Numa cena clássica de Apocalypse Now, o tenente-coronel Bill Kilgore, vivido por Robert Duvall, aspira o ar e diz: “Adoro o cheiro do Napalm pela manhã. Nada mais no mundo cheira dessa forma”. Kilgore está há muito tempo no front do Vietnã, e seu pelotão certamente já lançou toneladas de Napalm sobre as aldeias vietnamitas. As bombas passam ao redor dele sem que esboce sequer uma reação instintiva de se proteger delas. Kilgore está impregnado de guerra, daí não se dar conta de que o cheiro que adora é o mesmo cheiro que mata indiscriminadamente homens, mulheres e crianças. “O horror, o horror”, como diz Kurtz (Marlon Brando) a Willard (Martin Sheen) já no terço final do filme.
Emocionalmente arruinado pela brutalidade de um conflito absurdo e desnecessário, Kurtz constrói um império que promove atrocidades em escala industrial no coração das trevas vietnamitas. Mas a chave para o seu enlouquecimento está em um trecho da sua conversa com Willard. É quando ele relembra da pilha de braços empilhados de criancinhas vietnamitas que tinham acabado de ser vacinadas contra a poliomielite pelas tropas norte-americanas. O próprio exército vietnamita tratou de decepar os braços, para dar uma idéia do quanto estavam determinados. A interpretação de Brando é particularmente arrebatadora nesta cena, e ele prossegue: “Eu chorei. Berrei como uma avó. Eu queria arrancar meus dentes. Não sabia o que queria fazer. E eu quero me lembrar disso. Não quero me esquecer.”
Apocalypse Now é provavelmente o filme definitivo sobre a guerra. Em seus 153 minutos está condensado todo o horror que o homem é capaz de infligir a outros homens. Mas o filme de Coppola diz muito também sobre a alma humana mesmo em tempos de suposta paz. Será que nós também não sentimos o cheiro de Napalm pela manhã? Afinal, estamos tão impregnados de violência que ela já se integrou à nossa rotina. Mas parece que não queremos lembrar disso. Queremos esquecer o genocídio silencioso de garotos pobres e pretos, soldados rasos em um front indefinido. Ou os chamados cidadãos de bem que agridem e matam por qualquer discussãozinha boba no trânsito. Ou os assaltantes que puxam o gatilho como se abrissem uma lata de cerveja numa festa. Na sociedade brasileira (e mundial, provavelmente), a indiferença talvez seja o Napalm do século 21. Ela nos embriaga e entorpece, mas só até o momento em que a barbárie nos atinge em cheio, e nos faz berrar como uma avó.
9 comentários:
Indiferença e egoísmo. Falta de ética e de remorsos. É trite ver a sociedade em que vivemos. E o pior é que quando olhamos para esse poço não vemos o fundo. E só estamos preocupados agora, com a barbárie dando chutes na boca do nosso estômago. Esse tema é inesgotável, Paulão. Mas curti mto essa sua síntese. Abs!
Sim, meu caro, o tema infelizmente é inesgotável. Como eu disse, a indiferença é o Napalm do século 21. Até cansei de falar sobre esse assunto aqui no blog, por isso fiz apenas uma pequena analogia com uma obra-prima do cinema.
Obrigado e grande abraço.
É horrível isso, o sofrimento, a opressão (devidamente maquiada) virarem motivo para o espetáculo midiático. Os programas de crimes e seus apresentadores (aaaarghh!, como se exclamava há algum tempo) se transformando nos gurus de larga parcela da população; o lento suicídio de Amy se sobrepor à tragédia norueguesa; os assassinatos nas vias públicas como meros números estatísticos. Parece que fica restando apenas se retirar e curtir os amigos, os discos e livros, não como uma opção pela camaradagem e pela arte, mas pela recusa à vida cidadã. É o horror, sem dúvida.
É como você disse: estamos recusando a cidadania, imprensados nas paredes das nossas casas. E o pior: muitas vezes sem sequer nos darmos conta da violência que é essa recusa.
Um abraço.
Às vezes passo por aqui só para ter a sensação que alguém me entende.
Beijo
A gente pensa muito parecido, Nina. E o curioso e que este texto nasceu de uma troca de tweets nossa, lembra? Fiquei com aquela historia do napalm na cabeca.
Um beijo.
Sim, claro que me lembro dos tweets. O texto ficou excelente, como sempre.
Beijo
Todos nós devemos fazer alguma coisa (boa) por um mundo melhor. Por mais insignificante que seja, devemos.
Escrever é uma forma de agir nesta direção. Se uma pessoa ler a sua ideia, e gostar, certamente irá refletir e passar adiante.
Sim, claro. Escrever é uma forma - ainda que tímida, ainda que pouco eficiente - de contribuir de alguma forma para que a vida possa fluir sem percalços.
Obrigado pelo comentário e um abraço.
Postar um comentário