terça-feira, 30 de junho de 2009

Indóceis embora inúteis?


Em um trecho de A verdade das mentiras, Mario Vargas Llosa afirma que a literatura é “alimento de espíritos indóceis”. Ou seja: seríamos, os fascinados pelo delírio silencioso das letras, seres incapazes de habitar o conformismo ou habituar-se à mediocridade. Llosa diz mais. Diz que a literatura é essencial para evitar que uma sociedade “seja condenada a se barbarizar espiritualmente e a comprometer sua liberdade”. É uma pena, portanto, que sejamos tão poucos.

Mas, e se fôssemos muitos? Seria diferente? Tenho cá minhas dúvidas. Somos tão pouco afeitos a transformar o mundo para além das nossas confortáveis trincheiras virtuais ou impressas que não sei até que ponto conseguiríamos reproduzir na prática o que elucubramos na teoria. Qual é verdadeiramente o papel dos que se dedicam a pensar? Ou melhor: pensar é também uma forma de agir? Esses questionamentos me vêm à tona quando penso na inocuidade das nossas boas intenções. Sinceramente, não acredito que os amantes do conhecimento sejam capazes de evitar que uma sociedade se barbarize, seja espiritualmente ou no aspecto material. Afinal, a barbárie está aí, por todo lado, a nos assombrar. Tudo isso é uma ducha fria naquela afirmação de Monteiro Lobato, para quem um país se faz com homens e livros. Infelizmente, a argamassa que deu forma à maioria das nações é constituída de homens e armas.

Por outro lado, alimentar-se de cultura tem um lado francamente positivo, também abordado por Vargas Llosa: a luta silenciosa pela liberdade. É através dela que a aventura humana pela Terra ganha significado, embora ainda impreciso. Quando imergimos na leitura e passamos a olhar retrospectivamente o mundo, conseguimos vislumbrar a trajetória de sangue e dominação que marcou os últimos dez milênios e, consequentemente, criar empecilhos à sua repetição nos próximos dez. Se conseguiremos é outra história. Mas quem sabe, espíritos indômitos que somos, um dia a nossa guerra silenciosa, feita de alumbramentos solitários, correspondências virtuais e animadas conversas de botequim, trará resultados mais alentadores que a indiferença da maioria.

domingo, 28 de junho de 2009

Enfermidades


Assim como as pessoas, algumas sociedades também padecem, de tempos em tempos, de certas enfermidades. Em momentos específicos da história, é possível perceber uma espécie de Alzheimer coletivo: surtos de amnésia que em maior ou menor medida deságuam progressivamente no aniquilamento das convenções morais ou princípios éticos existentes. É como se vivêssemos num breu espesso, refratário ao aprendizado do passado, que ali fica reduzido a uma quase imperceptível mancha de luz na consciência. Outros momentos de nossa passagem pelo planeta se caracterizam por uma esclerose múltipla em grande escala. Não perdemos a consciência ou a lucidez, mas ficamos impossibilitados de reagir a estímulos, como se nossos braços e pernas imaginários estivessem incapacitados para entrar em luta corporal ou fugir o mais rápido possível da barbárie.

Tanto o Alzheimer quanto a esclerose múltipla puderam ser diagnosticados, por exemplo, na década de 1930, quando os Estados europeus de inspiração iluminista, civilizados (em termos) e sofisticados (idem), assistiram inertes embora conscientes à ascensão do nazi-fascismo, esta sim uma manifestação aguda de Alzheimer. O resultado, todos sabem, foi uma guerra entre a lucidez e a insânia que deu cabo de 200 milhões de vidas. Para nossa sorte, a primeira saiu vitoriosa (novamente em termos, já que a lucidez de antes deu lugar a insânia da Guerra Fria e das guerras quentes no Vietnã, Afeganistão, Coréia e outros quintais da dupla EUA-URSS). Bem ou mal, porém, as décadas de 50 a 70 presenciaram um esboço ainda que impreciso de um mundo melhor, ao menos nos Welfare States, ou Estados de Bem-Estar. Mesmo o Brasil do período dava sinais de que cumpriria a profecia de país do futuro formulada por Stefan Zweig, jogando por terra a crença do general De Gaulle de que não era um país sério.

