quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Que venha 2012



John Fante tem um livro chamado 1933 Foi um Ano Ruim. Eu poderia parafraseá-lo e dizer que 2011 foi um ano ruim. Não um ano terrível, daqueles que nos lançam contra nossos medos mais profundos, mas sim um ano sem graça, modorrento e marcado por episódios que preferiria não ter vivenciado. Passei por anos piores, e de cara lembro de três: 1988, 1999 e 2003, cada qual com seus próprios infortúnios. No final do ano passado, escrevi aqui no blog que gostaria de ter em 2011 “um pouco mais de finais de tarde. De ver mais vezes o sol morrendo e a lua nascendo em frente ao mar”. Não tive. Vivi menos do que gostaria.

Por outro lado, é muito difícil encerrar cada ano em compartimentos estanques, sem qualquer ligação com aqueles que o antecederam e sucederam. Mesmo porque, à medida que envelhecemos, os anos cada vez mais se parecem uns com os outros, como se fossem uma única correnteza espessa e opaca, que se desloca cada vez mais rápido rumo a um oceano de silêncio e breu. O que os diferencia é o pouco que fazemos de valoroso em cada um deles: uma viagem, uma ruptura profissional, uma nova relação amorosa. Lembro que aos 14, 15 ou 16 anos cada ano encerrava uma descoberta específica, que podia ser tanto uma epifania sexual quanto um pontapé no coração adolescente. Os anos passavam lentos, cindidos pelos dois períodos de férias escolares. O mundo se revelava com toda a sua apoteose de alegrias, temores, hesitações, triunfos e decepções.

Hoje, quando nos vestimos de branco, bebemos espumante quente e desejamos votos de paz e prosperidade a todo mundo que surge à nossa frente, estamos apenas repetindo um ritual que celebra a vinda de algo que já conhecemos intimamente. Mais do mesmo, com raras exceções. Talvez por isso, não levo muito a sério essas resoluções de ano-novo, promessas inúteis que fazemos a nós mesmos e que sempre acabam na vala comum das recaídas, seja no vício em nicotina ou na acomodação geral. Gostaria, no entanto, de imaginar que 2012 possa vir a fazer parte da lista de anos pelos quais tenho um carinho especial, como 1990, 1996 ou 2000. Um ano gostoso e aconchegante, no qual possa continuar aproveitando a companhia das pessoas que amo, ver minha filha abraçar sem medo a adolescência, ascender profissionalmente e ir para a Europa. Além, é claro, de ter um pouco mais de finais de tarde.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Espirais



Tenho lembrado nos últimos dias de uma resposta que o escritor angolano José Eduardo Agualusa me deu uma vez, durante uma entrevista, ao ser indagado se a humanidade estava sendo assombrada por um tempo particularmente sombrio: “Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral”.

Acho que Agualusa está certo, que estamos realmente evoluindo como civilização, como sociedade. Mas ele também está certo quando cita o provérbio budista, de que avançamos em espiral. Cada avanço é precedido e sucedido de retrocessos muitas vezes brutais. Se fizermos uma rápida retrospectiva do século 20, perceberemos que ele alternou movimentos radicalmente distintos de sístoles e diástoles: uma primeira década tranquila e marcada por inovações tecnológicas, seguida da explosão de violência da Primeira Guerra que, ao acabar, ofereceu ao mundo a década de paz, riqueza e hedonismo desenfreado que ficou conhecida como a Era do Jazz. Em seguida, foi a vez do Crash da Bolsa de Nova York, da Grande Depressão e da ascensão do fascismo na Europa, que iria desaguar no horror absoluto da Segunda Guerra. Tempos sombrios, mas que por sua vez culminaram, entre as décadas de 50 e 70, nos estados de bem-estar social, com um grau de prosperidade nunca visto – nem antes, nem depois.

Não tenho dúvida de que o ataque da Al Qaeda ao World Trade Center inaugurou e simbolizou uma nova era de retrocesso. Hoje, presenciamos um momento de franca deterioração moral, de retorno ao que temos de mais bárbaro e primitivo, como uma espiral que sai um pouco fora da curva e derrapa inapelavelmente rumo ao precipício. É nítida a sensação de queda. Desde que criei este blog, há exatos três anos, me vi várias vezes discorrendo sobre a perplexidade que me toma diante de alguns atos cometidos por seres humanos. Em muitas outras me calei, pois percebi que me tornaria repetitivo e enfadonho, como um cantor de um único sucesso. Mas esta semana algo parece ter provocado uma pequena fratura em algum canto da minha mente, pois me vi de novo compelido a arfar como um asmático antes de pôr para fora todo o meu desassossego.

