quarta-feira, 20 de maio de 2009

Latifúndio devastado



Luiz Carlos Merten expôs uma tese interessante sobre Antichrist, o explosivo filme de Lars Von Trier exibido semana passada em Cannes: a de que o cineasta dinamarquês defende a teoria de que o homem foi criado à imagem e semelhança do Diabo, e não de Deus. A despeito da predileção do diretor por provocações muitas vezes vazias, não deixa de ser uma viagem interessante. Caso confirmada, essa teoria poria abaixo tudo que se pensa a respeito da humanidade: em vez de nascermos bons e irmos aos poucos nos corrompendo pelo contato com a sociedade, carregaríamos todos uma carga de maldade latente, que poderia irromper em determinado momento ou ficar sempre ali guardada para uma eventual necessidade. 

Lars Von Trier aprecia essa tese, como se pode conferir sobretudo em Dogville. E o anjo cego encarnado por Björk em Dançando no Escuro seria apenas uma anomalia em meio à torpeza generalizada. De certa forma, essa teoria explicaria por que a maldade permanece renitente a assombrar os vivos e a produzir aberrações com forte poder destrutivo. Sendo assim, Hitler – para citar o mais notório dos nossos anticristos – seria a imagem e semelhança do Lúcifer lá de cima. Em vez de tridentes, chifres e pés-de-cabra, teríamos o bigodinho tosco, o cabelo lambido e o comportamento insano. Ou, já que somos todos iguais ao dito-cujo, ele também não poderia ostentar traços nipônicos, pele escura e olhos azuis?

A verdade é que, passado tanto tempo (ou quase nada em termos geológicos), ainda não sabemos quem somos, e qualquer maniqueísmo serve apenas para confundir, e não elucidar. Até porque a humanidade habita uma zona cinzenta, um latifúndio devastado sem pátria ou proprietário, onde a perversão, o ódio e a indiferença convivem lado a lado, até com uma certa harmonia, com o altruísmo, a compaixão e o amor. Impossível separar bons e maus em departamentos estanques, como jogadores de uma partida de vôlei, devidamente cindidos por uma rede imaginária. Estamos mais para peladeiros numa partida de futebol disputada na várzea, com todo o contato físico que ela implica e na qual a lama e a poeira vão aos poucos diluindo as cores dos uniformes, fazendo com que todos pareçamos idênticos, como membros de uma mesma irmandade marrom e indefinida. É isso que somos, até que se prove o contrário.

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