quarta-feira, 10 de junho de 2009

Transcendência



Mesmo sendo essencialmente sensorial (como de resto é o ato de ouvir música), o jazz é também uma experiência intelectual sobre a qual você pode teorizar e racionalizar. Com um pouco de atenção, é perfeitamente possível a quem não domina música apreender a sobreposição de notas em Oscar Peterson ou diferentes camadas de som aninhadas nos solos de Coltrane, e é esse conhecimento progressivo – aliado à riqueza histórica dos seus artistas e suas vertentes – que nos conquista e nos faz amar o gênero, como amamos um autor à medida que consumimos e apreciamos os seus livros. Numa canção de MPB, a presença da letra também nos mantém despertos e distantes de um hipotético transe.

Mas na musica clássica, não. Nela – provavelmente por não dispor do conhecimento técnico necessário a uma audição plena –, a melodia me atravessa sem barreiras ou interferências, e é o sentimento em estado bruto que se insere diretamente em meu córtex cerebral. Quando escuto Glenn Gould (e ouvi-lo é uma experiência arrebatadora), percebo que As Variações Goldberg de Bach - tanto a ensandecida versão de 1955 quanto a contemplativa de 1981 - são um portento de técnica e entrega física e mental por parte do músico, mas o que chega até mim é sobretudo a sensação de transcendência que elas provocam. Por eu não reconhecer contrapontos, fugas e cromatismos em sua execução, Gould soa para mim como uma apologia ao suicídio nos ouvidos de um fanático islâmico: é como uma epifania que nos pega desprevenidos, simples assim.

O curioso é que não aprecio tanto as grandes orquestras, com sua grandiloqüência, suas variações drásticas de volume e, de certa forma, sua impessoalidade. Prefiro os músicos em pequenos conjuntos, como quartetos de cordas e orquestras de câmara, ou desacompanhados. Me emociona ouvir Nelson Freire movimentando as teclas como se usasse um pincel em vez de dedos ao tocar Chopin. Ou Itzhak Perlmann concebendo, ao recriar Beethoven, uma tessitura que me faz lembrar uma criança caminhando sobre um tapete felpudo. Ou Yo-Yo Ma e Jacqueline Du Pre transformando violoncelos em instrumentos de adoração celestial. Com eles, e mais um vinho ou um charuto no escuro, me transporto confortavelmente rumo a outras regiões da Via-Láctea.

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