terça-feira, 28 de setembro de 2010

Bravatas, apatia e desolação


Tenho acompanhado com algum desinteresse a guerra deflagrada entre Lula e os principais meios de comunicação brasileiros. Li a declaração do presidente e alguns editoriais, além de ter passado um olho na matéria de capa da Veja. A princípio, todo esse estardalhaço soa como bravatas de parte a parte, embora seja inaceitável que o líder máximo do poder público brasileiro se exponha a papel tão degradante. Afinal, qualquer espécie de cerceamento à liberdade de expressão é deplorável, e vejo em alguns quadros do PT um certo pendor por um mundo perfeito, sem oposição ou mídia independente. Sabemos aonde isso pode levar, embora alguns ainda acreditem que o exemplo cubano é um caminho a ser seguido.

O mais curioso é que essa briga tenha acontecido num período em que a grande mídia me parece particularmente fragilizada. Jornais como Folha e Estadão, os dois melhores do país, optaram por reformas gráficas e editoriais infelizes, sobretudo o primeiro, o que limou em grande parte a possibilidade de análises mais acuradas, com a supressão do espaço para textos mais longos e a opção por chamadas apelativas e recursos gráficos gratuitos. Já O Globo, após longo período se consolidando como uma gloriosa terceira via na imprensa diária brasileira, tem decaído de forma lamentável. E o JB...

No campo das revistas, a situação é bem mais dramática. A Veja há muito deixou de ser uma publicação séria, contentando-se em atacar irresponsavelmente pelo flanco direito, entrincheirando-se em posições eticamente duvidosas. No centro, com uma postura bem menos combativa, está a Época, revista moderna e bem-feita, mas meio modorrenta, que não provoca entusiasmo. E no flanco esquerdo, como herdeiros tardios de Mao ou Fidel, estão a Carta Capital e a Caros Amigos, que lançaram por terra a imparcialidade para abraçar sem meias medidas a causa petista e o neoesquerdismo latino-americano. É uma tomada de posição, sem dúvida, mas – assim como a Veja no extremo oposto – uma posição dura de engolir.

O que se percebe, enfim, é uma imensa dificuldade do jornalismo brasileiro em lidar, de forma lúcida e isenta, com o momento histórico inédito em que vivemos. Um cenário no qual a apatia do eleitorado é diretamente proporcional ao clima de guerrilha declarada entre militância, imprensa e partidos políticos. Tanto a apatia de uns quanto o extremismo de outros se justificam pelo desencanto generalizado com os postulantes à Presidência, governos estaduais e poder legislativo. Um desencanto que se estende, feito uma hemorragia, até a própria noção de estado, cidadania e moral. O que se vê, portanto, é um território de aspecto lunar, desolado e sem brilho próprio, habitado por ideologias caducas e personagens nanicos. Um vasto cemitério de idéias, cheirando a limo e passado.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

No ombro de um gigante


Viajar sempre foi para mim um momento de contemplação e descoberta puramente pessoal, mesmo quando acompanhado. Um momento de buscar novas experiências sensoriais e encantamentos visuais em lugares desconhecidos, enquanto o sagrado se descortinava para mim em situações muitas vezes improváveis. Há duas semanas, e pela primeira vez na vida, não fui o protagonista de minha própria viagem, assumindo apenas o papel de um coadjuvante de luxo. Caso contrário, não teria escolhido uma cidade como Orlando para passar alguns dias de férias. Atendi a um desejo de minha filha, e possivelmente a algum anseio esquecido de mim mesmo, um apelo inconsciente de quando tinha a idade dela e lia compulsivamente as revistinhas de Tio Patinhas, Mickey e Pato Donald. Se não saí encantado dos megaparques incrustrados por toda a cidade (que por sua vez é pouco mais do que um intricado conjunto de cruzamentos de auto-estradas rodeadas de hotéis e cadeias de fast-food) foi porque o calor e uma certa impaciência me impediram. Mas viajar para os Estados Unidos é quase sempre uma experiência gratificante, e invariavelmente uma excelente oportunidade de ver o mundo do ombro de um gigante.

