terça-feira, 31 de março de 2009

Animal sorrateiro


Vez por outra a literatura nos prega peças. Quando achamos que já tínhamos lido praticamente tudo que merecia nossa dedicação e nosso tempo (algo impossível mesmo para alguém que viveu para ler, como Borges), sempre aparece alguém para nos povoar de assombro e provar que obviamente se trata de uma pretensão absurda da nossa parte. Até porque o passado não é nosso único manancial de palavras: a cada ano surge um novo autor, e com ele uma visão de mundo singular, amparada por suas experiências e percepções, que por sua vez são diferentes das de todos os que vieram antes dele.

Ian McEwan não é assim tão novo, mas é um grande autor, na plenitude do domínio narrativo e prestes a atingir a maturidade intelectual. Seus parágrafos funcionam como recipientes que vão sendo lenta e progressivamente preenchidos por quantidades colossais de angústia, dando a impressão de que vão nos arrastar para dentro deles. Na semana passada, olhos arregalados na noite alta, me vi aprisionado num desses recipientes, com o agravante de que precisava trabalhar na manhã seguinte. Às vezes, o canto do olho alcançava os ponteiros no braço esquerdo, e eles me alertavam: “Rapaz, saia logo daí de dentro”. Mas a teia de Reparação me prendeu lá madrugada adentro, até que o sono me libertou.

Mais do que uma prosa impecável, tanto Sábado quanto Reparação têm como principal característica provocar um mal-estar silencioso, como se caminhássemos numa floresta e soubéssemos intimamente que em algum momento um animal sorrateiro vai nos atacar. Às vezes isso acontece, às vezes não, e é o que faz de McEwan um escritor superior: ele sempre nos reserva espantos, nunca nos entrega o doce de mão beijada como um roteirista de Hollywood, mesmo quando acreditamos antever algum acontecimento.

 A história de Briony Tallis e o mal que fez à irmã e ao jovem que trabalhava na sua casa ressoa em nossa mente muito tempo depois que a abandonamos. E o neurocirurgião de Sábado é um dos personagens mais solidamente palpáveis que já encontrei nessas minhas andanças pelo território sagrado das palavras. Tenho na estante um outro livro de McEwan: A Criança no Tempo. Cheguei a tirá-lo de lá quando recoloquei Reparação, mas dei uma lida na orelha e a trama me afugentou: um escritor que tem sua filha de três anos roubada numa fila de supermercado. Sei da capacidade do autor de reverberar o mal até o grau máximo do insuportável, e sei também da minha incapacidade cada vez maior de suportar a torpeza que se descortina a cada jornal aberto, assistido ou acessado. É criar coragem agora ou deixá-lo ali, à espera de tempos menos sombrios.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A vida útil da eternidade


Outro dia estava lendo o ótimo blog de um amigo e ex-colega de faculdade (www.diretodoquarto.blogspot.com) e encontrei lá uma frase linda, atribuída a um sujeito chamado Mario Viana, de quem nunca tinha ouvido falar. A frase é a seguinte: “Nossa eternidade tem a duração da memória de quem nos ama”. Engraçado que ele condensou em uma linha o que eu usei mais de 10 para dizer, num post antigo, chamado Quando a Gente se Chama Saudade, no qual falava sobre o meu pai e o quanto a memória dele dependia da minha e da de outras pessoas que conviveram com ele. Viana foi sucinto e certeiro. Somos eternos enquanto somos lembrados, embora não necessariamente amados. Lembro agora de um episódio que li - e que ficou instantaneamente gravado em minha memória - sobre o amor incondicional que Somerset Maugham devotou à mãe, morta quando ele tinha apenas 6 anos. O escritor morreu aos 91 anos, em 1965, e no seu leito de morte estava o retrato dela: um sentimento que atravessou intacto mais de oito décadas e uma perda que nunca foi superada (pois, de certo modo, somos o que perdemos). Graças aos excepcionais romances que escreveu (O Fio da Navalha, O Destino de um Homem, Servidão Humana), Maugham permanecerá eterno por muito tempo, e consequentemente sua mãe, Edith, continuará sendo lembrada por aquele retrato no leito de morte. Pensando bem, é o amor que mantém, mesmo que indiretamente, a chama da eternidade acesa. Mas é certo, também, que um dia os livros de Maugham não serão mais lidos, e só os mais velhos lembrarão vagamente dele, enquanto a luz se apaga lentamente dentro dos seus cérebros. Toda eternidade tem sua vida útil, depois da qual agoniza rumo ao suspiro final. Feito um idioma que vai morrendo aos poucos, por não servir mais como canal de comunicação junto às novas gerações.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Inventário de ilusões


