quinta-feira, 29 de maio de 2014

Compositor de destinos




Em uma das cenas finais de Cinema Paradiso, que revi recentemente ao lado de minha filha, o personagem principal, Totó, retorna à cidadezinha natal na Sicília depois de 30 anos. Está lá para o enterro de um velho amigo, o projecionista Alfredo, que inoculou nele o amor pelo cinema. É um reencontro comovente com um passado no qual Totó foi muito feliz, mas que julgava sepultado. Após rever as filmagens antigas de um grande amor perdido, ele diz à mãe: “Sempre tive medo de voltar. Agora, após tantos anos, achei que estava mais forte, que tinha esquecido muita coisa. No entanto, está tudo diante de mim, como se eu tivesse ficado sempre aqui”. Enquanto minhas lágrimas escorriam, em meio aos beijos proibidos que se sucediam ao final da pequena obra-prima de Giuseppe Tornatore, me dei conta da capacidade que a memória tem de conservar a nossa essência, mesmo com a erosão causada pelas dores e intempéries de décadas etéreas e fugidias. 

Assistir novamente a Cinema Paradiso depois de tanto tempo fez o meu próprio passado emergir, como se visitasse a casa onde morei na infância ou viajasse num Fusca para a cidadezinha onde minha mãe nasceu. Lembrei de momentos bons com meus pais e irmãos, do início complicado da adolescência, das primeiras namoradas (onde estarão?) e dos amigos que até hoje estão firmes e fortes ao meu lado. Lembrei das minhas aspirações literárias, dos poemas insossos que considerava sublimes, dos escritores, músicos e cineastas que contribuíram para a minha formação. Enfim, fui invadido por essa massa espessa da qual somos feitos e que nos impulsiona, junto com nossos sonhos cada vez mais escassos, rumo ao epílogo. Vinte, trinta, quarenta anos são na verdade pouco mais do que horas, e de tempos em tempos, quando acionamos algum gatilho na memória, eles voltam a nos assombrar. 

É mais ou menos o que imagina o velho Eguchi em A Casa das Belas Adormecidas, de Yasunari Kawabata, que estou lendo agora: “Pensando melhor sobre o assunto, mesmo que se falasse de passado muito distante, talvez, no ser humano, memória e reminiscências não pudessem ser definidas como próximas ou distantes unicamente por ser sua data antiga ou recente. Pode acontecer que, mais do que o dia de ontem, os acontecimentos da infância, sessenta anos atrás, tenham ficado guardados na memória e fossem recordados de uma forma mais nítida e mais viva. Isso não acontece com mais frequência na velhice? Além disso, não haveria casos em que os acontecimentos da infância contribuiriam para formar o caráter e dar direcionamento à vida de uma pessoa?".

Outro dia, uma amiga escreveu sobre o sentimento de inadequação que teve ao assistir recentemente a um show da Blitz, banda que fez um sucesso avassalador no início dos anos 80, mas que hoje sobrevive do saudosismo que esse período ainda provoca em muita gente. Ela não se reconhecia no plateia ao redor, formada em sua maioria por pessoas com mais de 40 anos. E concluiu: “O tempo passa, mas você não passa junto com ele. O seu corpo já tem 45 anos, mas você tem certeza que ainda não passou dos 30. Não é nenhum tipo de síndrome, nem é nenhuma não-aceitação da idade. É só uma sensação ruim de não estar em ‘casa’. Deu vontade de sair correndo dali, entrar no Circo Relâmpago e abraçar minha gente”. Como ela, eu também estava lá no Circo Relâmpago. Um garoto de 14 anos, que andava tranquilo pelas ruas da Pituba e idolatrava aquela gente bronzeada mostrando seu valor nos palcos, como hoje minha filha idolatra Demi Lovato ou os rapazes de um tal One Direction. 