Há muito pouco, quase nada, desse Brasil nos dias de hoje, assim como a esclerose múltipla deixou de assolar as sociedades atuais (já que nossa lucidez foi parar não se sabe em que nação escandinava). Por outro lado, padecemos de uma pandemia de Alzheimer, seja na Rússia, na África, no Oriente Médio ou nos EUA pré-Obama. Caminhamos, mas não sabemos para onde, cercados por terroristas suicidas, líderes abjetos e uma massa amorfa de ignorantes. Sobrevivemos como náufragos lutando contra rochedos pontiagudos, de um lado, e tubarões, do outro – ou seja, permanecemos reféns da velha máxima do “se ficar o bicho pega...”. Por mais que (e aí volto especificamente ao cenário brasileiro) os indicadores econômicos e sociais apontem para uma ligeira evolução, o que vemos é um país cindido entre ricos estultos e indiferentes e pobres bestializados e entregues a um arremedo de hedonismo sem fim. Só uma realidade assim poderia fabricar pais que jogam filhos pela janela, redes virtuais que propagam de forma natural o abuso sexual de crianças ou mesmo rapazes que arrastam um carro com um menino pendurado do lado de fora. Nessa terra de ninguém, o conceito de nação se pulveriza, como neurônios morrendo pouco a pouco num cérebro doente. E o que resta são os despojos de um passado promissor, borrados, apagados e inúteis.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Escapismo


Estava aqui pensando em tecer alguma analogia que fosse capaz de mensurar toda a sordidez que devasta a sociedade brasileira, tendo a classe política como ponto de partida – e possivelmente de chegada. Pensando na excrescência que é a figura de José Sarney, com seu bando de parentes espalhados por gabinetes alheios, seus discursos abjetos de falsa indignação e sua trajetória banal de homem público. Pensando também nas décadas de coronelismo estulto que levaram um estado miserável como o seu à derrocada quase irreversível. Derrocada que ele contesta, em artigo para a Folha de S.Paulo, comparando os indicadores sociais e econômicos desse estado aos das favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo, enxergando nisso – pasmem – algo de positivo.
Pensava, ainda, em como a corrupção se alastrou de tal maneira no nosso cotidiano, fazendo com que tudo ao entorno pareça maculado por uma ética excessivamente maleável, que nos permite, por exemplo, pagar propinas a esses criminosos que habitam os cartórios, amparados pelo conceito deturpado de funcionalismo público. Ou assistir novamente – esboçando apenas um resmungo exausto de quem trabalhou o dia inteiro – a mais um vídeo feito com câmera escondida, agora flagrando funcionários da Prefeitura de Curitiba ou algo assim recebendo dinheiro e sorrindo ao fazer piada com o 171, número do artigo penal que caracteriza o estelionato. Escroques petulantes, arrivistas e intelectualmente toscos, semelhantes aos que, ocultos sob a vaga definição de cidadãos de bem, encontramos de vez em quando em filas de bancos ou congestionamentos de trânsito. E, como resultado de todas essas notícias que nos bombardeiam como Napalm no Vietnã, brotam os questionamentos inevitáveis: o que fizemos de nós? O que vai ser de um país onde até a dissimulação deixou de existir para dar lugar ao despudor generalizado? Onde foi parar o que restava de cordialidade em nossas relações sociais hoje tão esgarçadas? Por que somos incapazes de mitigar o fosso social que arrasta nossas perspectivas de futuro rumo ao século 19?
Estava aqui pensando nisso tudo sem encontrar uma analogia minimamente adequada a tamanha aberração. Mas então escutei o Stradivarius 1713 de Joshua Bell desferir as primeiras notas da melodia da Serenade, de Schubert. E me senti invadido por uma melancolia estranha e, tal qual um leopardo de Borges, por uma obscura resignação e uma valorosa ignorância, que só as coisas que me emocionam profundamente são capazes de provocar. E, de olhos fechados e com embriões de lágrimas se formando neles, imaginei ingenuamente uma espécie de redenção vindoura para a humanidade, apesar de gente como José Sarney e seus marimbondos de fogo e todos esses que aí estão atravancando o nosso caminho. E acreditando que, como nos versos de Quintana, um dia eles passarão, nós passarinhos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Nós só precisamos ir


Às vezes me pergunto por que a insatisfação com o lugar onde vivemos afeta tantas pessoas. O que queremos, afinal? Uma cidadezinha encravada nos Alpes suíços ou aos pés dos Pireneus? Uma casinha em frente à Lagoa da Conceição, em Florianópolis, ou numa vila mediterrânea, onde possamos sair de sandália para pescar ou navegar? Um apartamento no centro nervoso de Nova York, Paris ou São Paulo, perto de museus, lojas, parques, bares, restaurantes e muita gente? Penso que, por mais que cada um desses lugares (escolhi alguns que poderiam ser particularmente atraentes para mim) possua atrativos e vantagens inegáveis, sempre vai haver um vácuo, algo que produza em nós uma nostalgia melancólica do lugar de onde viemos e que abandonamos.