Circulou durante muito tempo na internet uma crônica falsamente atribuída a Gabriel García Márquez (que além de negar a autoria ainda espinafrou o texto), na qual o narrador listava um inventário do que deixou de ter feito e o que faria caso tivesse a chance de rebobinar a própria vida e começar de novo. Gabo foi impiedoso com o texto, que apesar de piegas tem lá seu encanto, mesmo sem valor literário (hoje se sabe que foi escrito por um ventríloquo mexicano de nome Johnny Welch). Mesmo com alguns bons pares de anos pela frente – a não ser que se abata sobre mim uma tragédia ou um enfarto fulminante -, às vezes penso no que deixei de fazer e no que nunca farei, mesmo que viva mais 200 anos. Cada decisão tomada ou cada empurrão do acaso nos leva a caminhos singulares, como num labirinto infinito em que não é possível retroceder, apenas seguir em frente. Não vou me ater sobre o que poderia ter feito diferente, mas sobre o que gostaria de fazer ao menos uma vez na vida, mesmo tendo consciência plena de que, em sua maioria, são sonhos irrealizáveis. E, no caso dos improváveis, só se o meu mundo se transformar numa festa móvel regada a dinheiro farto (quem sabe uma mega-sena?), como a vida que Jorginho Guinle levou entre os salões da alta corte carioca, os bares enfumaçados de jazz em Nova York e as festas de arromba, gim e cocaína em Hollywood, até morrer da maneira mais digna possível, de barriga cheia, banho tomado e alma lavada, numa cama do Copacabana Palace.
Aí vai o meu inventário de ilusões, umas impossíveis, outras improváveis: surfar uma onda de nove metros em Pipeline. Beber uma garrafa de Chateau Margaux 1900. Abraçar um leão sem ser morto por ele. Almoçar espaguete com frutos do mar e muito azeite numa casa italiana à beira do Mediterrâneo. Passar um mês em silêncio num templo budista no Tibet. Fazer um gol no Maracanã lotado com a camisa do Flamengo. Conversar com Ernest Hemingway sobre touradas, pescarias, bebidas e literatura, não necessariamente nessa ordem. Ver um urso caçando salmões numa corredeira de rio no Canadá. Ler todos os livros que valem a pena ser lidos. Amar todas as mulheres que valem a pena ser amadas. Pedir carona numa estrada sem me preocupar com a maldade dos condutores. Contemplar o mundo do topo do Everest sem ter que escalá-lo. Estar numa mesa do Village Vanguard ouvindo Miles Davis, Clifford Brown e John Coltrane num mesmo conjunto, com Thelonious Monk, Charles Mingus e Art Blakey na seção rítmica. Ter minha filha ao meu lado com seu rosto de criança por toda a eternidade. Encontrar Fernando Pessoa numa tabacaria em Lisboa e fumar um charuto com ele. Tomar um Ventisquero com meu pai numa casinha à beira-mar. Ver a aurora boreal num fiorde da Noruega. Atirar num caçador de filhotes de foca. Atirar num caçador de gorilas. Sentir o vento frio no rosto. Ir ao espaço e concordar com Yuri Gagarin sobre a cor da Terra. Ser o primeiro (ou o segundo, ou o vigésimo oitavo) homem a ver os anéis de Saturno da janela de uma nave. Ir além do Sistema Solar, da Via Láctea, dos limites do universo. Tentar fazer o bem. Morrer decentemente em minha cama, como no poema de Lorca. Morrer de barriga cheia, banho tomado e alma lavada, como Jorginho Guinle.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Vácuo

Alguns homens são tão maus que até os dias e as noites fogem deles. Outros são ainda piores: espantam as estações. Acho que Josef Fritzl vivia num vácuo, invulnerável à luz e ao tempo, como o local em que aprisionou a filha e os filhos-netos. Nele, a maldade é como um sinal de nascença, um tumor que sempre esteve lá, e um dia se fez metástase.