Mas no meu caso, ao contrário de minha amiga, o tempo passou e eu passei junto com ele. É impossível não sentir fisicamente, e sobretudo emocionalmente, a pressão do compositor de destinos, como bem definiu Caetano, sobre meus ombros, me vergando como a um velho mastro cansado de cruzar oceanos. Mas quero ainda cruzar outros mares antes de sair para fora do círculo, sem entender nada do que foi estar dentro dele. Em suma, valem as palavras de Cortázar em O Jogo da Amarelinha: “Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”

quarta-feira, 30 de abril de 2014


“Na maturidade da vida, você espera um certo descanso, não é? Você acha que merece isso. Eu, pelo menos, achava. Mas aí você começa a entender que premiar a virtude não compete à vida. Também, quando você é jovem, acha que pode prever as prováveis dores e tristezas que a velhice poderá trazer. Você imagina a si mesmo solitário, divorciado, viúvo, imagina os filhos crescendo e indo embora, os amigos morrendo. Você imagina a perda de status, a perda do desejo – e de ser desejado. Você pode até pensar na sua própria morte, que, por mais que esteja acompanhado, só poderá enfrentar sozinho. Mas tudo isso é olhando à frente. O que você não consegue fazer é olhar à frente e depois imaginar a si mesmo olhando para trás daquele ponto no futuro. Aprendendo as novas emoções que o tempo traz. Descobrindo, por exemplo, que à medida que as testemunhas da sua vida vão diminuindo, existe menos confirmação, e portanto menos certeza, a respeito do que você é ou foi. Mesmo que você tenha registrado tudo assiduamente – em palavras, sons, imagens – você pode descobrir que se dedicou à forma errada de registro.”

Julian Barnes, em O Sentido de um Fim.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Cem anos de fascínio



Macondo está órfã. José Arcádio, Úrsula, Rebeca, Remédios, Melquíades e todos os Aurelianos Buendía, incluindo aquele primeiro, que o pai levou para conhecer o gelo numa tarde remota, também estão órfãos. Florentino Ariza e Fermina Daza estão órfãos. O senhor muito velho com umas asas enormes está órfão, assim como Estevão, o afogado mais bonito do mundo. Assim como a moça que deixou um rastro de sangue na neve antes de morrer. Ou como Erendira e sua avó desalmada, ou como o general em seu labirinto, o patriarca em seu outono, o coronel a quem ninguém escreve. Assim como o sábio triste que desejou uma noite de amor com uma adolescente virgem no dia dos seus 90 anos. Assim como eu.

Gabo nos deixou a todos órfãos porque foi um pai que nos mostrou como ninguém o caminho a ser seguido. Um pai que aprendemos a amar à medida que o conhecíamos, à medida que desbravávamos lentamente (ou melhor: avidamente) o seu infinito particular. O que dizer do fascínio que senti aos 15 anos, quando tomei um livro seu pelas mãos e me embrenhei nos amores contrariados de O Amor nos Tempos do Cólera? E o que dizer quando, logo em seguida, ainda impregnado pelo fascínio daquela história eterna, ele me levou pela mão e me mostrou o universo de desencanto e fantasia em estado bruto que encontrei em Cem Anos de Solidão? Quantos alumbramentos, quantas descobertas, quanto delírio silencioso.

Li muitos livros seus ao longo dos meus primeiros vinte anos. Depois, por já ter lido quase tudo, demorei a voltar a ele. Não importa. Seu lugar está garantido aqui, no monstro que se debate no lado esquerdo do meu peito. Há duas semanas, reli Memória de Minhas Putas Tristes, seu pequeno, singelo e derradeiro romance. E senti uma pontinha daquele sentimento avassalador que seus romances provocavam no jovem que fui. No homem que sou. Era um velhinho querido, amado, como são os velhos por quem devotamos doses maciças de afeto. Fique em paz, Gabo. Meu querido Gabo. Nós, que pertencemos às estirpes condenadas a cem anos de fascínio, teremos muitas outras oportunidades sobre a Terra de reencontrar você. 

