domingo, 21 de março de 2010

Destinos escuros



Existe o amor que enternece, mas há também o amor que devasta. Sobreviver à perda de alguém que se ama é seguir em frente com algo em nós amputado, algum órgão imaginário que começa no estômago e termina na garganta. Um sofrimento que nos faz, como na canção de José Miguel Wisnik, cantar e gritar “de lamento e luto”, para no final arrematar: “Te amarei eternamente e ainda depois”. Enfim, permanecemos e prosseguimos, e essa é a dor suprema: permanecer e prosseguir quando aquilo que nos fazia viver, nosso passaporte para a plenitude, se extingue inapelavelmente, como um diamante no ralo.
É dessa dor que fala A Trégua, de Mario Benedetti. Um pequeno e valioso ensaio sobre a inevitável incompletude do amor, por mais que tentemos trazê-lo para nós, protegê-lo, criar em torno dele um invólucro invulnerável. Uma novela outonal, implacavelmente triste, que ao final deixa em nós um travo de amargura. A Trégua me lembrou um romance pouco conhecido de Balzac que li aos 13 anos, chamado O Lírio do Vale. Ambos tratam do mesmo tema, embora de forma radicalmente diferente. Benedetti também me fez recordar de outros romances e contos que falam sobre o amor dilacerado, aquele sentimento em carne viva que pode levar fortalezas à ruína. Textos que em épocas diferentes incutiram em mim o medo da perda, o pavor de continuar mesmo com uma hemorragia na alma.
Lembro, por exemplo, de Adeus às armas e do seu parágrafo final, que Hemingway reescreveu dezenas de vezes até atingir o ponto máximo de depuração e o mínimo de autocomplacência: “Era como se eu estivesse me despedindo de uma estátua. Depois de um instante, saí para a rua e regressei ao hotel a pé, lentamente, debaixo da chuva”. Lembro também de Riobaldo, devastado pela morte de Diadorim e simultaneamente descobrindo o seu verdadeiro sexo em Grande Sertão: Veredas: “Aqui a estória se acabou. Aqui a estória acabada. Aqui a estória acaba”. Lembro, ainda, do velho ateu confrontado com a fé da mulher que amou e perdeu, em Fim de Caso, de Graham Greene: “Oh, Deus, você já fez o bastante, já me privou do bastante, estou cansado e velho demais para aprender a amar, deixe-me em paz para sempre”. E por aí vai.
Mas há os contos também. Aquele de Bukowski, A Mais Linda Mulher da Cidade, sobre uma garota belíssima (perfeitamente encarnada no cinema por Ornella Muti) que provocava cortes impiedosos no próprio corpo até dar cabo de si mesma, deixando o seu amante reduzido a um tronco oco: “A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia fazer mais nada”. Ou uma história pouco conhecida de García Márquez, chamada O Rastro do Teu Sangue na Neve: “Foi embora sem se despedir, sem nada a agradecer, pensando que a única coisa que necessitava com urgência era encontrar alguém para arrebentar a correntadas, para se desquitar de sua desgraça”.
Os trechos acima evidenciam reações distintas, que vão da revolta ao ensimesmamento, passando pela indiferença e pelo conformismo. O improvável herói de meia-idade de A Trégua, Martín Santomé, recolhe-se a um sentimento difuso: “Em algumas ocasiões, não posso captar os matizes que separam a inércia do desespero”. Para o personagem de Benedetti, prosseguir é um martírio sem sentido, um caminhar sem norte até que a própria morte o resgate e redima. Dor, em suma, vã e estúpida como costumam ser as dores mais avassaladoras. A Trégua nos leva a ela aos poucos, em conta-gotas, até o momento do espasmo.
***
“É evidente que Deus me concedeu um destino escuro. Nem sequer cruel. Simplesmente escuro. É evidente que me concedeu uma trégua. A princípio, relutei em acreditar que isso pudesse ser a felicidade. Resisti com todas as minhas forças, depois me dei por vencido e acreditei. Mas não era a felicidade, era apenas uma trégua. Agora estou outra vez metido em meu destino. E é mais escuro do que antes, muito mais.”

sexta-feira, 19 de março de 2010

“A política e o destino da humanidade são moldados por homens sem ideais e sem grandeza.”
Albert Camus

terça-feira, 16 de março de 2010

Passarinhos


Alguns textos possuem a estranha mania de nos deixar asfixiados, emudecidos, sem ar. Doem na gente como uma incisão. Acabo de sair do blog da jornalista Eliane Brum, ex-repórter da revista Época, e é assim que me sinto depois de ter lido seu texto mais recente. Um texto que nos arremessa para dentro do que existe de mais brutal, estúpido e obtuso na mente e no comportamento humanos. Eliane conta a história de Nujood Ali, uma menina de 10 anos que escapou de uma prisão domiciliar informal para pedir o divórcio em um tribunal. Sim, divórcio. Sim, 10 anos. Nascida numa família miserável no Iêmen do Sul, país igualmente miserável de maioria muçulmana, ela foi entregue pelo pai a um homem com mais de 30 anos, que a violentava e espancava todas as noites.

