domingo, 2 de agosto de 2009

Rituais de despedida



Esta semana entrei no elevador de um consultório médico com minha filha para levá-la ao dentista. Junto com a gente, entraram também um senhor numa cadeira de rodas com a mulher e um ajudante. Vi de relance que havia uma cicatriz na fronte do senhor, parcialmente encoberta pelo cabelo, e percebi que ele falava com dificuldade com o rapaz, de um jeito quase inaudível. Vi também quando ele deu a mão a minha filha, esboçando para ela um sorriso. Minha filha sorriu de volta e pegou na mão dele. Então a porta do elevador se abriu e eles saíram. Mas de certa forma aquele homem doente continuou ali, ao me fazer voltar alguns anos e lembrar do meu pai também doente, agonizando lentamente enquanto um câncer se alastrava por seu cérebro. Ambos tinham os cabelos surpreendentemente pretos para a idade e ambos exalavam uma simpatia natural, ocultada em parte pela sisudez. Meu pai foi embora há quase seis anos e aquele homem não deve demorar muito para também dar adeus ao mundo. Um dia será a minha vez, mas espero não passar por um ritual de despedida tão doloroso quanto o deles. Espero me manter longe dos consultórios médicos com sua indiferença e seus prognósticos sombrios, das salas de cirurgia, dos tratamentos invasivos e dolorosos, das visitas às salas de quimioterapia, onde partilhamos nossa desgraça, do balanço final que fazemos silenciosamente e que invariavelmente pende contra nós, das visitas que não desejamos, das lágrimas dos que nos amam observando nossa decrepitude, da solidão atroz. Espero, enfim, ir num suspiro tranqüilo, deitado e sem dor, e já tão velho que poucos dêem por minha falta.
Admiro gente que luta com determinação, dignidade e coragem contra uma doença, como faz o vice-presidente José Alencar, que já passou por 15 cirurgias e mesmo assim o câncer permanece, inarredável como um cravo no ouvido. É claro que ele não vê assim, mas sua vida neste momento se resume apenas a um duelo injusto e contínuo com a morte, como se ele fosse o touro e ela, o toureiro que vai minando lentamente suas energias ao fincar espadas no seu lombo. Sabemos como isso termina, embora uma vez na vida o touro leve a melhor. Mas aí sempre aparece outro toureiro para dar cabo dele. Em resumo: não temos escolha. Em Homem Comum, Philip Roth narra esse processo de inevitável declínio com uma lucidez implacável. Cada resultado ruim num exame implica um desânimo, uma sensação de impotência que não cessa até atingirmos a inconsciência, embora vez por outra pipoquem espasmos de entusiasmo. Como demonstra Roth ao final do livro: “Ele perdeu a consciência, sentindo-se longe de estar derrubado, de estar condenado, ansioso para realizar-se mais uma vez, e no entanto nunca mais despertou. Parada cardíaca. Deixou de ser, libertou-se do ser sem sequer se dar conta disso. Tal como ele temia desde o início”.

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