terça-feira, 1 de abril de 2014

Depois do pesadelo




Para quem nasceu em 1970, as recordações mais nítidas da ditadura militar, iniciada há exatos 50 anos, se concentram no seu fim. Sou testemunha dos estertores da barbárie institucionalizada, que foi embora mais ou menos como começou: meio como farsa e como prenúncio de tempos difíceis. Volto aos meus 14 anos, numa manhã de 1984, e vejo meu pai entrando no quarto em que eu e meus irmãos dormíamos, o rosto contrariado e um jornal nas mãos, que jogou no meio das nossas camas, dizendo: “Diretas já era”. Começávamos mal, algo que se estendeu por muito tempo com consequências desastrosas. 

Um ano antes, creio, escrevi uma redação para o colégio intitulada “Uma medalha para o presidente”, que de forma meio irônica enaltecia a capacidade do general Figueiredo em conduzir o país à Abertura. Lembro que a redação terminava de maneira patética com a frase “Ok, Figueiredo, você venceu”, obviamente inspirada na canção da Blitz que era sucesso naquele tempo: “Ok, você venceu, batata frita”. Minha mãe adorou a redação e saiu mostrando a todos os parentes que iam lá em casa, me deixando ainda mais ensimesmado. Fui alçado às incertezas da adolescência nesse ambiente de fim de festa, depois de passar as tardes da infância vendo filmes e seriados importados e notícias distantes sobre o governo Geisel. Lá em casa não havia milagre econômico. Meus pais batalhavam em seus trabalhos e nós crescíamos de certa forma alheios aos anos de chumbo, protegidos por uma redoma de afeto. 

A ditadura acabou e aos 15 anos eu descortinei o mundo real. Enquanto as histórias de García Márquez me fascinavam, numa espécie de escapismo involuntário, passei a me debruçar (na maioria dos casos sem entender nada) sobre temas como capitalismo, comunismo, totalitarismo, fascismo, imperialismo e outros ismos menos notórios. E, principalmente, me dei conta da devastação que os 21 anos de ditadura provocaram. Lembro do sentimento de asco que o livro-relatório Brasil: Nunca Mais provocou em mim, do horror à tortura como método sistemático de trabalho, daquelas coisas horríveis feitas com insetos, choques elétricos e paus-de-arara. 

Com Feliz Ano Velho, conheci, a partir da tragédia individual de Marcelo Paiva, a tragédia coletiva que levou a reboque o seu pai, Rubens, um caso que até hoje me dilacera. Já Feliz Ano Novo me mostrou que essa mesma tragédia coletiva podia produzir boa literatura. Passei a ouvir Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso. A usar camisas com estampa de Che Guevara. A escrever poemas engajados horrorosos. A descobrir ecos do nosso sofrimento no Chile, na Argentina, no Uruguai. Era apenas um filho da revolução, um tímido e sonhador integrante da geração Coca-Cola, menino demais para tomar atitudes que se assemelhassem a uma rebelião juvenil. Cheguei tarde às dores do mundo. E, com os hormônios em ebulição e a vida inteira pela frente, só queria desfrutar dos prazeres e tentações que ele me oferecia.

segunda-feira, 3 de março de 2014


“Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. (...) Como as palavras perdidas da infância, escutadas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. (...) Como as músicas do momento, as valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos avós. Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com ela pelo corredor –, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.”

Julio Cortázar, em O Jogo da Amarelinha

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Terceira classe





Dos 17 aos 28 anos, viajei muito de ônibus. Era a maneira que encontrava para desafiar distâncias enormes, como o trecho da BR-116 que liga Salvador a São Paulo e que percorri inúmeras vezes quando vivi na capital paulista. Ou mesmo para conhecer outros cantos do Brasil, como Fortaleza, Porto Alegre, Brasília ou Belo Horizonte. Avião nem pensar. Como hoje, pertencia à classe média. A mesma classe média beneficiada pelo bolsa-avião involuntário que nos permitiu lotar aeroportos e atrasar voos, para desespero dos quatrocentões do ar. Agora também posso dar meu rolezinho nos saguões de embarque internacional, pagando em não tão suaves prestações a minha viagem.

