Ao longo de décadas de leitura conheci alguns personagens com os quais me identifiquei profundamente. Havia muito de mim em Mathieu Delarue, o anti-herói existencialista que clama intimamente por liberdade em A Idade da Razão, de Sartre. Ou em Sal Paradise, o aventureiro que cruzava as estradas da América em busca da própria essência no clássico beat On the Road, de Jack Kerouac. Ou ainda em Jake Barnes, o beberrão atormentado e hedonista de O Sol Também se Levanta, meu Hemingway preferido. Mais recentemente, ao ler Conversa na Catedral, de Vargas Llosa (sobre o qual comentei aqui recentemente), vi a mim mesmo na pele de Santiago Zavala, um dos personagens mais palpáveis com que me deparei nessas andanças imaginárias por milhas e milhas de palavras e entrelinhas. Todos eles fazem parte do que sou, assim como alguns personagens dos contos e romances de Fitzgerald ou tipos momentaneamente esquecidos por minha mente cansada.
Mas nenhum deles se parece tanto comigo – seja pela forma de pensar, pelos ídolos literários ou pela propensão à nostalgia – quanto um sujeito que encontrei no cinema domingo passado: Gil Pender, o frustrado escritor e roteirista de Meia-Noite em Paris, novo filme de Woody Allen. Um filme delicioso, diga-se de passagem, que marca o retorno do cineasta ao auge (por menos pretensiosa que seja esta comédia de acento fabular). Sim, eu me vi espelhado nos cabelos loiros e no nariz torto de Owen Wilson, que empresta sua estampa ligeiramente desajeitada e melancólica a um indivíduo fascinante. É claro que um personagem de cinema dificilmente alcançará a profundidade de um congênere literário, ainda mais em se tratando de um personagem alegórico, que habita uma trama amparada em clichês bem definidos – e magistralmente subvertidos. Gil está longe de ostentar, por exemplo, a complexidade de um Raskolnikov.
O fato, porém, é que meus pequenos sonhos românticos estão lá no filme, verbalizados por ele: morar em Paris, trabalhar com literatura e, principalmente, ser capaz de viver em um período histórico que me fascina acima de todos os outros. Gil cultiva a nostalgia de um tempo não vivido – no caso, a década de 1920, quando a capital francesa foi invadida por hordas de escritores e artistas, em grande parte americanos expatriados, imortalizados com a alcunha de Geração Perdida. Tanto eu quanto ele consideramos esse hiato que separa a humanidade de duas guerras absurdamente brutais o ápice da civilização. Tanto eu quanto ele lamentamos a nossa inadequação ao mundo atual e alimentamos o desejo de ter nascido e vivido em uma outra era (já falei sobre isso aqui no blog).
Meia-Noite em Paris trata desses assuntos com leveza, doçura e humor, mas sua conclusão é de certa forma amarga. Ao voltar ao passado e reencontrar Hemingway, Scott e Zelda Fitzgerald, Salvador Dalí, Cole Porter, Luis Buñuel e Gertrude Stein, entre tantos outros ícones dos anos loucos, Gil se depara com o fato de que, para quem vivia aquele presente, a Era de Ouro já havia passado. Ao voltar ainda mais no tempo e encontrar Toulouse-Lautrec, Edgar Degas e Paul Gauguin no final do século 19, eles se queixam que a verdadeira Belle Époque foi a Renascença. E assim por diante – ou melhor, para trás. Não existe, portanto, um lugar ideal no espaço-tempo, um útero imaginário para onde podemos voltar sempre que o sentimento de inadequação nos toma de assalto. Passado, presente e futuro são apenas monótonas variações sobre um mesmo tema.
Quanto à nostalgia, até que ponto ela é salutar e até que ponto revela um aspecto negativo da nossa personalidade? Ansiar pelo passado não seria uma forma de negar o futuro, ou mesmo o presente? E, ao negar o presente, não corremos o risco de nos abrigarmos numa bolha, refratária a uma existência mais tranqüila e menos desconfortável? Provavelmente sim. Embrenhar-se na nostalgia é como fazer pesca submarina no oceano sem o auxílio de tubos de oxigênio. Imergimos até certo ponto, mas é preciso guardar um pouco de ar para o retorno à superfície, caso contrário permaneceremos num limbo. Ao final, Gil irá descobrir que o presente tem lá seus atrativos – desde, é claro, que tome decisões cruciais, que o aproximem do homem que quer ser. Isso vale para ele, para mim e para qualquer um de nós.
8 comentários:
É......o passado é sempre mais confortável por ser conhecido. O futuro é inseguro e incerto, dá medo. Estou louca pra ver o filme de Woody Allen, depois do seu lindo texto então, fiquei com mais vontade. Beijo
Oi, Karla
Sim, e muitas vezes é difícil sair da zona do conforto para abraçar o desconhecido - em todos os sentidos. Vá ver o filme. A gente sai dele leve, de alma lavada.
Muito obrigado pelo elogio.
Um beijo.
Muito bom, como sempre.
Gracias, Socorrinho.
Beijos
Maravilhosa (auto) reflexão, compadre. Me fez perceber o quão nada nostálgica ando. Em verdade, cada dia quero passar pelo presente (e deixá-lo no passado) para ter sobrevida futura. Quanto ao filme, não vi. Fui deixando, fui deixando, daí impliquei com Owen Wilson e não fui mais.
Obrigado, Comadre.
Curioso como olhamos a vida sob perspectivas bem distintas, embora eu não ache que a nostalgia seja sempre válida. Apenas torna o nosso mundo imaginário mais aconchegante.
Vá ver o filme. Acho que ainda está nos cinemas, e Owen Wilson, acredite, encarna um perfeito alter ego de Woody Allen. Já tinha gostado dele em Marley e Eu. Há algo de desamparo nele que combina com o personagem e o diretor.
Beijo grande.
Sempre pensamos no passado como forma de nos adaptarmos ao que nos apresenta. Como se no passado nossas decisões pudessem ser diferentes - e no fundo é disso que se trata, de nossas decisões, de convivermos com ela no momento em que as vivemos. A nostalgia se vinga como um sonho. Woody Allen captou com perfeição.
Interessante a sua abordagem. Talvez seja isso mesmo: tomar decisões cruciais implica encarar o presente, no que ele tem de mais árido e inescapável. Daí ser tão importante a nostalgia.
Um abraço.
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