quarta-feira, 18 de março de 2009

A persistência da genialidade


Ferreira Gullar concedeu uma ótima entrevista à Bravo! (para o bem da imprensa e dos leitores, a revista dá sinais de recuperação), que o define como o maior poeta brasileiro vivo. Acredito que deve haver poucas controvérsias em torno dessa questão, após a morte de João Cabral e Quintana – Manoel de Barros, embora valoroso, não possui o estofo necessário. Gullar, a despeito das incursões pelo concretismo e neoconcretismo, produziu poesia de excelente qualidade ao longo de quase 60 anos. Assombros com alto poder de impacto como o memorialístico e quilométrico Poema Sujo, seu Amarcord literário. Ou o engajado Dentro da Noite Veloz e seu “guevarianismo” hoje obsoleto. Ou mesmo o mais recente Barulhos, repleto de questionamentos existenciais. Me encantam em Gullar os versos simples, como: “Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro/Mas não um pássaro cantando/Lembra um pássaro voando”. Relendo há pouco o Toda Poesia na rede da varanda, percebi o quanto fui influenciado na juventude por seus poemas.
Mas não era apenas ou exatamente sobre Ferreira Gullar que eu queria falar. Voltando à entrevista, o poeta – que também é crítico de arte e pintor diletante – se defende da pecha de conservador por suas análises, digamos, pouco simpáticas à arte de vanguarda. Gosto do que ele diz:

“Nesta altura do campeonato, quando o vale-tudo se apoderou das artes plásticas, a qualificação de "conservador" perdeu sentido. Conservador por quê? Por diferenciar expressão e arte? No meu entender, toda arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se me machuco e grito de dor, estou me expressando; não estou produzindo arte. Da mesma maneira, se alguém começa a bater numa lata, emite sons; não cria música. (...) Arte, portanto, pressupõe o "saber fazer". Saber pintar, saber dançar, saber esculpir, saber fotografar, saber tocar, saber compor. Tal critério prevaleceu durante milhares de anos, desde as cavernas até o advento das vanguardas, no final do século 19, período em que se questionou o "saber fazer". Pois bem: sob a minha ótica, a preocupação vanguardista é um fenômeno que se esgotou. Por milhares de anos, a arte seguiu adiante sem ligar para o conceito de vanguarda. Ninguém me convencerá de que, em pleno século 21, crucificar-se na traseira de um Fusca, deixar-se filmar cortando a vagina ou masturbar-se numa galeria equivale a um gesto artístico. Segundo o norte-americano John Canaday, historiador da arte, os críticos de hoje temem repetir o erro cometido pelos críticos do século 19, que não compreenderam os impressionistas. Em conseqüência, assinam embaixo de qualquer bobagem que levante a bandeira do "novo". Percebe a armadilha? Caso três ou quatro artistas resolvam espremer uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ouvirão dele que praticaram um ato inovador. Definitivamente, não penso desse modo.”

Ferreira toca no xis de uma questão fundamental às discussões sobre arte nos dias de hoje: a substituição da meritocracia pela democracia, com tudo que isso encerra. É difícil, por exemplo, considerar o hip hop uma manifestação artística. Manifestação cultural e comportamental, sem dúvida. Mas arte? Mais: em nome de quê devemos valorizar qualquer batuque que aparece a toda hora nas esquinas de uma cidade como Salvador, para citar a realidade geograficamente mais próxima de mim? Para estimularmos a inclusão social? O igualitarismo? Como disse Gullar, a arte, desde que se entende por arte, primou pelo reconhecimento aos diferentes, e não aos iguais, e foi assim que a civilização nos legou Beethoven, Bach, Cervantes, Shakespeare, Rembrandt e Da Vinci – tendo, por outro lado, passado uma borracha nos medíocres. Por que os critérios de avaliação deveriam mudar, fazendo com que passemos a avaliar a qualidade de uma obra em função da origem social ou racial do autor, ou mesmo da sua orientação sexual? É uma distorção tremenda. Harold Bloom, que conhece como poucos o valor da alta cultura, definiu como Era do Ressentimento essa condescendência contemporânea com a mediocridade. Nas palavras dele, em entrevista à Folha de S.Paulo: “O que ocorre nas universidades, hoje em dia, é que as obras literárias utilizadas para o estudo são escolhidas não porque são esteticamente mais poderosas ou porque são mais sábias. O intelecto, a sabedoria e a beleza são substituídos por considerações acerca da orientação sexual, gênero, pigmentação da pele, etnicidade e assim por diante”.
Vale lembrar que foi o mérito, e não a condescendência, que no Brasil permitiu a artistas populares de talento ganhar o devido reconhecimento, mesmo que tardio. Todo mundo sabe que Cartola é eterno não por ter sido preto e favelado, mas por ter concebido versos como “De cada amor tu herdarás só o cinismo”. Ou seja: é o gênio que permanece. Podem passar 200 anos e o criador da Mangueira estará entre nós, ao contrário dos pagodeiros do circuito Barra-Ondina. Ou, como diria Quintana, “eles passarão. Eu passarinho”.

