domingo, 22 de abril de 2012

Erguer e destruir




Esta semana, quando levava minha filha para a escola, Joshua Bell começou a tocar um dos Noturnos mais conhecidos de Chopin no som do carro. Aos poucos, aquela melodia tão poderosa foi nos invadindo, avançando sobre nossa consciência e criando uma espécie de transcendência, uma bolha onde nos abrigamos do congestionamento e do barulho dos carros e motos. Permanecemos silenciosos durante os pouco mais de três minutos em que o violino de Bell quase nos desmanchou (a mim, pelo menos). Foi uma ligeira epifania, uma pequena amostra de beleza absoluta. Chopin morreu em Paris no dia 17 de outubro de 1849, aos 39 anos, mas 163 anos depois ele aparecia para nós, no início de uma tarde quente de outono, nos deixando ensopados de fascínio.

Deixei minha pequena na escola e voltei para casa pensando em Chopin, Joshua Bell e na capacidade que o homem tem de, como disse Caetano, erguer e destruir coisas belas. Um Noturno de Chopin é a prova inequívoca do valor da existência. Diria até que é a prova inequívoca de que podemos vingar como espécie, por mais que a travessia até aqui tenha sido tão penosa. Não foram poucos os percalços, e para isso basta lembrar que Joshua Bell dá prosseguimento a uma longa tradição de geniais violinistas judeus. E que uma das razões pelas quais o violino virou um instrumento judeu por excelência é a sua praticidade. Em outras palavras, um instrumento fácil de carregar quando o anti-semitismo tornava-se insuportável e uma existência nômade, de um canto a outro da Europa, se fazia necessária.

Fiquei sabendo disso ao ler um texto de Arthur Dapieve para a revista Bravo, no qual ele também falava sobre a restauração de violinos enterrados nos campos de concentração nazistas. Talvez não exista imagem mais adequada para personificar o “erguer e destruir coisas belas”: um instrumento capaz de tocar um Noturno de Chopin escondido no âmago de uma máquina concebida para dizimar seres humanos em escala industrial. Dói pensar naquelas vidas sem nome com seus violinos enterrados, provavelmente homens e mulheres de talento inimaginável, aniquiladas pelo que de mais estúpido e devastador a humanidade produziu. Quantos gênios o nazismo transformou em nada? Sabe-se que 6 milhões de judeus morreram na Segunda Guerra (número que se torna ainda mais absurdo se incluirmos os mortos de outras nacionalidades), o que dá uma idéia, ainda que vaga, do que perdemos.

Hoje mais cedo assisti a Um Método Perigoso, de David Cronenberg, e já no final, pouco antes de subirem os créditos, apareceram as informações sobre o destino dos personagens principais do filme, todos eles reais: Sabina Spielrein, mulher inteligentíssima, que de paciente com sério desequilíbrio e amante de Jung se tornou uma brilhante psicanalista, foi fuzilada pelo exército nazista junto com as duas filhas, em 1942. Como pôde o mal invadir de tal forma o território da civilização? Como uma aberração como Hitler chegou tão longe? Os mortos são muitos, mas vale recordar de alguns talentos que sobreviveram para tentarmos mensurar o alcance da insânia nazista: lembro de cara dos escritores Primo Levi, Imre Kertész e Elie Wiesel e do músico Wladyslaw Szpilman, que teve sua epopéia particular reconstituída por Roman Polanski em O Pianista. Ao final do filme, já livre e de volta aos estúdios de gravação, Szpilman toca justamente o Noturno de Chopin que ouvi no carro com minha filha. Talvez não exista antídoto mais eficaz contra a barbárie. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Memória sonegada




O argentino Juan Gelman é um dos grandes poetas vivos da América Latina. E é admirável que tenha conseguido escrever versos tão amorosos e cheios de lirismo após o ano de 1976, quando a sua vida passou a ser ditada por uma busca ou melhor: por três buscas. Marcelo e Maria Claudia, filho e nora de Gelman, foram assassinados pelo aparelho repressivo da brutal ditadura militar argentina. Durante 13 anos, Marcelo foi dado como "desaparecido", até que finalmente seu corpo foi achado e o pai pôde dar a ele uma sepultura digna. O corpo de Maria Claudia ainda não foi encontrado, mas é bem provável que seja dela uma ossada encontrada no mês passado em um quartel no Uruguai. A terceira busca se encerrou em 2000, quando Macarena, a filha de Marcelo e Maria Claudia, foi finalmente encontrada. Ela vivia com pais adotivos, simpatizantes do regime, a quem fora entregue ainda bebê, e não sabia nada do seu passado.