Nujood tinha nove anos quando foi entregue a esse sujeito. É a idade da minha filha. Impossível não sentir um aperto no peito, uma indignação muda, como se algo em mim se dilacerasse. Afinal, eu sei muito bem que uma criança de nove anos deve ser abraçada da mesma forma que uma mão deve segurar um passarinho. Antes de ir ao Tribunal, a menina chegou a procurar socorro na própria família. Encontrou só indiferença. Fico imaginando o mundo que desmoronou dentro dela ao perceber que não teria ajuda nem das pessoas que teoricamente seriam responsáveis por tratá-la como um passarinho. À inocência física perdida na cama somou-se a perda de um tipo mais valioso de inocência: o defloramento da alma.

Dentro do possível, o caso de Nujood terminou bem, embora ela tenha voltado a morar com os familiares após conseguir o divórcio. E o seu caso – que ganhou o mundo, virou livro e a transformou numa improvável celebridade – se tornou um precedente histórico para outras crianças recorrerem à justiça do país com sucesso. Mas Eliane Brum não nos concede o benefício de um final feliz, pois a vida não cabe num filme de Hollywood. Ela prefere comparar a vida no Iêmen com a realidade brasileira, esta terra devastada onde meninas de 7 ou 8 anos praticam sexo com caminhoneiros ou onde políticos e outras autoridades forjadas na intimidação arregimentam crianças da mesma idade para orgias com adultos. Enfim, não estamos em melhor situação do que um país em ruínas fincado num pequeno rincão do Oriente Médio, onde o analfabetismo atinge 41% da população e conflitos separatistas já provocaram o êxodo de 150 mil refugiados.

Não vou me estender no assunto, até porque Eliane faz isso com muito mais competência. Fico apenas pensando na minha filha, com sua inocência plenamente preservada. E em Nujood, que justificou sua decisão de querer o divórcio dizendo apenas que “não suportava mais”. E também na existência lancinante de crianças e mulheres em países como Nigéria, Afeganistão, China, Sudão ou Cazaquistão. Estamos falando aqui de coisas pesadas, como tráfico de escravas sexuais, mutilação genital, afogamento de bebês do sexo feminino, apedrejamento em praça pública e outras aberrações. No mês em que o Dia da Mulher é comemorado, fica ainda mais fácil perceber o quanto existe de hipocrisia por trás das rosas vermelhas, das homenagens em anúncios de jornal e dos cumprimentos respeitosos dos colegas de trabalho. A emancipação feminina e todas as conquistas que ela trouxe a reboque (a pílula, a inclusão efetiva no mercado de trabalho, o divórcio e muito mais) representam apenas uma camada fina e opaca que esconde o inferno de ser mulher em uma vasta área do planeta. Esse bicho esquisito que todo mês sangra, como diz Rita Lee. Não necessariamente por causa da menstruação.

terça-feira, 9 de março de 2010

A última trincheira


Às vezes me pergunto que fim levou a transgressão como forma de afirmação da juventude. Não existem mais transgressores, ou pelo menos não como nos acostumamos a vê-los no cinema, na pele de um James Dean em Juventude Transviada ou de um Jean-Paul Belmondo em Acossado. Numa era em que os jovens são tão ou mais reacionários que seus pais, não existe espaço para transgredir, ou ao menos transgredir de forma consciente, com um propósito maior, seja ultrapassando fronteiras pessoais ou fragilizando com pontapés os pilares do conservadorismo. Bem, seria pedir demais querer que os jovens bem alimentados e mal educados de hoje discutissem Sartre nos cafés ou fossem às ruas exigir a renúncia de um político corrupto, e nem acho que isso seja assim tão necessário ou eficaz.

