sexta-feira, 24 de junho de 2011
Rascunhos
O passado tem me assombrado ultimamente. Com o auxílio das redes sociais e de prosaicas caixas de sapatos cheias de cartas, retratos e reminiscências, tenho recorrido com frequência aos meus arquivos mortos. Até então, eles jaziam empoeirados e completamente esquecidos em algum canto da minha memória, pródiga em guardar números, nomes e fatos históricos, mas cada vez mais incapaz de manter ativas as imagens que passaram pela minha frente ao longo desses 41 anos de vida, como se as visse através de fitas VHS tomadas pelo bolor. Nesse sentido, as redes sociais têm sido prodigiosas na arte de trazer de volta à nossa mente coadjuvantes ou figurantes do nosso longa-metragem particular (porque os protagonistas, obviamente, permanecem desempenhando o papel de mocinhas ou vilões).
O fato é que tenho "reencontrado" pessoas que haviam evaporado da minha mente. Ao clicar nas fotos de algumas delas, me deparo com estranhos. Olho e não encontro naquela imagem o borrão correspondente que havia guardado daquele nome e sobrenome. Aquela pessoa, agora um amigo no Facebook, é pouco menos que um fantasma, um arremedo de ser humano, mas com quem posso trocar mensagens ou compartilhar retratos. Sei que convivi com essas pessoas um ano ou mais, e que troquei com elas saudações amistosas ou só palavras soltas ao vento, sem qualquer significado além da comunicação primordial entre primatas. E também, graças às fotos que surgem na minha página, postadas por mim ou não, vejo a mim mesmo como a um estranho. Quanto de mim permanece em mim? Quanto de minha juventude acompanha os meus dias de adulto prestes a entrar no outono da vida?
Mas as caixas de sapatos trazem revelações ainda mais surpreendentes. Vasculho na colina de cartas, lembretes, guardanapos e papéis avulsos e encontro pessoas que esqueci, em parte ou por completo. Fico intrigado com declarações de afeto que sugerem um amor infinito ou uma amizade capaz de ultrapassar a inóspita fronteira da adolescência. Constato que muitas daquelas amizades (que por sua vez ocultavam paixões abrasadoras) se reduziram a rabiscos num papel amarelado.
Ao manusear uma delas, me surpreendo com a remetente. É, para mim, uma completa desconhecida. Mas vejo que na caixa há outras cartas dela. Abro as cartas. Uma delas diz: "Não me esqueça, quando precisares de uma amiga conte comigo". Está com a data de 4 de fevereiro de 1987, dia em que completei 17 anos. Há outras, nas quais ela analisa poemas que eu teria enviado para a sua apreciação. Ela me pede que leia além dos escritores aos quais estava habituado, o que é um sábio conselho, e nas demais reitera nossa amizade. Termina uma delas com "Um beijão da amiga de sempre". Depois de reler todas essas cartas, consegui resgatar em parte a pessoa que as escreveu: uma garota branquinha, meio gordinha, cabelos pretos e cacheados e, se não me engano, mais velha do que eu alguns anos e com quem convivi apenas um verão, antes que ela voltasse para Piracicaba, de onde as cartas foram enviadas.
Não deixa de ser curioso que, na adolescência e nos primeiros anos do resto de nossas vidas, a palavra "sempre" tenha um caráter tão efêmero. Ao mergulhar ainda mais fundo nas camadas de passado da caixa de sapatos encontro um envelope recheado de cartas e bilhetinhos de uma namorada que nunca esqueci. Ali está, na área reservada ao remetente: "Da sua, sempre sua... ". De novo o "sempre". Há também correspondências longas e lindas a desvelar outras paixões arrebatadoras, que duraram pouco menos ou mais de um ano. Textos repletos de carinho, esperança, frustração ou decepção com o meu caráter fugidio e minha insegurança sem sentido. Textos que revelam o quanto já fui amado e o quanto amei, mesmo que só tenha, aqui, uma das metades. Gostaria muito de reler as cartas que suscitaram as réplicas que guardo aqui comigo ou as que escrevi respondendo a tantas demonstrações de afeto. Estarão guardadas?
Algumas dessas pessoas estão ao alcance de uma "solicitação de amizade" nas redes sociais, outras não. Muitas se perderam em algum canto irreconciliável do passado, e é de bom-tom não remexer em certos vespeiros. Mas há o outro lado. Até que ponto também não sou eu o esboço, o borrão quase esquecido numa mente adulta vivendo em Piracicaba, Belo Horizonte ou Dois Irmãos, uma cidadezinha sem muitos atrativos do Rio Grande do Sul? E que tipo de borrão serei eu? Um espectro desagradável, que aparece nas piores horas da insônia de alguém? Ou um indivíduo que passou por uma dessas vidas e deixou algo de sincero e verdadeiro, nem que fosse por um verão, uma semana ou mesmo uma noite? Ou quem sabe até mesmo um rascunho involuntário, quase um espasmo mental, seguido de um "como era mesmo o nome daquele cara?" Provavelmente nunca vou saber.
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6 comentários:
Muito bom, Paulo. O que seria das nossas vidas sem esses esboços....
Valeu, Karla. O que mais me intriga nisso tudo sao os esbocos que nos mesmos representamos para alguem.
Um beijo
Paulo, visitando teu blog aqui pela primeira vez. Achei tudo bastante inspirador e de bom gosto. Quero voltar aqui mais vezes, e já sigo o blog. Abraços!
Obrigado, meu caro. Apareça sempre.
Um abraço.
Velhao, emocionante! E na hora ainda tocava Edith Piaf aqui... hehehe Abs!
Ótima trilha sonora, Pantikolo. Que bom que você gostou.
Grande abraço.
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