A inclusão aérea, proporcionada pela inclusão social dos últimos 15 anos, deveria ser vista sob qualquer aspecto como algo positivo. Na Europa, vemos pessoas de várias classes, cores e crenças reunidas pacificamente nos salões de embarque, com voos saindo praticamente sem atraso. Assim como vemos por lá essas mesmas pessoas no metrô e nas ruas. Mas parece que não queremos ser como a Europa. Queremos manter o segregacionismo social dos velhos tempos, para evitar que aeroportos virem rodoviárias e exponham a chaga da nossa falta de educação, do nosso atraso, da postura jeca dos nossos meio-pobres. Queremos evitar pessoas como o advogado fotografado de bermuda e camiseta em um aeroporto do Rio por uma professora, ela também - provavelmente - de classe média como ele, mas que imaginava estar tirando sarro de um alien social perdido num lugar que não lhe cabe. 


Sim, somos um povo mal-educado, grosseiro, que fala alto e ouve arrocha ou sertanejo universitário no celular sem se importar com os outros ouvidos. Afinal, a inclusão social não trouxe a reboque uma educação formal decente, e nesse sentido permanecemos patinando no século 20, que escancarou nossas desigualdades existentes desde a colônia. Mas ao menos “eles” têm uma boa desculpa. Já os ricos, ah, os ricos. São aqueles que, com raras exceções, estacionam SUVs enormes no passeio, que destratam garçons, vendedores ou vigilantes por qualquer falha mínima, que se exibem com guardanapos na cabeça e fazendo trenzinho em restaurantes chiques de Paris, como a turma de Cabral e Cavendish. Nossa elite é tosca, preconceituosa e, como alguns de nossos pobres, profundamente mal-educada. O recato e a discrição não parecem ser características admiradas pelos brasileiros. Arrotamos vantagens em restaurantes, nos vangloriamos das bocas-livres, dos convites VIPs, da exclusividade a qualquer custo. 

Como consequência, estamos criando uma nova espécie de apartheid, gestando um ovo de serpente que pode ter consequências imprevisíveis. Cada vez mais nos odiamos, algo que pode ser mensurado facilmente nas brigas de trânsito e de torcida, nos espancamentos de negros e gays, na proliferação de quadrilhas da fé que perseguem religiões africanas. Tudo isso observado por um Estado ausente, que deixa os aeroportos lotarem, os imbecis se matarem e os inocentes se ferrarem. Não evoluímos como sociedade. Continuamos primitivos e mal-acompanhados por nações que se desenvolvem a qualquer custo, sem políticas de bem-estar social ou ambientais, como Rússia, China e Índia. É isso que queremos? Um ódio desmedido e sem sentido? No Brasil, ao contrário do que disse Sartre, o inferno somos nós.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Uma foto em preto e branco



"Alguém clamando por socorro
A 2000 km de distância
É tão longe
É como aquela velha foto
Esquecida amarelada
De teus pais andando à beira da estrada
Aquele mato aquela cachoeira
As crianças nuas
É tão longe
É como aquele tempo em que
A bondade tinha sua recompensa
Uma foto em preto e branco
De um mundo tão remoto
Não dá mais para lembrar
Aquela juventude.
Um bebê roubado sem carinho
Sem mãe sem leite
É tão longe
É como aqueles dias nos
Nossos corações
Em que antes de tudo
Imperava a felicidade.
O mato cresce revolto
Desafiando os céus."

