segunda-feira, 25 de julho de 2011
Cinzas do paraíso
A morte de Amy Winehouse não aconteceu ontem: há dois ou três anos ela agonizava à vista de todos, com a conivência obsessiva dos tablóides e sites de internet sempre à cata de fotos escandalosas, e era motivo de chacota entre as platéias que se deslocavam até seus shows para vê-la cambalear e esquecer as letras. Enquanto sucumbia, Winehouse alimentava fartamente o universo de frivolidades e mitos forjados que leva a alcunha de cultura pop. O mesmo universo que agora vai incluí-la no patético panteão dos ídolos mortos aos 27 anos, e diluí-la em pequenas porções até que se esgote o seu parco legado. Seu fim, tão óbvio, me chocou e me entristeceu, até porque vislumbrava algo de vibrante e genuíno em sua música. Mas estes dias nos reservaram uma morte ainda mais trágica, e é dela que gostaria de falar.
Estou me referindo à morte da inocência, ou do que restava dela. Com o assassinato de uma centena de pessoas na Noruega, caiu por terra a última fronteira ainda imune à barbárie. Ela enfim chegou a um país onde as políticas de bem-estar social implantadas no pós-guerra deram forma a uma das civilizações mais avançadas do mundo. Ao lado de seus vizinhos escandinavos, a Noruega é um exemplo sem igual de como a social democracia é o melhor (o único, talvez) caminho a ser seguido para se criar uma sociedade homogênea, consolidada a partir de investimentos maciços em políticas públicas e na presença do estado onde ele é estritamente necessário. Enfim, a Noruega é o mais próximo que o homem chegou do paraíso, mas agora se vê tomada por cidadãos perplexos e incapazes de entender as motivações para tamanho sofrimento.
É o século 21 se mostrando por inteiro. Não, desta vez não há nenhum radical de origem árabe e pertencente a alguma organização islâmica para ser responsabilizado. A doença, neste caso, vem de dentro, como um câncer. A princípio, lembra muito aquele atentado de Oklahoma, cometido por Timothy McVeigh. Pelo pouco que li - e quero ler cada vez menos sobre tragédias como essas - o sujeito era um desses fanáticos de extrema direita com idéias difusas e absolutamente tolas, que para azar de todos nós (sim, essa tragédia também nos atinge) estava armado até a raiz dos cabelos. Panacas como esse surgem de vez em quando, como anomalias numa ninhada sadia, e costumam fazer um estrago danado. Mas é sintomático que o novo século esteja sendo cada vez mais povoado por eles.
Há algo de errado em nós, na forma como vemos e agimos no mundo, e nesse sentido vale ler O Mal Ronda a Terra, do historiador Tony Judt, que explica de forma lúcida como deixamos de exportar Noruegas em série para nos tornarmos reféns do individualismo e do culto ao consumo em nações abarrotadas de miseráveis. Uma coisa, é claro, não tem nada a ver com a outra. Mas ambas fazem parte de um mesmo cenário desolador, no qual o que mais se destaca é a banalização (e o recrudescimento) da violência. Seja na forma de armas de destruição em massa, bombardeios "cirúrgicos" ou mesmo de um .38 de numeração raspada que um sujeito numa moto usa para atirar em nós e nos roubar o celular. É a grande marcha da história e as pequenas tragédias individuais se unindo para tragar o máximo de vidas possível. E nós, sobreviventes vulneráveis e desnorteados, seja no Brasil, na Líbia ou na Noruega, apenas lamentamos o azar alheio e louvamos a nossa sorte.
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6 comentários:
Que medo das pessoas.......
Eu também.
bjs
De alguma forma, fazemos nossa parte pra que essas coisas aconteçam...
Pela inércia, talvez. Mas acho que, quando nos posicionamos contra idéias e atitudes tão estúpidas, estamos mostrando que não as aceitamos. O difícil é descobrir onde a estupidez é gerada e combatê-la antes que desemboque em tragédia.
Um beijo.
A anunciada morte de Amy vai continuar a alimentar aquele esquema de cinismo, ganância e insensibilidade que faz com que uma tragédia pessoal (de um artista ou de um ex-anônimo) seja espremida ao máximo para satisfação de um certo tipo de público, transformando em circo de horrores o trabalho da justiça e da polícia e o sofrimento da família e dos amigos próximos. E eu não estou falando apenas dos tablóides sensacionalistas e similares. Já o ocorrido na Noruega, apesar de sabermos que o fanatismo religioso e/ou de extrema-direita está sempre à espreita, nos dá vontade de desistirmos de qualquer idéia de predominância da racionalidade na política. O que é, claro, uma irracionalidade. E os irracionais extremistas, minoritários, mas, como sói acontecer, altamente diligentes, já são perigosos o suficiente. Um abraço.
A imprensa, Armundo, está se "tabloidizando", sobretudo na terra de ninguém da internet, o que torna a morte de Amy um prato cheio que é comido aos poucos, sem pressa, durante semanas, até surgir outro prato à frente.
Quanto ao massacre na Noruega, estamos num território mais sombrio. Quase tão absurdo quanto a tragédia em si foi o fato de políticos de extrema-direita da Itália e da França terem elogiado suas idéias descabidas, como se ele não tivesse tirado a vida de quase 80 pessoas de maneira covarde - ah, isso é só um detalhe. Vale lembrar que há pouco menos de 100 anos Hitler escreveu Mein Kampf com todas aquelas barbaridades e ninguém foi capaz de pará-lo. Deu no que deu.
Grande abraço.
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