Não vou me estender em torno de disparates como o da enfermeira que matou um cãozinho a pauladas sob o olhar complacente da pessoa que filmava o ato. Ou da garota de 14 anos atacada com facadas e pedradas por colegas da mesma idade, ao ponto de ter o pulmão e o ovário perfurados. Eles são apenas variações de uma mesma desdita. O que mais me espanta em episódios como esses é como germinam cada vez mais crimes cometidos por pessoas que, em tese, não são criminosas. Bem ou mal, podemos esperar que um assaltante ou um traficante de drogas, submersos como estão num lamaçal crônico de violência, sejam capazes de nos arrancar a vida com diferentes matizes de crueldade. Mas não esperamos isso de alguém que poderia quem sabe ser nosso vizinho ou nosso colega de trabalho.

Estamos em um ponto tão obscuro da espiral que não sabemos mais onde foi parar o significado de palavras como dignidade, compaixão ou alteridade. É o fim dos tempos, como diria um temente a Deus. Ou talvez, como apregoam os budistas, o fim de uma era de retrocesso antes que voltemos a avançar de novo.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Espelho distorcido



Certa manhã, após uma noite de sonhos intranqüilos, eu acordei com uma dor terrível na perna esquerda. Tinha 17 anos, e passara a madrugada escrevendo em sonho um romance ao qual dei o nome de O Livro Vermelho. Do conteúdo do livro restou quase nada. Mas a dor desse dia foi a primeira de muitas manifestações que desaguaram em uma doença chata, diagnosticada inicialmente como síndrome de Reiter e mais tarde como espondilite anquilosante, que me acompanha até hoje. Agora mesmo, enquanto escrevo, sinto uma pontada forte nas costas. Mas já estou acostumado.

Na época, fui tratado com antiinflamatórios e depois de algumas semanas me senti melhor. Mas em dezembro de 1991, pouco antes de completar 22 anos, a doença se manifestou de novo. O curioso é que novamente houve um componente literário nessa história. Estava escrevendo à máquina um poema enorme numa folha de fax e quando estava prestes a terminá-lo comecei a perceber os sintomas. Desta vez, eles foram ainda mais intensos. Praticamente não conseguia andar e passei mais de um mês sem sair de casa, a não ser para ir ao médico.

Os antiinflamatórios não surtiam o mesmo efeito e, ao lado de minha mãe, pulei de médico em médico à procura de uma solução. Uns deram de ombros como se eu não tivesse cura, outros insinuaram que eu estava muito deprimido e isso poderia agravar a doença, que tem um componente auto-imune (o sistema de defesa do meu organismo passa a atacar a mim mesmo, como se algumas de minhas células fossem um corpo estranho). Na verdade era a doença que estava me deixando deprimido, e não o contrário. Enfim, uma médica mais interessada me tratou com corticóides e finalmente eu melhorei, mas meu corpo nunca mais foi o mesmo.

Nos anos seguintes, a dor vinha e voltava, e eu passei por tratamentos que iam de fisioterapia e RPG a medicamentos de todo tipo. Minha mobilidade piorou sensivelmente, devido também a uma tendência irreversível ao sedentarismo, e a doença começou a formar pontes ósseas entre uma vértebra e outra. Somente há uns quatro anos minha reumatologista indicou um tratamento inovador, à base de um medicamento intravenoso que age diretamente nos sintomas da espondilite. Isso atenuou de maneira significativa as dores e me deu nova mobilidade. Mas quando o tratamento acaba, elas voltam, mesmo que com menos intensidade que antes.

Não sei por que estou relatando isso aqui. Talvez porque esteja lendo Outras Vidas que Não a Minha, um romance que, entre outros assuntos, aborda a rotina de pessoas com enfermidades muito mais graves do que essas prosaicas dores na coluna que me deixam entrevado. As histórias do livro de Emmanuel Carrère são todas reais, vividas por pessoas mais ou menos próximas a ele, embora tratadas de maneira romanceada. De certa forma, me identifiquei com o juiz Étienne, que sofre de um câncer na adolescência e depois na juventude, e acaba por amputar uma perna.

Não tenho propensão à hipocondria, e sempre que possível evito imergir nesse terrível universo de perdas e superações com que nos deparamos quando eventualmente precisamos circular por hospitais. Mas o fato é que uma doença – nossa ou de alguém que gostamos – nos lança em um território cinzento, opaco e asséptico, no qual é muito pequena a distância entre sucumbir e sobreviver. Há muitos fatores envolvidos nessa guerra interior, e temos pouquíssimo poder de decisão sobre a maioria deles.

Acredito que tiramos algum tipo de lição quando conseguimos escapar mais ou menos incólumes de uma temporada no inferno dos hospitais. O juiz do livro de Carrère, por exemplo, se tornou um profissional íntegro, que livra da falência pessoas às voltas com dívidas gigantescas. Não sei que tipo de pessoa eu me tornaria caso conseguisse me safar de tamanha provação, e espero nunca saber. Mas certamente não seria o mesmo, com os mesmos valores, preconceitos e idiossincrasias. O sofrimento não costuma aliviar: ele é como um espelho distorcido no qual nos miramos e enxergamos um estranho. Sendo que esse estranho representa quem fomos antes da tormenta, e quem nunca mais voltaremos a ser.