Mas há algo de muito sombrio numa sociedade cuja última trincheira de transgressão da juventude é encher a cara para depois dirigir pela cidade. E é claro que vai muito mal um país onde atitudes como essas são toleradas pela justiça, incapaz de alterar uma legislação frouxa ou fiscalizar e reprimir de forma efetiva o binômio álcool e direção. Desde criança ouço dizer que o Brasil é o país que mais mata no trânsito. Lá se vão vinte, trinta anos e continuamos matando e morrendo sem remorso. Nesse período, “formamos” cidadãos que não têm a menor percepção de que um automóvel conduzido de forma irresponsável pode ser muito mais letal do que uma arma de fogo. Sobretudo se o combustível estiver sendo usado não só no automóvel, mas também no condutor.

Outro dia, num supermercado, prestei atenção à conversa de um rapaz ao celular com um amigo. Em dado momento, ele disse que não sabia como havia voltado para casa após uma festa na noite anterior. Não sabia onde tinha deixado o carro ou mesmo se tinha dirigido no final da noite. O curioso é que havia um tom de deboche na sua fala, como se ele se vangloriasse do fato de ter enchido a cara e voltado dirigindo para casa. É, como diriam os crentes, o fim dos tempos. Após décadas de barricadas, protestos, alucinógenos e mochilas nas costas, a transgressão chegou ao século 21 reduzida a um sinônimo de estupidez e irresponsabilidade.

Para esse rapaz do celular foi um episódio cômico, uma transgressão inócua, mas poderia ter terminado como terminam dezenas de acidentes de trânsito em todos os cantos do país, que não envolvem apenas jovens, mas quase sempre envolvem bêbados. Só nos últimos dias, dois deles chamaram a atenção. No primeiro, um homem que admitiu ter tomado algumas cervejas dirigiu por 20 km na contramão até encontrar o carro de um casal que acabara de levar a filha a um hospital. O casal morreu, o bêbado não. No outro acidente, um sujeito embebido em álcool saiu da pista e entrou num parque, atropelando um pai e um bebê de oito meses, que está em estado gravíssimo. São tragédias individuais que evidenciam a nossa tragédia coletiva: a incapacidade de formar pessoas conscientes, cultas e, no bom sentido, transgressoras. Resta só esse admirável gado novo pastando na cidade em veículos de trocentas cilindradas.

terça-feira, 2 de março de 2010

Ovos de serpente


Um dos clichês mais utilizados por repórteres e críticos, quando analisam determinada obra de arte, é afirmar de forma categórica que as pessoas podem amar ou odiar essa obra, mas jamais ficarão indiferentes a ela. Esta semana terminei um romance de Manuel Puig, chamado The Buenos Aires Affair. No verso do livro, o escritor Eric Nepomuceno sentencia: “Para alguns, The Buenos Aires affair é o melhor de todos os romances de Manuel Puig. Há, é claro, os que discordam. O que não há é quem passe indiferente por estas páginas”. Por que não? O curioso é que o livro me provocou justamente uma incômoda sensação de indiferença. Não o odiei, muito menos o adorei, e é bem provável que o seu conteúdo esteja apagado da minha memória daqui a alguns anos. Pode ser um defeito meu, é claro. Afinal, a indiferença vem se manifestando em mim de diversas formas, seja quando assisto a programas da TV aberta ou folheio revistas de celebridades nas salas de espera dos consultórios médicos. Ou, mais ainda, quando escuto conversas alheias, de pessoas conhecidas ou não, sobre assuntos que não me despertam o menor interesse.

Mas creio que o problema é mais amplo e não se restringe a mim. Norman Mailer já disse que o “estado natural do homem do século 20 é a angústia”. É possível que o homem do século 21 padeça de um mal ainda mais grave, pois a indiferença traz consigo o tédio, o enfado, a apatia e uma desconfortável sensação de impotência. O mundo me parece anestesiado. Ao contrário do clichê, pouco se ama ou se odeia nos dias de hoje, restando apenas o pensamento entorpecido. Não há causas pelas quais lutar, além da causa própria. Não há limites para a estupidez ou para a violência, seja ela de cunho social, religioso ou político. Pensar diferente é quase um sacrilégio, e assistimos a uma ditadura do consenso, do compadrio, da falta de assunto para além das platitudes e, o mais grave, do horror ao outro. O princípio da alteridade soa como latim – uma coisa antiga, chata, fora de moda – aos ouvidos de gente que não enxerga diferentes grupos sociais e raciais como seres da sua espécie. A história ensina que sociedades assim são ambientes propícios ao aparecimento de ovos de serpente. Há pouco menos de um século, vimos algo parecido: uma pequena serpente peçonhenta rastejando num limbo moral até ascender sem resistência ao poder máximo de um país culto, industrializado e com um ódio latente camuflado pela indiferença. Deu no que deu.