Li recentemente uma entrevista com a cantora Cassandra Wilson, na qual ela dizia que tinha o sonho de conhecer duas cidades do mundo: Havana e Salvador. Fiquei intimamente lisonjeado ao saber que moro num lugar onde uma das grandes cantoras contemporâneas de jazz (e não só ela) adoraria pôr os pés. Por que, então, sinto desejo de escapar daqui e dar adeus ao trânsito truculento, à violência desmedida e à miséria atávica? Por que, afinal, acredito que em algum outro lugar remoto eu posso ser mais feliz do que na cidade onde nasci? Não faço idéia nem mesmo se existe esse lugar, esteja ele nesta relação acima ou em qualquer outro canto.

Outro dia, meu melhor amigo, que mora com a família numa cidade pequena, acolhedora e segura do estado americano de Wisconsin, me confessou que anseia por um pouco de latinidade. Em outras palavras, por relações humanas menos gélidas, receitas culinárias com mais tempero e temperaturas menos inóspitas. É um desejo simples e pueril, e talvez por isso altamente valoroso, como o daquela canção recentemente apropriada pela torcida do Flamengo para se referir à volta do filho pródigo Adriano: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. E olha que no caso do meu amigo ir a São Francisco, Havaí, Big Sur ou Boston é como, para mim, ir ao Rio ou a Porto Alegre. Já um colega de trabalho, baiano que voltou a Salvador após vários anos morando em São Paulo, não conseguiu se readaptar à cidade e aceitou uma proposta para ir viver em Brasília. Como eles, há uma multidão desejando experimentar outros mundos que não o seu.

No meu caso, o que existe é o anseio de morar em outro país, de preferência europeu, de onde possa partir rumo aos extremos do continente e voltar para casa sem precisar enfrentar um vôo de 12 horas acima do Atlântico. Morar mesmo, apreciar a descoberta de uma comida desconhecida, me comunicar diariamente em outra língua, conhecer paisagens e pessoas estranhas, enfim, viver em constante estado de alumbramento e poder compartilhar esse alumbramento com minha filha. Se serei feliz lá? Quem sabe. Talvez até seja acometido pelo velho banzo que minava as forças dos escravos arrancados da África, pois é bem provável que corra em meu sangue um pouco desse sangue dos deserdados. Em On The Road, Jack Kerouac – ou melhor, seu alter ego Sal Paradise – afirmou que ele e seus amigos de estrada desempenhavam a única função nobre da sua época: mover-se. Não sei se essa é a única função nobre de uma época, qualquer que seja ela, mas certamente é uma delas, porque a necessidade de movimento permanece acesa em muitos de nós, 52 anos após a publicação do romance.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Meu rol de lacunas



Num poema chamado Limite, Jorge Luis Borges manifestava assim o seu lamento sobre a passagem do tempo: "Entre os livros da minha biblioteca (posso vê-los agora), há um que não mais abrirei". Fico imaginando, enquanto termino de ler esta sublime reflexão sobre a brevidade da vida, as formas e as cores desse livro sem nome, repousando em alguma prateleira perdida daquele labirinto de papel que deve ter sido a biblioteca de um homem que dedicou a vida a consumir palavras – e a trazê-las de volta à tona com esplêndida maestria. Poderia ser uma antologia de poemas de Paul Verlaine, já que no mesmo poema Borges diz: "Há uma linha de Verlaine que não voltarei a lembrar". Mas poderia ser qualquer outra obra perdida naquela vastidão.

De minha parte, há livros de Borges que nunca lerei, assim como há obras-primas que jamais passarão pelas minhas mãos ou ocuparão um cantinho de nobreza no meu coração. Obras que mudariam radicalmente a minha visão de mundo ou trariam um novo alento às minhas noites de insônia. Pensando nelas, cheguei a esboçar uma lista dos livros preferidos que nunca li (ou que ainda não li). Ou melhor: um rol de lacunas imperdoáveis, que deixaria à mostra a minha erudição capenga. Entrariam na relação, por exemplo, os sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, que venho colecionando com afinco desde que a auto-intitulada “edição definitiva” da editora Globo chegou às livrarias. Sempre disse a mim mesmo que se tratava de uma obra para ser lida aos 40 anos, por isso fui adiando, mas agora 2010 se aproxima e me empurra incessantemente rumo à quarta década da minha existência.

