terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Viagem ao fim da noite



Um pesadelo: eu e meu irmão íamos no banco de trás de um carro. Estávamos na área externa de um hospital aqui da cidade e, ao passarmos por uma área gramada, vimos vários caixões enfileirados dos dois lados da pista. Então meu irmão disse algo como: “Não importa o que se faça, a gente acaba sempre em silêncio e sozinho”. Aquilo provocou em mim um soluço imediato, entre o choro e a falta de ar, e meu irmão me abraçou forte, tentando me consolar. Logo depois, descíamos uma ladeira íngreme à noite, agora com meu outro irmão no banco do carona conversando amenidades, e do lado de fora eu via um precipício enorme ao lado da estrada. Continuava chorando e sentindo falta de ar. Fui lançado para fora do sonho e me vi numa madrugada fria, por conta do ar condicionado. Senti uma tristeza intensa e uma sensação de confusão mental, como se não conseguisse entender a cena que acabava de presenciar. Custei a reencontrar a inconsciência.
Nunca li Freud, portanto minha interpretação do sonho é a mais rudimentar possível, embora também exista uma outra leitura plausível, mais pessoal, que não cabe contar aqui. Na minha analogia onírica, aqueles caixões pertenciam aos mortos em série que encontrei nos noticiários do dia anterior. O cinegrafista morto por um morteiro. O jovem morto por um imbecil enciumado numa festa. O pai de família morto numa briga de trânsito na frente da mulher e do filho bebê. O rapaz gay morto aos 18 anos depois de ser brutalmente espancado por um grupo. Parece claro, para mim, que a realidade ao redor vem provocando efeitos nocivos na minha inconsciência, interferindo nos pacatos devaneios que desenvolvo na zona abissal todas as noites. Porque não estou diante de uma realidade qualquer. O pesadelo de verdade está aqui fora, inescapável e opressor.

Não tem sido fácil acompanhar o crescimento avassalador da violência urbana no Brasil. E, principalmente, o recrudescimento de uma nova modalidade de fascismo. As pessoas não estão sendo abatidas apenas por conta de assaltos, sequestros relâmpagos ou outros tipos de crimes que têm como objetivo tomar o que é do outro (os quatro mortos listados acima comprovam isso). Em alguns casos, o objetivo é eliminar o outro, negar a sua existência, como Narcisos broncos que acham feio o que não é espelho. Caminho assustado por essa terra devastada, oca de bom senso, atulhada de opiniões rasas, derivativas e sem matizes de parte a parte. Tenho medo do que me cerca e lamento com soluços os que vergam rumo ao chão. Sou um pouco como o Barnabu de Céline em Viagem ao Fim da Noite ou o garoto cigano de Kosinski em O Pássaro Pintado, tentando sobreviver em campo minado, presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu da idiotia. E minha viagem particular ao fim da noite de ontem diz muito sobre esse estado de coisas.

4 comentários:

Laert Yamazaki disse...

Como sempre, um excelente texto Paulo.
O horror está tão enraizado no cotidiano que, tal qual a Guanabara de Caetano, ficamos cegos de tento vê-lo.
Poucos ainda tem a sensibilidade e se comovem com essas barbáries.
Forte abraço.

Paulo Sales disse...

O problema,Laert, é que até o nosso inconsciente está sendo invadido pela barbárie cotidiana. Nem em sonho temos sossego.
Grande abraço

Giovanni Soares disse...

Estamos virando um país de bárbaros, onde tudo - ou quase tudo, para ser mais exato - caminha na direção contrária do mínimo aceitável de uma boa civilidade. A barbárie está se espalhando pelo país. É uma pena, Paulinho. Só este ano, conforme a mídia relatou, já tivemos cabeças cortadas em Pedrinhas, no Maranhão. Gente amarrada no Rio de Janeiro, reacendendo os tempos terríveis dos escravos presos em Pelourinhos. Justiceiros. O aumento da violência de uma ponta a outra do país. Meu temor é o Brasil descambar para algo incontrolável, sobretudo em um ano complicadíssimo como este. O fascismo, como você bem lembrou, pode renascer em uma nova onda, em uma nova modalidade.
Mudando de assunto: é de tomar uma com Chicão dia 22? Forte abraço!

Paulo Sales disse...

Rapaz, é assustador. O artigo de hoje de Ruy Castro na Folha fala de forma brilhante sobre isso, sobre a derrocada do país cordial, que está sendo substituído por uma terra devastada. E o pior: o uso político dos dois lados e a ignorância de quem deveria refletir um pouquinho são aterradores.
Quanto ao outro assunto, já está marcado, meu velho.
Grande abraço.