Eles venceram, é fato. Dirigir por suas cidades e rodovias e compartilhar um pouco de sua imponente prosperidade é também uma forma de olhar para o nosso próprio umbigo murcho. Ao conhecer Miami, uma cidade exuberante e profundamente latina, é possível estabelecer paralelos com propostas semelhantes que poderíamos ter aqui (talvez em Salvador ou no Rio). Lá, a riqueza não se mostra como um acinte, mas como algo natural, já que o outro lado da moeda – a pobreza extrema – não dá as caras. Pode parecer uma contradição para os que ainda creem no êxito de uma aventura socialista, mas numa das maiores cidades da maior potência capitalista do globo, a desigualdade é pálida, quase uma miragem. Não estou, é claro, sendo ingênuo a ponto de enxergar apenas virtudes na América, mas seria ainda mais ingênuo se me negasse a percebê-las e saudá-las. Como a civilidade, traduzida numa cortesia permanente com os visitantes e no respeito sagrado às leis, inclusive as do trânsito.

Num texto interessante sobre os EUA, publicado no blog Manual do Executivo Ingênuo, o jornalista Adriano Silva recorre ao conceito anglo-saxão de “trust” para definir as relações entre as pessoas no país. Ou seja, existe um conceito de “comunidade, de confiança mútua entre os cidadãos, de laço social invisível amarrando os indivíduos numa mesma sociedade”. Segundo Adriano (e eu concordo com ele), a América “muito antes de ser uma terra de ninguém, é uma terra de todos – em que cada um, antes de exercer seus direitos, precisa cumprir seus deveres”.
O fato é que, enquanto empobrecíamos irremediavelmente nos anos da ditadura, os Estados Unidos consolidavam as conquistas do welfare state iniciadas nos anos 50 e se beneficiavam do enriquecimento – lícito, embora moralmente questionável – dos anos de guerra, dos quais emergiram como potência máxima. De vez em quando protagonizam tolices, como as aventuras expansionistas e a propensão ao belicismo gratuito, traduzidas à perfeição no amargo legado da era Bush. Mas a verdade é que, ao contrário de nós, eles acertaram muito mais do que erraram.

Voltando à viagem, creio que me diverti fazendo quase sempre o programa sagrado dos brasileiros que visitam (em quantidade absurda) a Flórida: exaustivos passeios aos parques e compras de eletrônicos e roupas a preços risíveis. Orlando oferece pouco mais do que isso, o que acaba sendo frustrante para quem não sente uma comichão quando se depara com pechinchas ou não se entusiasma com a possibilidade de desafiar a capacidade que o estômago tem de reter os alimentos sob condições adversas (leia-se rodar de cabeça para baixo a velocidades altíssimas ou simular a própria morte numa viagem vertical). Vale a pena, porém, presenciar baleias e golfinhos adestrados proporcionando espetáculos fascinantes (apesar de uma certa grandiloquência cafona tipicamente americana) ou ver de perto tudo aquilo que as revistinhas da Disney deixavam entrever quando amávamos Tio Patinhas e sua turma. Afinal, mesmo um coadjuvante tem direito a seus momentos de enlevo. E valeu a pena, também, comprovar mais uma vez que existem alternativas ao nosso modo de vida, cada vez mais brutalizado, cada vez mais sem sentido.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Entre aliens e predadores


Trabalhar como crítico de cinema me permitiu assistir a filmes que, em situações normais, jamais teria a “oportunidade” de conferir. Uma dessas pepitas, que lembro de ter visto numa cabine quase vazia numa manhã sonolenta, foi Alien vs Predador, um improvável embate entre dois dos mais sórdidos e repugnantes caçadores de seres humanos que Hollywood já produziu. Se me recordo bem, o filme tinha início com uma expedição de astronautas a um planeta distante, no qual as duas espécies alienígenas digladiavam entre si desde tempos imemoriais. Em determinado momento, a única sobrevivente humana da carnificina tinha que escolher entre se aliar ao Alien ou ao Predador: ela estava entre um e outro, acabou se aproximando do segundo e lutou ao seu lado para derrotar o primeiro (engraçado que, escrevendo agora este texto, lembrei de uma cena idêntica em King Kong, quando Naomi Watts toma partido do gorila após se ver entre ele e um tiranossauro – num claro exemplo da Lei de Lavoisier aplicada à sétima arte).