Poderia incluir, também, Ulisses, que comecei a ler, mas parei por falta de tempo, para usar a mais injustificável das desculpas. Ou tantos que aguardam pacientemente o instante em que serão (se é que serão) retirados da prateleira e depositados carinhosamente no criado-mudo: Dom Quixote (Cervantes), Macbeth (Shakespeare), Submundo (DeLillo), Luz em Agosto (Faulkner), Os Irmãos Karamazov (Dostoievski), Estranhos Embora Íntimos (Fitzgerald), Extinção (Bernhard), Os Thibaut (Martin Du-Gard) e mais livros de Lispector, Vargas Llosa, Kerouac (os quatro ou cinco em inglês que possuo), Mallamud, Pynchon e muitos, muitos, muitos outros, cuja ausência deixa entrever certa indigência intelectual.

Por outro lado, ainda tenho tempo (espero) e todos eles ao alcance da mão ou de um banquinho, é só pegar. Como peguei recentemente Soldados de Salamina (Javier Cercas), A morte de Ivan Ilitch (Tolstoi), O Grande Bazar Ferroviário (Paul Theroux) e a Antologia Pessoal de Borges, que deu origem a toda essa conversa. No caso de Soldados..., o interesse por Javier Cercas fez com que comprasse outro livro dele, A Velocidade da Luz, que já li e também gostei, embora tenha identificado certa repetição de fórmulas. E por aí vai, um puxando o outro, como peças de dominó caindo em seqüência. E, quem sabe, aos poucos alguns integrantes desse rol de lacunas mudem de lado, e passem a fazer parte do rol de paixões, que não são poucas. Mas elas ficam para um próximo post.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Transcendência



Mesmo sendo essencialmente sensorial (como de resto é o ato de ouvir música), o jazz é também uma experiência intelectual sobre a qual você pode teorizar e racionalizar. Com um pouco de atenção, é perfeitamente possível a quem não domina música apreender a sobreposição de notas em Oscar Peterson ou diferentes camadas de som aninhadas nos solos de Coltrane, e é esse conhecimento progressivo – aliado à riqueza histórica dos seus artistas e suas vertentes – que nos conquista e nos faz amar o gênero, como amamos um autor à medida que consumimos e apreciamos os seus livros. Numa canção de MPB, a presença da letra também nos mantém despertos e distantes de um hipotético transe.

Mas na musica clássica, não. Nela – provavelmente por não dispor do conhecimento técnico necessário a uma audição plena –, a melodia me atravessa sem barreiras ou interferências, e é o sentimento em estado bruto que se insere diretamente em meu córtex cerebral. Quando escuto Glenn Gould (e ouvi-lo é uma experiência arrebatadora), percebo que As Variações Goldberg de Bach - tanto a ensandecida versão de 1955 quanto a contemplativa de 1981 - são um portento de técnica e entrega física e mental por parte do músico, mas o que chega até mim é sobretudo a sensação de transcendência que elas provocam. Por eu não reconhecer contrapontos, fugas e cromatismos em sua execução, Gould soa para mim como uma apologia ao suicídio nos ouvidos de um fanático islâmico: é como uma epifania que nos pega desprevenidos, simples assim.

O curioso é que não aprecio tanto as grandes orquestras, com sua grandiloqüência, suas variações drásticas de volume e, de certa forma, sua impessoalidade. Prefiro os músicos em pequenos conjuntos, como quartetos de cordas e orquestras de câmara, ou desacompanhados. Me emociona ouvir Nelson Freire movimentando as teclas como se usasse um pincel em vez de dedos ao tocar Chopin. Ou Itzhak Perlmann concebendo, ao recriar Beethoven, uma tessitura que me faz lembrar uma criança caminhando sobre um tapete felpudo. Ou Yo-Yo Ma e Jacqueline Du Pre transformando violoncelos em instrumentos de adoração celestial. Com eles, e mais um vinho ou um charuto no escuro, me transporto confortavelmente rumo a outras regiões da Via-Láctea.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Os canalhas merecem a salvação?


