sexta-feira, 17 de junho de 2011
Desatinos do astrolábio
Enquanto termino de escalar o cume deste dia com alguma coragem e nem tanta alegria, como no poema de Borges, eu penso em Ravello. Penso naquele mar que se derrama a perder de vista, naqueles jardins suspensos, naquela beleza estupenda que me faz suspender por um instante a respiração quando vejo as fotos do lugar no Google imagens. Um dia, espero, conhecerei Ravello. Um dia, quem sabe, até morarei em Ravello. E então comerei mariscos frescos com espaguete numa casa com vista para a Costa Amalfitana. E caminharei por suas ruas estreitas e enladeiradas. E, com meu italiano rudimentar, cumprimentarei senhoras nas vendas e jogarei conversa fora com senhores nas tabernas, entre um gole e outro de vinho. E deixarei a velhice me alcançar bem longe da cidade onde nasci e vivo ainda hoje.
Penso em tudo isso e digo a mim mesmo: ah, que insensatez. Mas, por outro lado, penso: que parte de mim condena esse pequeno desvario noturno e o transforma nisso mesmo, um desvario? Que parte de mim não enxerga a possibilidade de uma vida radicalmente diferente da que vivo atualmente, num país belíssimo como a Itália e numa cidade belíssima como aquela pequena jóia litorânea a apenas meia-hora de Nápolis? Obviamente, é a razão que fala mais alto, a plena consciência das dificuldades que cercariam uma decisão como essa. Mas isso não impede que eu a tome, seja hoje, no próximo ano ou quando completar 82 anos.
O fato é que um homem abriga em sua consciência muito mais do que uma vida. Ao lado da realidade, convivem em algum canto de nós, correndo em paralelo, as outras vidas que poderíamos ter escolhido. Jamais saberemos qual delas seria a ideal, até porque não existe vida ideal. Existem apenas esboços mal acabados, rascunhos de possíveis destinos aos quais nos levariam decisões tomadas em momentos cruciais da nossa existência ou apenas estímulos motivados pelo acaso.
Algo parecido com os mundos multidimensionais imaginados por Himiko, personagem de Uma Questão Pessoal, o belo romance do japonês Kenzaburo Oe, que li recentemente: "Todos os homens, quando são colocados na encruzilhada da vida e da morte, se vêem diante de dois universos: um é aquele em que, mortos, eles deixam de existir; outro é aquele em que continuam existindo, vivos. Então, eles abandonam o universo onde só podem existir como pessoas mortas assim como se desvencilham de uma camisa velha, e vêm para o universo onde voltam a viver. Dessa forma, ao redor de um homem vão brotando universos, como folhas e ramos num tronco de árvore".
Ravello seria então, em minha consciência, um desses ramos. Um pequeno desatino que se desviou da rodovia principal em algum trecho conturbado do caminho e passou a viver em paralelo, quase tão imperceptível como uma sombra em um dia nublado. Mas por que não posso, hoje, estabelecer que meu projeto de vida é viver em Ravello daqui para frente? Quem determinou que rotas paralelas nunca se cruzam? Dois e dois são cinco, já disse Caetano. Fazemos da vida o que somos capazes, muito embora ela nos pregue peças sucessivas e nos desvie da rota como um astrolábio torto. Falando assim, até parece que temos rota. Até parece que nosso destino está escrito nas estrelas.
Então, o que se deve tirar de todas essas divagações sem sentido que escrevo aqui? Nada, é claro, além do fato de que uma vida só não basta para abarcar toda a nossa completude. Ou melhor: toda a incompletude das vidas que não podemos viver. Andamos o tempo todo por um labirinto. Cada escolha de direção implica no abandono de todas as demais. É um sacrifício diário de vidas que poderíamos levar se esta ou aquela decisão fosse tomada - ou não. Mas o pior de tudo é que de certa forma todas elas levam ao mesmo destino: a saída, quando há, é paradoxalmente o fim da linha. O que vale, portanto, é o percurso que fazemos até chegar nela.
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4 comentários:
Também já quis muito e várias vezes "morar em Ravello"...mas nunca saio de mim mesma. Parabéns pelo post!
Oi, Clara.
Cada um tem a sua Ravello particular, aquele sonho sem sentido, mas que a gente guarda com o maior carinho em algum canto de nós. Sei lá, quem sabe um dia ele não se realiza?
Um beijo e obrigado pelo comentário.
Ravello chegará pra mim aos 50, como havia dito pra vc. O importante agora é curtir o caminho até lá.
"Viver é desenhar sem borracha" (Millôr Fernandes)
Acho que está na hora de eu também pavimentar o meu caminho até Ravello, em vez de tratá-lo como uma rota paralela.
Grande abraço, meu velho.
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