sábado, 14 de março de 2009

O desbravador de sentimentos


John Coltrane entrou para a história como um desbravador, um Cristóvão Colombo do jazz, capaz de imergir num longo transe de acordes dissonantes e camadas de sons sobrepostas para voltar à tona saciado com suas paisagens recém-descobertas. Mas o Coltrane a quem devoto uma admiração fervorosa é aquele da fúria contida, do soprar suave que esconde uma dor avassaladora. Me emociona ouvir, como ouço agora, sua “voz” por entre as frases de Like someone in Love, I want to talk about you ou Alabama, para citar apenas três das muitas baladas a que deu vida em seus discos eternos (Stardust, Soultrane, A Love Supreme, Lush Life, Blue Train, Crescent e muitos outros). Nem Paul Desmond, nem Zoot Sims, muito menos Stan Getz, conseguem ser tão cálidos e emotivos com tamanha ternura. Ouvir Coltrane é se deparar com o sagrado, é render-se a uma epifania sonora que nos trará quem sabe alguma redenção.

Vamos dividir a conta


Não gosto de Tropa de Elite. Acho deplorável aquela glorificação da violência, a abordagem intelectualmente rasteira, a apologia da vingança como método de trabalho, o discurso fascista e condescendente com a truculência policial, personificada na figura do Capitão Nascimento, personagem abominável, que ganhou popularidade entre as classes populares por seus bordões (“Pede pra sair, 02”, “O senhor é um fanfarrão” e “Bota na conta do Papa”). Mas reconheço que o filme se embrenha de forma corajosa numa questão essencial para se compreender a epidemia de caos que infesta as grandes cidades brasileiras: o farto consumo de cocaína entre as classes abastadas e bem informadas, que são a ponta final de um negócio iniciado nos campos da Colômbia e Bolívia. Pode-se recorrer a vários argumentos (o mais válido e louvável é o de que viciados precisam de tratamento médico, e não de cadeia), mas está cada vez mais claro que, como receptadoras de um produto ilícito, essas pessoas contribuem decisivamente para a perpetuação de uma indústria que provoca carnificinas diárias nas favelas e avenidas do Rio, São Paulo, Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre e outras metrópoles brasileiras. Negar esse fato é apelar para a hipocrisia, é achar que consumir droga faz parte da cultura moderna (e há um fascínio inegável em torno da questão), mesmo que para isso gente que nunca fumou um baseado ou cheirou uma carreira tenha que levar uma bala na cabeça. O raciocínio é o mesmo que vale no mundo empresarial: quanto maior a procura, maior é a oferta (e maiores são o valor e o sacrifício para se conseguir o produto desejado). Não é à toa que, em Cidade de Deus, Buscapé dizia que Zé Pequeno seria o empresário do ano se as drogas fossem um negócio legal.
Sei que esse é um raciocínio passível de críticas, que pode ser acusado de reacionário ou que vai de encontro à liberdade que cada pessoa tem de fazer o que bem entende, desde que não afete os outros. O problema é que afeta. E eu cansei de me deparar todos os dias nos jornais e ao meu redor com o saldo desse livre-arbítrio, embora saiba que a violência urbana não está exclusivamente alicerçada no tráfico de drogas, mas também no embrutecimento das relações sociais e na desigualdade social que só fez aumentar nas últimas décadas. Depois de pensar o oposto durante anos, hoje acredito que os usuários de drogas têm, sim, uma parcela significativa de culpa (a não ser que eles próprios produzam sua droga), e passar a mão na cabeça de toda essa gente seria como sair de fininho do boteco e deixar a conta para os outros pagarem - no caso, a bandidagem e as vítimas. Ou seja: seria atribuir apenas aos “Baianos” (para citar o vilão de Tropa de Elite) a responsabilidade por nossa desdita coletiva.

domingo, 8 de março de 2009

O delírio silencioso



“Uma história era uma forma de telepatia. Por meio de símbolos traçados com tinta numa página, ela conseguia transmitir pensamentos e sentimentos de sua mente para a mente de seu leitor. Era um processo mágico, tão corriqueiro que ninguém parava para pensar e se admirar. Ler uma frase e entendê-la era a mesma coisa; era como dobrar o dedo, não havia intermediação. Não havia um hiato durante o qual os símbolos eram decifrados. A gente via a palavra castelo e pronto, lá estava ele, visto ao longe, com bosques verdejantes a se estender a sua frente...”

