Pouca gente sabe quem foi Estamira Gomes de Souza, que morreu ontem no Rio de Janeiro. Eu, por exemplo, só a conheço por ter assistido ao comovente documentário que leva seu nome, dirigido por Marcos Prado em 2005. Quem viu o filme não esquece dela, nem a sensação de desconforto quase físico que a sua tragédia pessoal provoca em nós. Estamira tinha 72 anos. Presto minha homenagem a ela reproduzindo aqui uma crítica que escrevi na época do lançamento do filme.
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Vida e pensamento de uma habitante do submundo
são retratados com ternura em ‘Estamira’
Além dos arranha-céus da zona sul carioca, dos conjuntos habitacionais da zona norte, das favelas e casinhas de tijolo aparente da Baixada Fluminense, existe um lugar onde os deserdados se encontram. São milhares deles, homens, mulheres e crianças vindos do nada e indo para lugar nenhum, sobrevivendo das toneladas de restos humanos despejadas diariamente no aterro sanitário de Jardim Gramacho. Entre eles, no ponto mais baixo da escória, vive Estamira. Mulher de pouco mais de 60 anos, mãe, avó, portadora de distúrbios mentais e dona de um olhar singular e surpreendentemente arguto sobre o absurdo da existência, sobretudo da de gente como ela.
O sofrimento, as lembranças e a tortuosa vida de Estamira estariam irremediavelmente fadados ao oblívio caso ela não tivesse topado, no ano 2000, com o cineasta Marcos Prado, que há tempos desenvolvia um trabalho fotográfico no lixão do Jardim Gramacho. Ficaram amigos, e o diretor começou a ser seduzido pelas frases enigmáticas, recheadas de reflexões filosóficas, daquela senhora de olhos esbugalhados, que dava início a um tratamento psiquiátrico no Centro de Assistência Psicossocial José Miller, em Nova Iguaçu. Resolveu imortalizá-la num filme que leva seu nome.
Prado dá plena voz a sua biografada, registrando seus delírios e seus momentos de intensa lucidez, enquanto conduz o espectador para dentro do universo em que ela sobrevive. Lá, entre montanhas de detritos, urubus e lagos imundos que borbulham pela ação dos dejetos orgânicos, Estamira encontrou a afeição e o amparo que lhe faltaram durante quase toda a vida.
Filha de uma mulher com problemas mentais e neta de um indivíduo que a violentou quando criança e a levou para um bordel, ela casou, teve um menino, descasou e encontrou outro homem, um italiano mulherengo, com quem teve uma menina. Já mais velha, foi duas vezes estuprada no local onde vivia e ainda deu à luz outra filha, que acabou sendo criada por uma família. É doloroso perceber, em fotos antigas, que Estamira chegou a ter alguma estabilidade. Andava bem-vestida e criava os filhos – que também dão seus depoimentos – com dignidade. Com uma linha de pensamento muitas vezes enviesada e aparentemente desconexa, ela rememora essa existência que acabou por levá-la ao aterro de Jardim Gramacho.
Há frases lapidares, como “não existe mais inocente no mundo. Tem esperto ao contrário, mas inocente, não” ou “aqui só tem escravo disfarçado de liberto. A Isabel libertou todo mundo mas não deu comida, não deu trabalho. Ficou isso aí”. Estamira nutre uma revolta profunda contra Deus, a ponto de se descontrolar e expulsar de casa seu filho, quando ele tenta lhe passar ensinamentos aprendidos na Igreja Adventista. É quando a senhora dócil e de olhar distante dá lugar a uma mulher violenta e fora de si, que despeja afirmações como “Quem seguiu direitinho tudo que ele (Deus) e a quadrilha dele mandou largou de morrer? Largou de passar fome? Largou da miséria?”.
Marcos Prado foca o mundo de Estamira com câmera ágil, trilha envolvente e fotografia granulada (oscilando entre o colorido e o preto-e-branco), mostrando com fidelidade a vida no aterro, seus personagens e a dignidade (ou a completa ausência dela) que viceja por trás da imundície. Poderia ter sido mais sucinto, reduzindo em pelo menos 20 minutos a narrativa, para deixá-la mais ágil. Mas é um defeito menor em meio a tantas virtudes. Ao mostrar a brutalidade cotidiana da vida no lixão, Estamira transporta para nossa realidade o mundo dos invisíveis. E o que vemos nos sufoca, mas também nos enternece.
* Publicado originalmente no Correio da Bahia.
6 comentários:
As vezes eu me sinto uma Estamira num país como o Brasil. Não falo aqui de bens materiais. Falo de caráter, educação, segurança, liberdade e cidadania.
Alguns de nós são badameiros conscientes e portanto tristes. Sinto muita pena dos que acham a alegria no meio do lixo imposto e aceitam cegamente.
É, a cordialidade brasileira esconde um certo conformismo, que é a tônica do nosso tempo, ao lado do individualismo. E compartilho com você a inadequação em relação às pessoas do lugar onde vivo.
Grande abraço.
Quando vi o Documentário fiquei apaixonada por ela. Que mulher inteligente! Sou fã pra sempre. Muito legal o texto, Paulo. Beijo
Valeu, Karla.
É, Estamira era uma figura interessantíssima, mas lembro de ter ficado fisicamente mal enquanto assistia ao documentário. É, sob alguns aspectos, um filme muito pesado.
Um beijo.
Muito boa a crítica, Paulinho. "Esperto ao contrário" que sou, presenteei duas pessoas muito queridas com esse filme.
Alexandre Lyrio
Valeu, Lyrio.
Tirei essa do meu pequeno baú de velhos textos do Correio. Acredito que as pessoas presenteadas devem ter adorado o filme, mesmo ele sendo uma porrada no estômago.
Grande abraço.
p.s. - Vou dizer mais uma vez: suas matérias e seu blog são ótimos. Sempre dou uma lida.
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