Toda a celeuma envolvendo o filme (que não vi) sobre a carreira vertiginosa de Wilson Simonal, abruptamente transmutada em queda livre, me trouxe à tona uma questão que considero crucial nas discussões sobre a relação entre arte, cultura e sociedade: um grande artista merece ser preservado, mesmo tendo sido um ser humano abjeto? Ou melhor: deve-se ao menos preservar a sua obra, ou até ela merece ser relegada ao esquecimento? Não me refiro a Simonal, até porque mal ouvi suas canções e só conheço a sua história superficialmente. Mas as posições extremadas envolvendo o seu caso dão pano para manga, assim como deram em outros tempos a simpatia de Herbert Von Karajan pelo fascismo ou as supostas delações de Elia Kazan durante a caça às bruxas do Macarthismo, só para citar dois exemplos. Jânio de Freitas foi ferino em sua coluna, dizendo que faltou uma palavra no título do filme, que deveria se chamar Ninguém Sabe o (Dedo) Duro que Dei. Paulo Vanzolini foi mais longe: revelou que Simonal se gabava de ter delatado conhecidos do meio artístico. Mas, pelo que tenho lido, o longa de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal busca uma espécie de reparação póstuma, tentando esclarecer pontos obscuros dessa história e relativizar o linchamento moral de que o cantor foi vítima. Não tenho opinião formada sobre o caso, embora ache estranho aquele episódio da tortura do seu ex-contador por um segurança ligado ao Dops. Minha impressão, olhando de longe, é de que Simonal não era lá flor que se cheire, embora não necessariamente um delator profissional.
Mas não queria falar de Simonal, e sim de outro personagem sobre o qual recaíram acusações muito mais graves, sendo que estas, sim, foram comprovadas e publicamente assumidas. Falo de Louis-Ferdinand Céline, aquele tipo asqueroso que escreveu panfletos ignominiosos pregando o extermínio dos judeus pelos alemães durante a Segunda Guerra. Céline seria um desses tipos facilmente esquecíveis, ou lembrados apenas por sua torpeza, caso não tivesse entrado para a história da literatura com Viagem ao Fim da Noite. Não falo dos seus outros romances porque não os li, mas Viagem é um dos mais virulentos petardos já escritos sobre a estupidez humana, e só ele bastaria para colocar o autor no panteão da literatura francesa do século 20, ao “emporcalhar” o idioma de Proust e Flaubert com desvarios estéticos e palavras arrancadas do cotidiano da plebe. Nele, Céline mostrava ao mundo um pouco do que ele mesmo viria a ser anos depois (o livro é de 1932): um homem sem moral, paranóico e sujo, completamente despido de compaixão. A questão é: esse homem merece o esquecimento? Sinceramente, não sei. Seis milhões de pessoas, quase todas civis, morreram por causa da ação (não se trata, neste caso, de simples inação, mas sim de engajamento mesmo) de pessoas como ele. O que uma mãe judia presa num campo de extermínio junto com os filhos teria dito sobre isso? A arte justifica o mal? Claro que não, nada o justifica. Mas então, o que fazer? Queimar todos os exemplares de Viagem ao Fim da Noite, de Morte a Crédito (que dormita na minha estante há mais de 10 anos), de Norte e de todos os outros romances de Louis-Ferdinand? Colocá-los num índex semelhante ao da Inquisição? Não precisamos disso. Tenho nojo de Céline, mas agradeço ao mundo de hoje por ter me dado a oportunidade de ler sua obra maior e admirá-la, mesmo sabendo que foi escrita por um canalha.

Segue abaixo um texto publicado em 2001 (quando se completaram 40 anos da sua morte), no qual acho que fui muito mais complacente com ele do que seria hoje. O tempo nos leva muitas coisas. A tolerância à estupidez é uma delas.