Ian McEwan, Reparação


Não sei quando foi inoculado em mim o veneno do delírio silencioso. Talvez na infância remota, ao sentir na ponta dos dedos a textura áspera do papel e os códigos desconhecidos que o preenchiam. Ou, mais provavelmente, antes mesmo de me deparar com a claridade primeva, recém-saído do líquido amniótico, os genes carregados da herança do meu avô paterno de origem lusitana, que durante 50 anos cuidou da biblioteca do Gabinete Português de Leitura, de onde só saiu para a aposentadoria. Quando garoto, 6 ou 7 anos, sonhava em ganhar de presente uma banca de revistas, mais precisamente a da entrada da minha rua, onde meu pai e meu irmão me compravam as histórias de Mickey, Donald e Tio Patinhas (mais tarde doadas por minha mãe, sem o meu consentimento, a uma empregada que pouco ficou lá em casa, de sotaque carioca, que fumava como se estivesse no corredor da morte).

Dos quadrinhos migrei para a Coleção Vaga-Lume. Lembro de ansiar pela chegada do meu aniversário para receber de presente da minha madrinha o livro Cem Noites Tapuias, de Ofélia e Narbal Fontes. Havia outros: Spharion, O escaravelho do Diabo, Éramos Seis, A Ilha Perdida. O meu preferido era Coração de Onça: Papudo, a rejeição e depois as minas de Potosí. Que livro. Levava meu imaginário à estratosfera e me trazia saciado de lá. Uma vez, já adolescente, conheci um desses autores, Aristides Fraga Lima (que tinha escrito A Serra dos Dois Meninos, outro que adorava), pai de uma amiga: numa das minhas visitas a ela, fiquei com ele numa sala, junto com meu primo, mas fui incapaz de esboçar algum comentário sobre os seus livros ou mostrar de algum modo a minha admiração. Apenas ouvi meu primo comentar: “O tempo está quente”, e ele responder: “Sim, e há muitas muriçocas”. O mais perto que cheguei de um ídolo em toda a minha vida e apenas me limitei a ouvir esse diálogo. Não sei se Aristides ainda é vivo, mas virou nome de rua aqui em Salvador.

Em seguida – ou simultaneamente – vieram outros livros: As Aventuras de Tibicuera, de Erico Veríssimo, um dos primeiros, sobre um índio que viveu 500 anos, do descobrimento aos dias de hoje, tendo encontrado nas matas o Curupira e o Anhangá. Tenho esse exemplar aqui na minha biblioteca, guardado com carinho, por incrível que pareça o único do autor, ao lado de vários do filho Luis Fernando. E também Viagem ao Mundo Desconhecido, sobre as aventuras do português Fernão de Magalhães, primeiro navegador a dar a volta ao mundo (cito aqui de memória as cinco naus que compunham sua frota: Trindade, Concepción, Santiago, Santo Antonio e Victoria, a única que voltou para contar a história, e sem o seu comandante). A Máquina do Tempo, de H.G. Wells, na verdade uma versão adaptada por Paulo Mendes Campos (tinha receio de ler, pois era indicada a maiores de 12 anos, idade a que só chegaria dali a um ano). Um romance de suspense infantil que li em Itabuna, e do qual só lembro que era ambientado em Brusque, Santa Catarina (já adulto, movido pela curiosidade provocada pelo livro, fui à cidade e encontrei apenas frieza no clima e nas pessoas). E mais Tom Sawyer, O Conde de Monte Cristo, os livros de Julio Verne (20 mil Léguas Submarinas, A Ilha Misteriosa, Miguel Strogoff, Viagem ao Centro da Terra...). Provavelmente esqueço algum aqui.

A adolescência trouxe descobertas de teor radicalmente distinto. Lembro do encanto provocado pelos livros de García Márquez. Li Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera aos 15 anos, com suas páginas embebidas de fascínio, e nunca esqueci da sensação provocada pelas virgens que subiam aos céus ou pelos sucessivos Aurelianos Buendías que superpovoavam as páginas. Os poemas de Brecht aos 16, On the Road, os contos de Bukowski e o fim definitivo da inocência aos 17. A partir daí, o mundo ficou mais brutal e menos lírico. Mas a telepatia a que se referiu McEwan permanece incólume. Ainda hoje me fascina receber diretamente, sem intermediários, como um medicamento intravenoso, o pensamento de alguém que na maioria das vezes nem existe mais. Pode ser uma forma de imortalidade, mesmo que incompleta. Que seja. É o nosso legado, o registro definitivo da nossa muito breve passagem por aqui.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Excomunguem as vítimas


