segunda-feira, 8 de abril de 2013

O afeto que se encerrou




Paulo Francis morreu no dia em que completei 27 anos. Eu trabalhava no departamento de pesquisa da Folha de S.Paulo e passei o dia escrevendo e levantando material para a edição especial sobre ele que sairia no dia seguinte, ao tempo em que suprimia a tristeza por sua perda e por meu aniversário passar praticamente em branco. Tinha aprendido a gostar de Francis, estimulado por um colega de faculdade cujas idéias e a bagagem cultural eu respeitava e admirava. Até hoje considero seus livros de memórias – Trinta Anos Esta Noite e O Afeto que se Encerra – duas obras-primas. Sua erudição, mesclada com coloquialismo e boa dose de coragem, produzia textos sedutores, envolventes, mesmo que por vezes suas opiniões se mostrassem extremamente preconceituosas.


Grande parte dessa reverência se esvaiu com o passar dos anos. E isso ficou muito claro para mim outro dia, quando vi no Twitter um link para uma página que reunia 30 aforismos de Francis. Eu planejava compartilhar essas citações nas minhas redes sociais, até que fui lendo as frases. Havia reflexões interessantíssimas, como Todo otimista é um mal-informado”, e insultos hilários, como “Dizem que escrever é um processo torturante para Sarney. Sem dúvida, mas quem grita de dor é a língua portuguesa”. Outras, no entanto, eram de uma imbecilidade exemplar, como “A descoberta do clarinete por Mozart foi uma contribuição maior do que toda a África nos deu até hoje” ou “A função da universidade é criar elites e não dar diplomas a pés-rapados”.

Sei que posso ser acusado, aqui, de querer pregar o politicamente correto, quando na verdade estou tentando pregar apenas o que considero correto. As duas frases que citei por último deixam entrever a característica mais deplorável de Francis: o seu racismo. Sim, a função da universidade é criar elites, mas desde quando pés-rapados não podem ou não devem fazer parte dessa elite? A que elite ele se refere? Uma elite intelectual ou uma elite financeira? Quanto à África, deixando de lado toda a trajetória miserável que não permitiu ao continente produzir Mozarts em série, será que é tão difícil enxergar as contribuições musicais relevantes que ela nos legou? Eu mesmo poderia citar aqui, de cabeça, uns 10 artistas africanos excepcionais. A obtusidade de Francis neste caso é ainda mais clara.

Essa desconstrução de alguém que já admirei muito se intensificou hoje, quando assisti ao documentário Caro Francis, dirigido por Nelson Hoineff. Um filme interessante, embora claramente afetivo. Ali estava o Francis amigo, capaz de gestos profundamente generosos, e também o Francis hilário, com sua voz empostada de bêbado e seus olhos de louco. Os momentos derradeiros (do filme e da vida dele) são comoventes. Mas mesmo nesses trechos fica claro como as atitudes do jornalista eram nocivas, inclusive para ele mesmo.

Pouco antes de morrer, Francis acusou, no programa Manhattan Connection, os diretores da estatal Petrobras de enriquecerem de forma ilícita, depositando milhões em paraísos fiscais. Mesmo alertado pelos colegas de bancada da gravidade do que disse, preferiu sustentar a informação, que obviamente não poderia ser provada. A Petrobras entrou com um processo na justiça norte-americana que o levaria à falência, o que o deixou em desespero e provavelmente contribuiu para o infarto fulminante que o matou. Mas em nenhum momento os entrevistados dizem que Francis foi leviano ou que sua atitude era incompatível com o exercício do jornalismo. Limitam-se a culpar o médico e a Petrobras por sua morte. É claro que houve um erro grosseiro do médico (que tratou um infarto como uma bursite), mas por que Francis não buscou outro médico mesmo quando as dores aumentaram sensivelmente?

Quando o filme relembra a briga entre Francis e Caio Túlio Costa (então ombudsman da Folha), que culminou com a saída do colunista do jornal, Diogo Mainardi prefere ofender Caio Túlio, chamando-o de medíocre, a analisar o caso de maneira imparcial. Muitos outros entrevistados agem de forma parecida, tratando Paulo Francis como um arauto da inteligência e do refinamento numa cruzada contra a estupidez generalizada do brasileiro. O problema é que mesmo com um recorte tão favorável ao biografado, o que fica – ao menos para mim – é o retrato de um sujeito muitas vezes egocêntrico, arrogante e irresponsável.

Caetano Veloso cita em Verdade Tropical, que estou relendo, outro episódio envolvendo Francis: “No final dos anos 80, o jornalista carioca Paulo Francis escreveu de Nova Iorque para um jornal de São Paulo que, ao ver Bethânia cantando o ‘Carcará’ em substituição a Nara Leão em 64, percebera que o Rio mudara e ele passara desde então a considerar aquele momento como o marco da vinda ‘dessa gente’ (que ele despreza) para o Rio”. Esse episódio relembrado por Caetano (outro que já brigou feio com o jornalista) desvela o pensamento de Francis em todo o seu tenebroso esplendor: o elitismo sem sentido, o permanente saco cheio do mundo, a revolta contra as “impurezas” que tomavam conta do Brasil. São elementos que sem dúvida enriquecem o personagem, mas evidenciam a pobreza de espírito do criador. Como Pound ou como Céline, sendo que Francis nem de longe chegou perto da estatura desses dois.  

2 comentários:

Giovanni Soares disse...

Grande Paulinho. Paulo Francis acabou como peixe, morrendo pela boca. Esse episódio da Petrobras, me lembro bem, foi de uma empáfia e de uma irresponsabilidade impressionantes. Francis era sarcástico e preconceituoso, como você fala no texto. Certa feita, ele chamou Caetano Veloso de "ET baiano". Lógico que o jornalista tinha seu lado amigo e afetuoso. Deveria ser com poucos, mas tinha. Afinal, ninguém é totalmente bom ou totalmente mau. Eu também deixei de admirar o Francis por causa dessa arrogância desmedida. Mas enfim, é isto. Na última sexta, me encontrei com o Chicão, seu irmão. Falamos (bem) de você e lembramos de muitas histórias e demos boas risadas, como sempre. Foi ótimo. Saudades. Abração, amigo querido. Giovanni

Paulo Sales disse...

Grande Giovanni,
a verdade é que os defeitos de Francis acabaram por suplantar suas qualidades. Simplesmente cansei, embora ache importante a existência de personalidades de brilho próprio na imprensa e na sociedade brasileiras. Estamos muito pobres também nesse quesito.
E na próxima vamos ver se nos encontramos para uma ou mais geladas.
Grande abraço.