O fato é que nas poucas vezes em que assisto ao horário eleitoral gratuito ou nas muitas em que leio sobre os candidatos às eleições presidenciais e estaduais, me sinto como aquela moça do filme: tendo que escolher entre aliens e predadores. Num cenário inóspito como esse, que caminho seguir? Quem escolher? Nunca votei nulo para presidente, nem vou votar nesta eleição. Mas poucas vezes me vi com tão poucas opções. No cenário local, a situação é ainda mais grave. A quem recorrer para nos tirar deste atoleiro em que vivemos desde tempos imemoriais, se o que vemos é apenas abjeção, obtusidade e desprezo pela miséria alheia? Alien, Predador ou um terceiro vilão à sua escolha? Só o que sei é que – ao contrário da heroína do thriller trash que me vi obrigado a assistir naquela manhã, hoje remota – eu me manterei longe de todos eles, apertando a tecla branca da urna eletrônica e tentando a todo custo escapar ileso dessa carnificina sem sentido e sem futuro.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Caminho dos cavalos


Até dois anos atrás, eu morava num apartamento de localização singular. Ficava no alto de uma ladeira, em frente à mata fechada do Parque da Cidade. Se virasse à esquerda e descesse a ladeira, chegaria a uma das principais avenidas de Salvador. Se prosseguisse pela direita, entraria num dos bairros mais miseráveis e – por conseqüência – violentos da cidade: a Santa Cruz. Eu gostava de circular por esse bairro. Na época em que ainda fumava, ia comprar cigarros nos mercadinhos da avenida principal, que tem um comércio fértil e movimentado. E costumava pegar um atalho por uma ruela que margeava o parque (cercado por um muro de concreto) e também a parte mais pobre do bairro. Um lugar desolador, onde a coleta de lixo não chega e homens em idade ativa circulam sem ter o que fazer, em meio a crianças maltrapilhas, velhos, carcaças de carros, cavalos, galinhas e muitos cachorros. De tanto passar por lá, já conhecia os animais de vista e dava nomes a eles. Eu e minha filha chamávamos essa passagem de “caminho dos cavalos”, e ela adorava um cavalo malhado, marrom e branco, que sempre víamos pelo caminho.

Mas, como já disse, é um lugar violento. Um dia, quando passei por lá, vi que alguns adolescentes cercaram discretamente o carro, como se vigiassem quem estava dentro dele. Quando passei e olhei pelo retrovisor, um deles portava um revólver enorme, que não fazia questão de esconder. Eram umas 7 da manhã, e várias pessoas caminhavam pelo local, indo para o trabalho. O cara poderia ter me matado, se quisesse. A partir daí, me dei conta do que já sabia em teoria: como uma metástase, o tráfico de drogas lançou seus tentáculos por toda a região, recrutando um pequeno exército de adolescentes sem camisa e muito bem armados. Adolescentes que morrem feito moscas em confrontos com a polícia ou entre grupos rivais. Atualmente, nessa mesma rua, há tiroteios terríveis a qualquer hora, provocando invariavelmente vítimas entre a população impotente. Voltei apenas uma vez ao caminho dos cavalos, fugindo de um congestionamento monstruoso que parou Salvador num dia de tempestade. Nesse dia, não prestei atenção aos cavalos e cães, apenas me fixei nas pessoas que circulavam por ali, temendo levar um tiro. A inocência tinha acabado.