Uma criança de 9 anos sofre violência sexual do padrasto desde os seis. Engravida dele (sim, aos 9 anos é possível uma criança engravidar e aos 9 anos uma criança pode ser sexualmente atraente para um adulto – em que grau de torpeza e estupidez isso acontece é impossível saber), passa por um aborto autorizado pela justiça e só então um arcebispo católico se pronuncia sobre o assunto, manifestando-se contrário à operação. Mais: excomunga a mãe e os médicos responsáveis pelo aborto, que agora farão companhia a Galileu Galilei e Joana D'Arc, entre outros. Sua justificativa: “A lei de Deus está acima de todas as coisas”.
Eu diria que graças a Deus (ironia necessária neste caso) a igreja, seja ela qual for, não tem poder de veto ou influência efetiva no poder judiciário – e a excomunhão não tem qualquer efeito pratico. Que o arcebispo é um tipo insensível e estulto não há dúvida, tanto que sofreu uma dura reprimenda do ministro da Saúde, José Gomes Temporão, que qualificou a postura do religioso de “extrema, radical, inadequada”. Vale lembrar: o padrasto – que também estuprava a enteada mais velha – não foi excomungado, assim como os padres pedófilos que bolinam garotinhos nos seminários do mundo todo e recebem um tratamento condescendente por parte da alta cúpula do catolicismo.
O que mais me surpreende nisso tudo, mais até do que o fato de uma instituição milenar ter evoluído tão pouco ao longo de todo esse tempo, é a frequência da pedofilia e a elasticidade dos seus tentáculos em vários setores da sociedade brasileira. No Pará, há denúncias de rifas a R$ 5,00 a cartela para se ter o direito de estuprar garotinhas. Em quase todo o Norte e Nordeste, a pedofilia sustenta uma próspera rede que inclui hotéis, taxistas, agências de viagens e parlamentares (no caso dos últimos, não há surpresa). Num país onde o sexo consentido entre adultos, pago ou não, é algo corriqueiro, fácil de encontrar em qualquer bar, boate ou festa, tudo isso soa ainda mais absurdo e revoltante. E o pior: sem sinal de punição à vista. Mas, sei lá, quem sabe a Igreja católica encontra alguma solução. Que tal excomungar as vítimas?

quarta-feira, 4 de março de 2009

Sobre heróis e reminiscências


O jogo era à meia-noite, mas mesmo assim não dormi e fiquei assistindo à tevê na casa do meu tio, em Aracaju, onde estava passando férias. Meu pai sabia que eu estaria acordado e me ligou quando a partida terminou – Flamengo 3, Liverpool 0 –, lá pelas duas da manhã. Isso foi há muito tempo, eu tinha 11 anos e o Flamengo conquistava seu primeiro e único Mundial Interclubes, o torneio mais importante da história de qualquer clube. Lembrei desse dia quando vi no noticiário que Zico, o mais brilhante e importante jogador daquele time de craques, fez 56 anos. Mais do que um ídolo, Zico foi uma espécie de elo que me uniu ainda mais a meu pai durante a infância, assim como Romário me uniria a ele na idade adulta. O Galinho não marcou no jogo contra o Liverpool (fez dois lançamentos precisos para os gols de Nunes), mas para chegar até lá ele foi fundamental.

Um ano antes, o Flamengo tinha vencido pela primeira vez o Campeonato Brasileiro, e meu pai não suportou assistir ao jogo, preferiu sair para andar, fumar e esperar passar o tempo. Voltou com o jogo já encerrado e me abraçou. Da mesma forma que me abraçou quando o Mengão ganhou a Libertadores, contra o Cobreloa, e o tricampeonato brasileiro, contra o Santos, Adílio fazendo um golaço de cabeça no final. Depois Zico foi vendido ao Udinese e Morais Moreira criou uma música linda, que dizia: “E agora como é que eu fico nas tardes de domingo, sem o Zico no Maracanã. E agora como é que eu me vingo de todas as derrotas da vida se a cada gol do Flamengo eu me sentia um vencedor”. Zico passou, o Flamengo imbatível passou e meu pai não está mais aqui para me abraçar quando nosso time ganha. O que fazer? O tempo passa, as reminiscências ficam, e temos que nos contentar com elas.