Esse poeminha foi escrito no dia 10 de fevereiro de 1991, aniversário de minha mãe, durante uma viagem a Recife, por um rapaz que acabara de completar 21 anos e dava vazão a uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Talvez fosse um recado ao homem de 44 anos, fios brancos em profusão dominando paulatinamente o cabelo e a barba, que agora bebe os últimos goles de um vinho espanhol no aconchego de sua casa. Difícil crer que o “tão longe” a que ele se refere no poema é um intervalo de pouco mais de dois anos, quase um sopro de horas para quem já atravessou tantas outras, muitas delas desperdiçadas. Há um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se ele de certa forma já enxergasse o outrora, e não o porvir.

Mas talvez o rapaz de 21 anos já antevisse naquela época a incômoda capacidade do tempo de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria esquecido num armário até ser lembrado por acaso pelo seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, eu, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntimo dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo. Lembro que ficava intrigado quando ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Mas a minha aurora é também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um tropeção.

Ouvi há pouco um disco lançado em 1980, quando eu tinha 10 anos, e ele me trouxe reminiscências vívidas de casas, ruas, pessoas, casos prosaicos, sentimentos confusos, saudades avassaladoras e, principalmente, a sensação de que a memória é uma companheira de jornada muitas vezes cruel, mas da qual não conseguimos – e provavelmente não queremos – nos livrar. “Olhe bem nos meus olhos. Olhe bem pra você. O fato é que a gente perdeu toda aquela magia. A porta dos meus 15 anos não tem mais segredo. E velha, tão velha, ficou nossa fotografia. A quem é que a gente engana com a nossa loucura. Decerto a gente perdeu a noção do limite”, cantava Oswaldo Montenegro em Aquela Coisa Toda, o autor do disco que eu ouvia ainda agora. Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou, um emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Antes do fim




Não por acaso, o que mais se vê em Nebraska, filme de Alexander Payne, são vidas desperdiçadas. Vidas escorrendo numa sala em frente à tevê ou vendo carros passar. Vidas esperando ansiosamente por um nome na sepultura. Daí ser tão comovente a tentativa vã do seu protagonista de imprimir, já nos estertores da vida, um esboço de sentido em uma trajetória que até aquele momento foi pouco mais do que um borrão, um quadro em branco. Prestes a sucumbir de vez à senilidade, Woody Grant (Bruce Dern) se agarra a uma propaganda enganosa, um folheto que diz ser ele o ganhador de 1 milhão de dólares. Para  receber o prêmio, precisa ir até Lincoln, no Nebraska. Uma distância significativa do lugar onde mora, mas nem por isso capaz de demover um homem determinado. Mais do que ganhar um bom dinheiro, o que impulsiona Woody é legar algo para depois que for embora, em vez de apenas sumir da paisagem.

Há algo do Alvin Straight de História Real, o magnífico filme de David Lynch, em Woody Grant. Ambos são velhos turrões, que se apegam a uma última cartada oferecida pela vida para se tornarem pela primeira vez protagonistas da própria história. Lançam-se pelas libertadoras estradas da América na tentativa de concretizar o seu pequeno naco de sonho e fazer um acerto de contas final com a família antes que chegue o oblívio. Tanto em Alvin quanto em Woody, o senso de urgência, de que é preciso viver enquanto há tempo, chegou tarde demais. E a velhice é território propício à proliferação de frustrações e arrependimentos altamente nocivos.

Transpondo o drama derradeiro de Woody para o nosso dia a dia, chegamos a uma conclusão implacável: não temos qualquer controle sobre o nosso destino, além do fato de que cuidarmos razoavelmente da nossa saúde eleva as nossas probabilidades. Mas são apenas estatísticas, regras cheias de exceções, que não levam em conta a brutal insensibilidade do acaso. Intimamente, projetamos nossa trajetória com princípio, fim e um meio com duração minimamente generosa. Talvez por isso, procuramos – eu pelo menos – não contar com a sorte e tratamos de realizar nossos prosaicos sonhos de felicidade fugaz. Mas é sempre muito menos do que quase todos gostaríamos.