Arquivo - Ascensão e derrocada de um gênio repulsivo

Aversão e admiração ainda convivem em Céline, morto no ostracismo há 40 anos

Paulo Sales

Asco e fascínio, degradação e genialidade. A ambigüidade é a impressão que se eleva quando o nome Louis-Ferdinand Céline é entoado. Ser humano abjeto, preconceituoso, pleno do ódio mais torpe, ele não pode ser esquecido. Sua obra permanece – o texto tortuoso, árido – fincada na literatura francesa e mundial do século 20. Quarenta anos após sua morte, Céline ainda desperta doses equivalentes de repulsa e admiração.
O criador do sublime Viagem ao Fim da Noite (editado no Brasil pela Companhia das Letras) é o mesmo homem que exigiu dos nazistas o extermínio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e essa faceta tenebrosa não pode ser menosprezada. Céline não deve ser comparado, por exemplo, a escritores como John Steinbeck e Ezra Pound, que assumiram posições eticamente discutíveis em determinados momentos das suas vidas. Ele foi muito além: escreveu uma série de três panfletos pregando o ódio racial e acusando os judeus de responsáveis pela falência social da França.
Por que então falar dele, em vez de desterrá-lo ao limbo? Porque, por pior que tenha sido como homem, Céline foi um revolucionário das letras francesas, um escritor poderoso, capaz de subverter tudo que até então era considerado genial. Quando surgiu, aos 38 anos, em 1932, com o lançamento de Viagem ao Fim da Noite, Marcel Proust (principalmente) e André Gide eram os ícones estabelecidos na literatura francesa. Escreviam textos edificados sobre o alicerce clássico, herdeiros das frases elaboradas de Honoré de Balzac.
Céline trouxe a imundície, a pontuação irregular, a escória do mundo. Sua matéria-prima era a amargura, a misantropia, a covardia como único motor. Viagem... é um livro doloroso, escrito por um médico de gente humilde, ex-soldado da Primeira Guerra (de onde saiu com graves ferimentos), que já havia perambulado pela África colonial e pela América marcada pelas desigualdades sociais. Enfim, um ser humano acostumado aos dejetos.
Contando a história – com toques autobiográficos – de Ferdinand Bardamu, um sujeito pusilânime, acossado pela maldade e a ignorância da humanidade, o livro conferiu notoriedade imediata ao escritor e reações extremadas por parte da crítica francesa. Vendeu 100 mil exemplares em apenas um ano e foi traduzido para diversos países da Europa, tornando-se uma espécie de representante literário das facções de esquerda. Vale salientar que, à época, o continente passava por convulsões ideológicas, e o comunismo disputava espaço com o nazismo então incipiente.
Mesmo sendo o principal candidato ao Prêmio Goncourt, o mais representativo das letras francesas, o livro não se sagrou vencedor. Os jurados se negaram a conceder uma condecoração tão importante a uma obra repleta de palavrões e opiniões polêmicas, vistas pela ótica do proletariado, dos bêbados, do lado oculto da França.
Um trecho, quase ao final do livro, é emblemático: “Lá bem longe era o mar. Mas eu não tinha mais nada o que imaginar eu sobre ele o mar agora. Tinha outra coisa para fazer. Por mais que eu tentasse me perder para não mais me encontrar diante da minha vida, eu simplesmente a encontrava por todo lado. Voltava a mim mesmo. Minha vagabundagem, a minha, estava terminada. Para mim chega!... O mundo estava fechado! Ao fim é que tínhamos chegado, nós!... Como na festa!... Sentir tristeza não é tudo, seria preciso poder recomeçar a música, ir procurar mais tristeza... Mas para mim basta!... É a juventude que pedimos assim como quem não quer nada... com a maior desfaçatez!...”
A Viagem... se seguiu Morte a Crédito (1936, Nova Fronteira), desprezado pela crítica. No ano seguinte, Céline deu início à própria derrocada. Publicou os tais panfletos anti-semitas e, com a eclosão da guerra, passou a defender abertamente a Alemanha. Tornou-se refém de uma perseguição ideológica veemente. No mais famoso desses textos, Bagatelles pour un Massacre, argumentou que o comunismo de Marx, Engels e Trotski, todos judeus, era na verdade um amplo complô do povo semita para dominar o mundo. A genialidade cedia lugar ao delírio.
Pouco antes do fim da guerra, em 1944, o escritor saiu escorraçado da França para, junto com a mulher Lucette e o gato Bébert, pedir asilo à Dinamarca. Com isso, escapou dos tribunais de guerra e do pelotão de fuzilamento, mas passou um ano e meio numa prisão em Copenhagen. Voltou ao país natal em 1951, doente e em situação financeira lamentável. Seus novos livros, Norte e Rigodon entre eles, tornaram-se fracassos estrondosos. Voltou a exercer a medicina, sem sucesso. Em 1º de julho de 1961, aos 67 anos, foi colhido por uma congestão cerebral. Menos de 30 pessoas acompanharam o funeral.
Nascido Louis-Ferdidand Destouches (Céline era o nome de sua avó materna e madrinha), em 27 de maio de 1894, o escritor certamente ficaria surpreso com o valor pago pelos originais de Viagem ao Fim da Noite, leiloado há dois meses na França: 12 milhões de Francos. Um recorde, superado apenas pelos originais de On The Road, de Jack Kerouac (vendido por 15 milhões de Francos). Céline Secret, testemunho fiel do homem e autor, está sendo publicado em Paris pela viúva Lucette, ainda lúcida aos 87 anos.
Céline é reverenciado por escritores do quilate de Henry Miller (que reescreveu Trópico de Câncer após ler Viagem...), Charles Bukowski e Philip Roth, dentre outros. Roth, judeu e maior escritor norte-americano vivo, assim se refere ao romancista: “Na França, meu Proust é Céline! Mesmo se seu anti-semitismo o torna um ser abjeto, intolerável, trata-se de um grande escritor – para lê-lo, porém, devo deixar em suspenso minha consciência judaica. Céline é um grande libertador: sinto-me chamado por sua voz”.

