quarta-feira, 18 de março de 2009

A persistência da genialidade


Ferreira Gullar concedeu uma ótima entrevista à Bravo! (para o bem da imprensa e dos leitores, a revista dá sinais de recuperação), que o define como o maior poeta brasileiro vivo. Acredito que deve haver poucas controvérsias em torno dessa questão, após a morte de João Cabral e Quintana – Manoel de Barros, embora valoroso, não possui o estofo necessário. Gullar, a despeito das incursões pelo concretismo e neoconcretismo, produziu poesia de excelente qualidade ao longo de quase 60 anos. Assombros com alto poder de impacto como o memorialístico e quilométrico Poema Sujo, seu Amarcord literário. Ou o engajado Dentro da Noite Veloz e seu “guevarianismo” hoje obsoleto. Ou mesmo o mais recente Barulhos, repleto de questionamentos existenciais. Me encantam em Gullar os versos simples, como: “Sua voz quando ela canta me lembra um pássaro/Mas não um pássaro cantando/Lembra um pássaro voando”. Relendo há pouco o Toda Poesia na rede da varanda, percebi o quanto fui influenciado na juventude por seus poemas.
Mas não era apenas ou exatamente sobre Ferreira Gullar que eu queria falar. Voltando à entrevista, o poeta – que também é crítico de arte e pintor diletante – se defende da pecha de conservador por suas análises, digamos, pouco simpáticas à arte de vanguarda. Gosto do que ele diz:

“Nesta altura do campeonato, quando o vale-tudo se apoderou das artes plásticas, a qualificação de "conservador" perdeu sentido. Conservador por quê? Por diferenciar expressão e arte? No meu entender, toda arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se me machuco e grito de dor, estou me expressando; não estou produzindo arte. Da mesma maneira, se alguém começa a bater numa lata, emite sons; não cria música. (...) Arte, portanto, pressupõe o "saber fazer". Saber pintar, saber dançar, saber esculpir, saber fotografar, saber tocar, saber compor. Tal critério prevaleceu durante milhares de anos, desde as cavernas até o advento das vanguardas, no final do século 19, período em que se questionou o "saber fazer". Pois bem: sob a minha ótica, a preocupação vanguardista é um fenômeno que se esgotou. Por milhares de anos, a arte seguiu adiante sem ligar para o conceito de vanguarda. Ninguém me convencerá de que, em pleno século 21, crucificar-se na traseira de um Fusca, deixar-se filmar cortando a vagina ou masturbar-se numa galeria equivale a um gesto artístico. Segundo o norte-americano John Canaday, historiador da arte, os críticos de hoje temem repetir o erro cometido pelos críticos do século 19, que não compreenderam os impressionistas. Em conseqüência, assinam embaixo de qualquer bobagem que levante a bandeira do "novo". Percebe a armadilha? Caso três ou quatro artistas resolvam espremer uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ouvirão dele que praticaram um ato inovador. Definitivamente, não penso desse modo.”

Ferreira toca no xis de uma questão fundamental às discussões sobre arte nos dias de hoje: a substituição da meritocracia pela democracia, com tudo que isso encerra. É difícil, por exemplo, considerar o hip hop uma manifestação artística. Manifestação cultural e comportamental, sem dúvida. Mas arte? Mais: em nome de quê devemos valorizar qualquer batuque que aparece a toda hora nas esquinas de uma cidade como Salvador, para citar a realidade geograficamente mais próxima de mim? Para estimularmos a inclusão social? O igualitarismo? Como disse Gullar, a arte, desde que se entende por arte, primou pelo reconhecimento aos diferentes, e não aos iguais, e foi assim que a civilização nos legou Beethoven, Bach, Cervantes, Shakespeare, Rembrandt e Da Vinci – tendo, por outro lado, passado uma borracha nos medíocres. Por que os critérios de avaliação deveriam mudar, fazendo com que passemos a avaliar a qualidade de uma obra em função da origem social ou racial do autor, ou mesmo da sua orientação sexual? É uma distorção tremenda. Harold Bloom, que conhece como poucos o valor da alta cultura, definiu como Era do Ressentimento essa condescendência contemporânea com a mediocridade. Nas palavras dele, em entrevista à Folha de S.Paulo: “O que ocorre nas universidades, hoje em dia, é que as obras literárias utilizadas para o estudo são escolhidas não porque são esteticamente mais poderosas ou porque são mais sábias. O intelecto, a sabedoria e a beleza são substituídos por considerações acerca da orientação sexual, gênero, pigmentação da pele, etnicidade e assim por diante”.
Vale lembrar que foi o mérito, e não a condescendência, que no Brasil permitiu a artistas populares de talento ganhar o devido reconhecimento, mesmo que tardio. Todo mundo sabe que Cartola é eterno não por ter sido preto e favelado, mas por ter concebido versos como “De cada amor tu herdarás só o cinismo”. Ou seja: é o gênio que permanece. Podem passar 200 anos e o criador da Mangueira estará entre nós, ao contrário dos pagodeiros do circuito Barra-Ondina. Ou, como diria Quintana, “eles passarão. Eu passarinho”.

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