Quando penso num lugar como a Santa Cruz, percebo como o percurso que falta para Salvador (e por conseqüência a Bahia e o Brasil) se tornar uma cidade digna é praticamente intransponível. Naquelas ruelas sem calçamento e naqueles casebres sem reboco, a herança da escravidão ainda é vívida como uma chibatada. Os mais de cem anos que separam este 7 de setembro de 2010 da abolição da escravatura são apenas um sopro, um pequeno hiato no qual o país evoluiu muito menos do que o mínimo necessário, e no qual a leva de miseráveis só fez se multiplicar, reproduzindo em escala industrial a senzala de outros tempos. A miscigenação racial não representou uma transferência de renda racial, e hoje brancos e negros permanecem em compartimentos estanques, como passageiros da primeira classe e da classe econômica, que quase nunca se esbarram. No meio ficamos nós, encantados com as benesses da classe executiva, mas loucos por um upgrade. Resta saber aonde esse vôo vai nos levar. Provavelmente à Suíça, mas com uma escala no Haiti, para o pessoal da rabeira poder desembarcar.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O mundo sem palavras




Li outro dia uma frase de Mário Quintana que não conhecia: “Os livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”. É uma bela frase. Mas, em se tratando da sociedade em que vivemos, até que ponto ela é verdadeira? Até que ponto os livros, hoje, mudam as pessoas e, por consequência, o mundo? Não vejo mais uma elite intelectual participando ativamente da formação de milhares de estudantes, trabalhadores ou quem mais se interesse pelo que ela tem a dizer. Ao contrário de outros tempos, não há mais ícones como Sartre ou Camus, que monopolizavam o debate na França, com reverberações no resto do mundo. Nem discussões acaloradas via artigos de jornal, como as que Samuel Wainer, Carlos Lacerda e muitos outros protagonizavam nos míticos anos 50 e eram acompanhadas avidamente.

Hoje, a formação de boa parte da juventude (e não só dela) independe dos livros. Todo o conhecimento acumulado ao longo dos anos passa ao largo das letras, cada vez mais restritas a nichos mais ou menos fechados e que até sofrem certo preconceito. Enquanto a discussão mais freqüente nos meios de comunicação resume-se à possibilidade de os e-books lançarem a pá de cal sobre os livros impressos, o processo mais dramático que vivemos nesse sentido é outro: a ausência de leitores, para além do consumo eventual de best-sellers que elucidam pouco sobre a alma humana. O cinema substituiu a literatura como manancial de cultura e as celebridades substituíram os intelectuais como exemplos a serem seguidos. É um discurso ranzinza? Provavelmente. Mas como as pessoas poderão mudar o mundo se não mudam a si mesmas? Se saem da vida quase tão ocas quanto entraram?

Sei que é um lamento inútil. Ou provavelmente o desalento de quem se deixou levar pelo delírio silencioso das palavras a partir do momento em que elas entraram na minha vida. Desde As Aventuras de Tibicuera (o primeiro título que lembro de ter lido) até A Humilhação (o último que li), foram muitos livros, milhares certamente. E me pergunto quem eu seria sem eles. Quem eu seria sem uma infância acalentada por obras como Viagem ao Mundo Desconhecido, Coração de Onça, A Ilha Perdida e A Máquina do Tempo? Quem eu seria sem uma adolescência povoada pelos livros de García Márquez, Kerouac, Steinbeck e Bukowski? Quem eu seria, mais tarde, sem Hemingway, Fitzgerald, Roth, Somerset Maugham, Sábato, Borges, Sartre e tantos outros que preencheram as lacunas de minhas inquietações? Seria provavelmente um eu mutilado, ainda mais incapaz de compreender e me adequar ao universo que habito.

É claro que mesmo com todos esses livros guardados na mente – com maior ou menor nitidez – eu não serei capaz de mudar o mundo. Meu desassossego é íntimo, e não se traduz em ações práticas: não pegarei em armas, não me tornarei um presidente, não me converterei no messias de uma nova era. A verdade é que, em sua grande maioria, as pessoas que mudam o mundo não foram mudadas pelos livros. Foram mudadas pelo ódio, por interesses privados ou pela necessidade premente de sobrevivência. Nesses casos, as palavras são inúteis, não mais do que pequenas cócegas nos pés da história. Talvez o que Quintana quisesse dizer foi que os livros mudam as pessoas e, por consequência, o SEU mundo. Não o mundo coletivo, essa terra devastada, cheia de som e fúria e sem sentido algum.