sábado, 6 de junho de 2009

Até o outro lado


Em Depois da Vida, Hirokazu Kore-Eda constrói uma fábula insólita, ambientada numa espécie de ante-sala do paraíso. Uma pensão de instalações espartanas, para onde são encaminhadas as pessoas que acabam de morrer. Lá, elas contam com a ajuda de outros mortos, seus guias espirituais, para escolher uma única recordação que vai acompanhá-las por toda a eternidade – o resto será esquecido. Após selecionada, a lembrança é reproduzida de forma meio tosca, mas eficiente, através de artifícios simples como, por exemplo, um velho ventilador que simula uma brisa sentida décadas antes na cabine de um avião. E só então, munidas dessas reminiscências solitárias, partem rumo ao paraíso.
Como eu, muitos dos que assistiram ao filme devem ter feito o mesmo questionamento e fuçado durante algum tempo os arquivos mortos da memória: que lembrança eleger – em detrimento de todas as outras de uma existência que, no meu caso, conta hoje exatos 39 anos, quatro meses e dois dias – para nos acompanhar até o Éden? Um Éden que, imagino, deva ser um breu espesso e mudo, despido de pensamentos, sonhos ou reviravoltas dramáticas. O calor da minha mãe me protegendo? O arrebatador prazer da aventura ao sentir o vento gelado numa estrada? O delírio silencioso de um livro lido? O delírio exasperador de um livro escrito? A barriga estufada de minha mulher prenhe? O primeiro encontro com minha filha? O último encontro com meu pai? Bem, ficaria de bom grado com uma noite que passei junto com todos eles: meu pai, minha filha, minha mãe e minha mulher, ocorrida em janeiro de 2003, numa casa de praia que não era nossa, mas na qual nos sentimos intimamente em casa. Uma noite em que andei na areia, me assombrando com a bola branca e imensa, bebi vinho e comi uma pasta feita de sardinha, cebola, azeite e pimenta com pedaços de pão. Uma noite em que tudo se bastou, e na qual a sensação de felicidade, fugaz por natureza, pareceu se prolongar indefinidamente. Uma noite ideal para ser levada até o outro lado do paraíso.
Mas, pensando também no filme, fiquei a imaginar os mortos do vôo da Air France chegando em massa à pensão fantasiada por Kore-Eda, recém-saídos do desespero de uma queda vertiginosa, a qual não se sabe ainda como se deu. Por mais que tente reprimir, acabo voltando invariavelmente ao ponto crucial: o que todos aqueles 228 seres humanos sentiram naqueles minutos ou segundos em que se viram no ermo escuro de uma noite de tempestade, longe de tudo – dos pais, dos amantes, das casas, da vida e até mesmo de um pedaço de terra onde cair. Fico me perguntando que tipo de recordação poderia ter o bebê que estava entre eles, se sua existência se resumiu a pouco mais que dormir, mamar e descobrir as paredes, cobertores e rostos familiares que constituíam o seu mundo. Talvez apenas uma obscura sensação de aconchego, ali mesmo até, no colo da mãe. Tomara. Ou melhor: tanto faz. O fato é que não consigo represar um grito emudecido, um lamento – resignado e inútil, eu sei – por nossa estadia na Terra ser capaz de produzir injustiças tão profundas.

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