Não sei, algo me diz que não devo contar com o futuro. Ele não é muito confiável. Basta lembrar de Tomas e Teresa no final de A Insustentável Leveza do Ser, dirigindo plenamente felizes pela estrada, pouco antes do acidente fatal. A morte encontrou os dois justamente quando superaram tudo, o fim abrupto da Primavera de Praga, as dificuldades de uma vida complicada, com amantes em série, do lado dele, e uma insegurança crônica, do dela. Recordo da vez em que chorei copiosamente enquanto subiam os créditos do filme numa madrugada solitária em São Paulo, acossado pela sensação de impotência e vazio que nos provocam as mortes no auge.

Lembro também de Tony Judt, intelectual brilhante, tomado pela esclerose lateral amiotrófica aos 60 anos, talvez o melhor momento da sua vida. Reproduzi aqui no blog o trecho em que ele fala, no livro O Chalé da Memória, que a maior frustração causada pela doença terminal é não poder voltar a viajar de trem. “Waterloo nunca mais, paradas no interior nunca mais, solidão nunca mais”. É muito doloroso. De minha parte, pretendo conhecer os países possíveis, cultivar os afetos que me são caros e aproveitar os pequenos tesouros que passam vez ou outra à minha frente. Afinal, um dia também não poderei mais andar de trem.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Viagem ao fim da noite



Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental, como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a reencontrar a inconsciência.
Nunca li Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível, embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo. Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.

Não tem sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil. E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre esse estado de coisas.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Vinte anos este mês



Em janeiro de 1994, eu prestei vestibular para jornalismo em algumas faculdades de São Paulo. Foi um período em que minha vida era tomada por resoluções em cascata, que incluíam morar em outra cidade, deixar a casa dos meus pais e tentar ser jornalista na maior cidade do Brasil. Há 20 anos, minhas utopias pessoais ainda estavam de pé, quase intactas, e o mundo inteiro parecia se descortinar à minha frente. Utopias de um jovem pertencente à última geração que cresceu acreditando nelas. Até que em 1989 o Muro de Berlim desabou, o comunismo ruiu e o que se convencionou chamar de esquerda aderiu em parte ao cinismo - mas aí já sabíamos que a aventura comunista não tinha sido mesmo boa coisa. De qualquer modo, havia ainda a possibilidade de que algo desse certo, uma terceira via ou algo do gênero, e me mudei para São Paulo com parte dessas convicções ainda reverberando em minha restrita visão de mundo.

Acabei entrando justamente na faculdade que queria, a Cásper Líbero, e foi uma experiência enriquecedora (incomparavelmente melhor do que o curso de Administração de Empresas que havia deixado pelo caminho em Salvador). Morar em outra cidade, a princípio com meu irmão mais velho, depois sozinho e por fim com minha futura mulher, também valeu a pena, assim como conhecer pessoas que agregaram valor ao meu camarote intelectual, entre professores e colegas de faculdade e trabalho. Mas esse período também representou o declínio das minhas ilusões. Mais uma vez, pertenci a uma geração derradeira, chegando novamente no final da festa. O fim do século 20 trouxe a reboque a chegada da internet e a pulverização da informação, provocando a derrocada do jornalismo clássico com o qual alimentávamos nossas ambições (redações enfumaçadas, sinfonia de máquinas de escrever e escapulidas às cinco da tarde no bar da esquina). A imprensa não seria a mesma depois do www e nós, recém-formados, acompanhávamos perplexos essa mudança. As redações foram ficando mais enxutas, a informação também. Quem formava opiniões passou a ser formado por elas. Com isso, mesmo os meus amigos mais talentosos acabaram não vingando na profissão como mereciam.

