segunda-feira, 16 de abril de 2012

Memória sonegada




O argentino Juan Gelman é um dos grandes poetas vivos da América Latina. E é admirável que tenha conseguido escrever versos tão amorosos e cheios de lirismo após o ano de 1976, quando a sua vida passou a ser ditada por uma busca ou melhor: por três buscas. Marcelo e Maria Claudia, filho e nora de Gelman, foram assassinados pelo aparelho repressivo da brutal ditadura militar argentina. Durante 13 anos, Marcelo foi dado como "desaparecido", até que finalmente seu corpo foi achado e o pai pôde dar a ele uma sepultura digna. O corpo de Maria Claudia ainda não foi encontrado, mas é bem provável que seja dela uma ossada encontrada no mês passado em um quartel no Uruguai. A terceira busca se encerrou em 2000, quando Macarena, a filha de Marcelo e Maria Claudia, foi finalmente encontrada. Ela vivia com pais adotivos, simpatizantes do regime, a quem fora entregue ainda bebê, e não sabia nada do seu passado.

Lembrei da via-crúcis de Juan Gelman quando assisti na semana passada a O Dia em que não Nasci, de Florian Cossen. Um filme espesso, doloroso, que tem seu ponto de partida quando uma jovem alemã, Maria Falkenmayer, fica presa numa conexão em Buenos Aires antes de chegar a Santiago, onde participaria de um torneio de natação. Maria não fala espanhol, mas enquanto esperava a chamada para o vôo, ouviu uma mãe cantar uma canção de ninar para o seu bebê. Uma canção em espanhol. Maria reconheceu de imediato a letra e o seu significado, e aquilo a intrigou a ponto de mal se conter em lágrimas. No decorrer da narrativa, Maria vai descobrir que é mais uma das centenas de crianças cujos pais foram assassinados pela ditadura e que acabaram adotadas. No caso dela, por um sujeito que manteve estreita colaboração com o regime de Jorge Videla. Um sujeito que, até então, ela amava e chamava de pai.

O Dia em que não Nasci (o título original, em alemão, é Das Lied in Mir, algo como A Canção em Mim) aborda um episódio de clara conotação política, mas o que mais me comoveu nele foi a tragédia individual. Maria teve a sua infância e, portanto, a sua existência sonegada da maneira mais torpe. É como se tudo que ela viveu estivesse assentado em um terreno pantanoso, sem vida própria. Apenas um simulacro de memórias, como se ela fosse um daqueles andróides de Blade Runner, que guardam fotos de crianças que não foram e lembram de acontecimentos que não vivenciaram. A tragédia de Maria, desencadeada pelo que havia de mais íntimo nela, o seu inconsciente, me fez lembrar de uma cena tristemente linda da animação Enrolados, quando Rapunzel descobre que todos os desenhos que fez quando estava presa na torre continham uma estrela, escondida entre outros traços e desenhada de maneira inconsciente. A mesma estrela que via quando criança no palácio dos pais verdadeiros.

Já escrevi aqui no blog sobre como a tragédia coletiva de uma ditadura pode levar a reboque quem orbita em torno dela, e como é importante que um país reviva o seu passado, exponha-o em carne viva para exorcizar o sofrimento de seu povo. Mas aqui avanço sobre outro território: o quanto de nossa existência, de nossas memórias mais remotas, nos é sonegado por nossos pais ou por aqueles com quem convivemos? Até que ponto nossas memórias são realmente nossas e até que ponto nos foram incutidas? O que nos gerou: um ato de amor ou um ato de desespero? Há algo que não sabemos, que ficou trancado na bruma do passado ou que nos poupam de conhecer? Quem somos, afinal? O fato é que quanto mais avançamos rumo ao passado, mais nos perdemos em névoa espessa e desconhecimento de nós mesmos.

Uma vez minha mãe me falou de uma senhora já idosa e doente que queria reencontrar a filha que entregou para uma outra família, por não ter condição de criá-la. Ela só guardava na memória a cena da garotinha sendo levada em um cavalo. Tentou por meio de pessoas comuns encontrar a filha, mas depois eu fiquei sabendo que a mãe adotiva, ao saber da procura, entrou em pânico e disse que a moça jamais poderia saber que era filha adotiva e que passava por um momento pessoal delicado. Com isso, o reencontro acabou não acontecendo, e à velha mãe verdadeira restou apenas a imagem da garotinha no cavalo, indo embora. Aquilo me doeu, tanto que permaneceu aqui guardado todo esse tempo. Voltando a Juan Gelman: uma vez eu o entrevistei e ele, no meio de uma das respostas, afirmou que "uma infância feliz é a pátria mais invulnerável". Pode ser. Mas até que ponto nossas infâncias foram verdadeiramente felizes? No caso da Maria de O Dia em que não Nasci e da neta do próprio Gelman, a pátria invulnerável se esfacelou ao ser invadida pela verdade.

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