quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Afagos e safanões



É comum, quase um clichê, elogiar um romance dizendo que seus personagens parecem de carne de osso. Estariam, nesse sentido, tão próximos de nós quanto a vizinha do décimo andar, o colega do setor financeiro ou quem sabe até um velho amigo dos tempos de faculdade. Tendemos a nos identificar mais com esses livros que mostram gente como a gente, com os mesmos defeitos e virtudes que encontramos em nós mesmos ou nas pessoas que amamos ou com quem convivemos. Suas páginas emulam o efeito reconfortante de um abraço, que nos ampara e protege da nossa própria vulnerabilidade.

Os personagens criados por Jonathan Franzen em Liberdade são assim: lembram invariavelmente alguém com quem cruzamos em algum momento da vida, antes de cada um seguir o seu caminho. Mas não é apenas por isso, por parecerem “de carne de osso”, que eles tornam o livro tão prazeroso. Mais do que um painel incisivo da América dos últimos 30 anos, Liberdade é um livro sobre as escolhas que fazemos ao longo da vida adulta. Estão lá nossas decisões equivocadas ou certeiras a cada bifurcação, nossos temores mais íntimos, nossas fugazes conquistas cotidianas. E, acima de tudo, a inevitável constatação de que poderíamos ter nos empenhado mais. 

Liberdade mostra como o destino que almejamos aos 20 anos vai sendo aos poucos demolido para dar lugar a um viaduto que leva a tudo aquilo que chamam lar: a necessidade de trabalhar, pagar contas, criar os filhos e envelhecer. Um processo mais do que pessoal, quase uma necessidade natural da espécie, e os que não se adaptam a ele correm o risco da inadequação. Ao longo de mais de 600 páginas e cerca de 30 anos, Walter, Patty e Richard - e mais alguns personagens que orbitam em torno deles - viverão as angústias da juventude e o desalento da maturidade (ou seria o contrário: o desalento da juventude e as angústias da maturidade?), enquanto recebem da existência afagos e safanões. Franzen também subverte o conceito de liberdade, caminhando no sentido inverso ao de Sartre em A Idade da Razão. Para o autor americano, ela é uma espécie de mal que desejamos profundamente, mas que quando o alcançamos nos arremessa contra o vazio. O encanto da liberdade, portanto, se converte em solidão e amargura, porque afinal não somos lobos da estepe.  

Escritor talentoso, Franzen nos envolve com sua prosa, embora o livro tenha altos e baixos e alguns personagens não sejam tão palpáveis. É um texto sedutor, recheado com muita erudição e doses fartas de conhecimento político, econômico e de cultura pop. Em algumas noites, me vi desbravando suas páginas até a alta madrugada, incapaz de abandonar o desencanto crônico de Patty ou a mordacidade de Richard, que deixava entrever sua infelicidade abissal. Nada tão diferente do que o autor já havia feito em As Correções, outra imersão no universo familiar norte-americano contemporâneo. São romances que atestam o nascimento de um autor vigoroso (no conteúdo, não tanto na forma, como a maioria dos escritores que admiro). Deve melhorar com o tempo, mas já é dono de uma sensibilidade comovente para dissecar nossa penosa aventura pela Terra.

2 comentários:

karla disse...

Não conheço esse escritor, Paulo. Mas, fiquei interessada em ler depois do seu texto. Vou procurar. Beijo

Paulo Sales disse...

Vale a pena, Karla. Ele é hoje um dos mais aclamados escritores americanos, e Liberdade já está sendo considerado o livro do século - há, claro, um certo exagero nisso tudo, mas ele realmente é muito bom.
Um beijo