terça-feira, 9 de março de 2010

A última trincheira


Às vezes me pergunto que fim levou a transgressão como forma de afirmação da juventude. Não existem mais transgressores, ou pelo menos não como nos acostumamos a vê-los no cinema, na pele de um James Dean em Juventude Transviada ou de um Jean-Paul Belmondo em Acossado. Numa era em que os jovens são tão ou mais reacionários que seus pais, não existe espaço para transgredir, ou ao menos transgredir de forma consciente, com um propósito maior, seja ultrapassando fronteiras pessoais ou fragilizando com pontapés os pilares do conservadorismo. Bem, seria pedir demais querer que os jovens bem alimentados e mal educados de hoje discutissem Sartre nos cafés ou fossem às ruas exigir a renúncia de um político corrupto, e nem acho que isso seja assim tão necessário ou eficaz.

Mas há algo de muito sombrio numa sociedade cuja última trincheira de transgressão da juventude é encher a cara para depois dirigir pela cidade. E é claro que vai muito mal um país onde atitudes como essas são toleradas pela justiça, incapaz de alterar uma legislação frouxa ou fiscalizar e reprimir de forma efetiva o binômio álcool e direção. Desde criança ouço dizer que o Brasil é o país que mais mata no trânsito. Lá se vão vinte, trinta anos e continuamos matando e morrendo sem remorso. Nesse período, “formamos” cidadãos que não têm a menor percepção de que um automóvel conduzido de forma irresponsável pode ser muito mais letal do que uma arma de fogo. Sobretudo se o combustível estiver sendo usado não só no automóvel, mas também no condutor.

Outro dia, num supermercado, prestei atenção à conversa de um rapaz ao celular com um amigo. Em dado momento, ele disse que não sabia como havia voltado para casa após uma festa na noite anterior. Não sabia onde tinha deixado o carro ou mesmo se tinha dirigido no final da noite. O curioso é que havia um tom de deboche na sua fala, como se ele se vangloriasse do fato de ter enchido a cara e voltado dirigindo para casa. É, como diriam os crentes, o fim dos tempos. Após décadas de barricadas, protestos, alucinógenos e mochilas nas costas, a transgressão chegou ao século 21 reduzida a um sinônimo de estupidez e irresponsabilidade.

Para esse rapaz do celular foi um episódio cômico, uma transgressão inócua, mas poderia ter terminado como terminam dezenas de acidentes de trânsito em todos os cantos do país, que não envolvem apenas jovens, mas quase sempre envolvem bêbados. Só nos últimos dias, dois deles chamaram a atenção. No primeiro, um homem que admitiu ter tomado algumas cervejas dirigiu por 20 km na contramão até encontrar o carro de um casal que acabara de levar a filha a um hospital. O casal morreu, o bêbado não. No outro acidente, um sujeito embebido em álcool saiu da pista e entrou num parque, atropelando um pai e um bebê de oito meses, que está em estado gravíssimo. São tragédias individuais que evidenciam a nossa tragédia coletiva: a incapacidade de formar pessoas conscientes, cultas e, no bom sentido, transgressoras. Resta só esse admirável gado novo pastando na cidade em veículos de trocentas cilindradas.

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