depois, mas não mais para ir a Santa Inês) e a pedra permanece firme na memória. Meu pai adorava a coalhada do Pau de Vela, era uma parada obrigatória. Não sei se ainda existe, mas existe na nossa memória, o que talvez seja o que realmente importa.
Beijo grande, mulé.