Voltei para Salvador em junho de 1998. Casei, fiquei desempregado e um tanto deprimido por um par de anos, até que tive a minha filha e comecei a trabalhar em redação, escrevendo críticas de cinema e resenhas literárias. Foi bom enquanto durou, mas não poderia durar muito. De todo modo, os anos passados em São Paulo foram fundamentais para formar a pessoa que sou hoje. Não aguentei a cidade mais do que cinco anos, mas sinto falta do seu espírito cosmopolita e dos amigos com quem dividi a sala de aula, o dia a dia no trabalho e, principalmente, as mesas de bar. Já se vão 20 anos. É tempo demais, mas também de menos. Converso com alguns amigos pelas redes sociais, vejo fotos de outros e não resisto ao clichê do “parece que foi ontem”. Talvez porque ainda acredite em utopias, mesmo as mais estúpidas e sem sentido. Talvez porque 20 anos sejam, na realidade, pouco mais do que uma vírgula na nossa idade adulta.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Transcendência




Hemingway dizia que a Espanha era o melhor país do mundo depois do seu próprio país.  Foi lá (e também em Paris) que ambientou O Sol Também se Levanta, sua obra-prima, além do melancólico testemunho romanceado da Guerra Civil Espanhola em Por Quem os Sinos Dobram, livro que não está entre os meus preferidos. Chamado de Don Ernesto por toureiros e garçons que costumavam lhe servir um jerez puríssimo, o Papa amava as touradas, o embate viril e esteticamente belo entre homem e touro. Mas a Espanha que amou, ainda agrária e profundamente católica, era um país bem diferente do de hoje, que parece enfim ter se libertado do espectro hostil da ditadura franquista. A crise pós-2008 ainda está em curso, mas o que se percebe é uma nação feliz, sem amargura aparente, entregue a um hedonismo agradável de fim de noite, com seus bares lotados e gente de todas as idades caminhando sossegada pelas ruas. 

Claro que é uma visão superficial de quem esteve poucos dias, e as bandeiras da Catalunha expostas aos montes nas sacadas de Barcelona deixam claro que a ferida aberta pelo “generalíssimo” está longe de cicatrizar. Em uma dessas sacadas, um cartaz dizia, em catalão: “A língua é um direito e uma cultura”, como uma resposta aos idiomas sufocados durante a ditadura. No País Basco, que não visitei, a ferida é ainda mais extensa. Franco fez um mal danado, assim como Salazar no país vizinho. 

Falando em Franco e em guerra civil, por pouco não consegui ver de perto a Guernica no Reina Sofia, talvez o mais pungente testemunho de um artista sobre a barbárie que se abateu sobre a Espanha. Para compensar em parte, pude ver as pinturas negras de Goya no Museu do Prado, e contemplei, entre horrorizado e fascinado, Saturno devorando um de seus filhos bem à minha frente.

Quem quiser falar com Deus deve ir à Espanha. Suas igrejas e monastérios nos fazem pensar seriamente (ao menos durante os segundos de encanto) na existência de algo além da nossa finitude. Já na primeira noite, fomos a uma missa na Sagrada Família a convite de uma amiga que mora lá. Uma experiência que, a despeito do sono, provocou em mim uma sensação de epifania, de transcendência. Dias depois, ao chegar no Monestir de Montserrat, cercado por aquele exército de rochas silenciosas lá pertinho do céu, eu mesmo duvidei do meu ateísmo renitente.

Mas o que mais me impressionou na Espanha - ao lado da genialidade quase absoluta de Gaudí - foi a capacidade singular que os espanhóis possuem de produzir beleza humana a partir de lugares de beleza natural quase infinita. Tanto Madri quanto Barcelona são cidades estupendas, capazes de nos fisgar pela fé, pelo deslumbramento ou, o mais provável, pela boca. De qualquer modo, saí de lá sem a mesma sensação de pertencimento com que me deparei em Paris e em Lisboa. Estas calaram fundo em meu passado, como se meu íntimo estivesse estreitamente atrelado a algo que só o Tejo ou o Sena seriam capazes de decifrar. A Europa, de qualquer modo, continua a me seduzir. Quanto mais me embrenho pelo continente, mais quero me perder por lá, fuçar cada país, descobrir nos diferentes idiomas a minha própria voz.