Lembrei da via-crúcis de Juan Gelman quando assisti na semana passada a O Dia em que não Nasci, de Florian Cossen. Um filme espesso, doloroso, que tem seu ponto de partida quando uma jovem alemã, Maria Falkenmayer, fica presa numa conexão em Buenos Aires antes de chegar a Santiago, onde participaria de um torneio de natação. Maria não fala espanhol, mas enquanto esperava a chamada para o vôo, ouviu uma mãe cantar uma canção de ninar para o seu bebê. Uma canção em espanhol. Maria reconheceu de imediato a letra e o seu significado, e aquilo a intrigou a ponto de mal se conter em lágrimas. No decorrer da narrativa, Maria vai descobrir que é mais uma das centenas de crianças cujos pais foram assassinados pela ditadura e que acabaram adotadas. No caso dela, por um sujeito que manteve estreita colaboração com o regime de Jorge Videla. Um sujeito que, até então, ela amava e chamava de pai.

O Dia em que não Nasci (o título original, em alemão, é Das Lied in Mir, algo como A Canção em Mim) aborda um episódio de clara conotação política, mas o que mais me comoveu nele foi a tragédia individual. Maria teve a sua infância e, portanto, a sua existência sonegada da maneira mais torpe. É como se tudo que ela viveu estivesse assentado em um terreno pantanoso, sem vida própria. Apenas um simulacro de memórias, como se ela fosse um daqueles andróides de Blade Runner, que guardam fotos de crianças que não foram e lembram de acontecimentos que não vivenciaram. A tragédia de Maria, desencadeada pelo que havia de mais íntimo nela, o seu inconsciente, me fez lembrar de uma cena tristemente linda da animação Enrolados, quando Rapunzel descobre que todos os desenhos que fez quando estava presa na torre continham uma estrela, escondida entre outros traços e desenhada de maneira inconsciente. A mesma estrela que via quando criança no palácio dos pais verdadeiros.

Já escrevi aqui no blog sobre como a tragédia coletiva de uma ditadura pode levar a reboque quem orbita em torno dela, e como é importante que um país reviva o seu passado, exponha-o em carne viva para exorcizar o sofrimento de seu povo. Mas aqui avanço sobre outro território: o quanto de nossa existência, de nossas memórias mais remotas, nos é sonegado por nossos pais ou por aqueles com quem convivemos? Até que ponto nossas memórias são realmente nossas e até que ponto nos foram incutidas? O que nos gerou: um ato de amor ou um ato de desespero? Há algo que não sabemos, que ficou trancado na bruma do passado ou que nos poupam de conhecer? Quem somos, afinal? O fato é que quanto mais avançamos rumo ao passado, mais nos perdemos em névoa espessa e desconhecimento de nós mesmos.

Uma vez minha mãe me falou de uma senhora já idosa e doente que queria reencontrar a filha que entregou para uma outra família, por não ter condição de criá-la. Ela só guardava na memória a cena da garotinha sendo levada em um cavalo. Tentou por meio de pessoas comuns encontrar a filha, mas depois eu fiquei sabendo que a mãe adotiva, ao saber da procura, entrou em pânico e disse que a moça jamais poderia saber que era filha adotiva e que passava por um momento pessoal delicado. Com isso, o reencontro acabou não acontecendo, e à velha mãe verdadeira restou apenas a imagem da garotinha no cavalo, indo embora. Aquilo me doeu, tanto que permaneceu aqui guardado todo esse tempo. Voltando a Juan Gelman: uma vez eu o entrevistei e ele, no meio de uma das respostas, afirmou que "uma infância feliz é a pátria mais invulnerável". Pode ser. Mas até que ponto nossas infâncias foram verdadeiramente felizes? No caso da Maria de O Dia em que não Nasci e da neta do próprio Gelman, a pátria invulnerável se esfacelou ao ser invadida pela verdade.