* Publicado originalmente no Correio da Bahia

sábado, 6 de junho de 2009

Até o outro lado


Em Depois da Vida, Hirokazu Kore-Eda constrói uma fábula insólita, ambientada numa espécie de ante-sala do paraíso. Uma pensão de instalações espartanas, para onde são encaminhadas as pessoas que acabam de morrer. Lá, elas contam com a ajuda de outros mortos, seus guias espirituais, para escolher uma única recordação que vai acompanhá-las por toda a eternidade – o resto será esquecido. Após selecionada, a lembrança é reproduzida de forma meio tosca, mas eficiente, através de artifícios simples como, por exemplo, um velho ventilador que simula uma brisa sentida décadas antes na cabine de um avião. E só então, munidas dessas reminiscências solitárias, partem rumo ao paraíso.
Como eu, muitos dos que assistiram ao filme devem ter feito o mesmo questionamento e fuçado durante algum tempo os arquivos mortos da memória: que lembrança eleger – em detrimento de todas as outras de uma existência que, no meu caso, conta hoje exatos 39 anos, quatro meses e dois dias – para nos acompanhar até o Éden? Um Éden que, imagino, deva ser um breu espesso e mudo, despido de pensamentos, sonhos ou reviravoltas dramáticas. O calor da minha mãe me protegendo? O arrebatador prazer da aventura ao sentir o vento gelado numa estrada? O delírio silencioso de um livro lido? O delírio exasperador de um livro escrito? A barriga estufada de minha mulher prenhe? O primeiro encontro com minha filha? O último encontro com meu pai? Bem, ficaria de bom grado com uma noite que passei junto com todos eles: meu pai, minha filha, minha mãe e minha mulher, ocorrida em janeiro de 2003, numa casa de praia que não era nossa, mas na qual nos sentimos intimamente em casa. Uma noite em que andei na areia, me assombrando com a bola branca e imensa, bebi vinho e comi uma pasta feita de sardinha, cebola, azeite e pimenta com pedaços de pão. Uma noite em que tudo se bastou, e na qual a sensação de felicidade, fugaz por natureza, pareceu se prolongar indefinidamente. Uma noite ideal para ser levada até o outro lado do paraíso.
Mas, pensando também no filme, fiquei a imaginar os mortos do vôo da Air France chegando em massa à pensão fantasiada por Kore-Eda, recém-saídos do desespero de uma queda vertiginosa, a qual não se sabe ainda como se deu. Por mais que tente reprimir, acabo voltando invariavelmente ao ponto crucial: o que todos aqueles 228 seres humanos sentiram naqueles minutos ou segundos em que se viram no ermo escuro de uma noite de tempestade, longe de tudo – dos pais, dos amantes, das casas, da vida e até mesmo de um pedaço de terra onde cair. Fico me perguntando que tipo de recordação poderia ter o bebê que estava entre eles, se sua existência se resumiu a pouco mais que dormir, mamar e descobrir as paredes, cobertores e rostos familiares que constituíam o seu mundo. Talvez apenas uma obscura sensação de aconchego, ali mesmo até, no colo da mãe. Tomara. Ou melhor: tanto faz. O fato é que não consigo represar um grito emudecido, um lamento – resignado e inútil, eu sei – por nossa estadia na Terra ser capaz de produzir injustiças tão profundas.