sábado, 17 de dezembro de 2011

Espirais



Tenho lembrado nos últimos dias de uma resposta que o escritor angolano José Eduardo Agualusa me deu uma vez, durante uma entrevista, ao ser indagado se a humanidade estava sendo assombrada por um tempo particularmente sombrio: “Os budistas dizem que a gente evolui em espiral: você recua, mas vai subindo sempre. Quando você olha para trás, vê um tempo de sombras. Quanto mais para trás você olha, piores eram os tempos. Há cem anos havia escravidão aqui no Brasil, e eu não conheço sistema mais indigno e injusto que a escravatura. E era aceito. Depois houve o Hitler. Hoje já não seria possível existir um Hitler, nem a escravatura. O mundo não permitiria. Nós melhoramos muito, não há dúvida que há uma evolução ética e moral”.

Acho que Agualusa está certo, que estamos realmente evoluindo como civilização, como sociedade. Mas ele também está certo quando cita o provérbio budista, de que avançamos em espiral. Cada avanço é precedido e sucedido de retrocessos muitas vezes brutais. Se fizermos uma rápida retrospectiva do século 20, perceberemos que ele alternou movimentos radicalmente distintos de sístoles e diástoles: uma primeira década tranquila e marcada por inovações tecnológicas, seguida da explosão de violência da Primeira Guerra que, ao acabar, ofereceu ao mundo a década de paz, riqueza e hedonismo desenfreado que ficou conhecida como a Era do Jazz. Em seguida, foi a vez do Crash da Bolsa de Nova York, da Grande Depressão e da ascensão do fascismo na Europa, que iria desaguar no horror absoluto da Segunda Guerra. Tempos sombrios, mas que por sua vez culminaram, entre as décadas de 50 e 70, nos estados de bem-estar social, com um grau de prosperidade nunca visto – nem antes, nem depois.

Não tenho dúvida de que o ataque da Al Qaeda ao World Trade Center inaugurou e simbolizou uma nova era de retrocesso. Hoje, presenciamos um momento de franca deterioração moral, de retorno ao que temos de mais bárbaro e primitivo, como uma espiral que sai um pouco fora da curva e derrapa inapelavelmente rumo ao precipício. É nítida a sensação de queda. Desde que criei este blog, há exatos três anos, me vi várias vezes discorrendo sobre a perplexidade que me toma diante de alguns atos cometidos por seres humanos. Em muitas outras me calei, pois percebi que me tornaria repetitivo e enfadonho, como um cantor de um único sucesso. Mas esta semana algo parece ter provocado uma pequena fratura em algum canto da minha mente, pois me vi de novo compelido a arfar como um asmático antes de pôr para fora todo o meu desassossego.

Não vou me estender em torno de disparates como o da enfermeira que matou um cãozinho a pauladas sob o olhar complacente da pessoa que filmava o ato. Ou da garota de 14 anos atacada com facadas e pedradas por colegas da mesma idade, ao ponto de ter o pulmão e o ovário perfurados. Eles são apenas variações de uma mesma desdita. O que mais me espanta em episódios como esses é como germinam cada vez mais crimes cometidos por pessoas que, em tese, não são criminosas. Bem ou mal, podemos esperar que um assaltante ou um traficante de drogas, submersos como estão num lamaçal crônico de violência, sejam capazes de nos arrancar a vida com diferentes matizes de crueldade. Mas não esperamos isso de alguém que poderia quem sabe ser nosso vizinho ou nosso colega de trabalho.

Estamos em um ponto tão obscuro da espiral que não sabemos mais onde foi parar o significado de palavras como dignidade, compaixão ou alteridade. É o fim dos tempos, como diria um temente a Deus. Ou talvez, como apregoam os budistas, o fim de uma era de retrocesso antes que voltemos a avançar de novo.

4 comentários:

Laert disse...

Paulo,
Espero de verdade que seja o fim de uma era de retrocesso. Aliás, gostaria que fosse.
Acredito, todavia, que ainda estamos na curva descendente da espiral. Em algum momento, em algum lugar, algo acontecerá para que a gente chegue no ponto de tangência mais obscuro.
Pode até ser pessimismo mas, de acordo com o que estou vendo nos últimos tempos, o fim do poço ainda é um estágio.

Teremos dias mais sorridentes, com os dentes bem escovados. Aguardo ansiosamente por isso.

Um forte abraço.

Paulo Sales disse...

Também espero por dias mais sorridentes, meu caro, embora não faça a mínima idéia de quando eles virão - historicamente falando, é claro, já que tenho tido meu quinhão de felicidade e não posso reclamar.
Grande abraço,
P.

Socorro disse...

Lembro desta entrevista como se tivesse lendo hoje. E cito sempre quando alguém fala que antes era melhor. Gente como você faz falta num jornal...

Paulo Sales disse...

Obrigado, Socorrinho.
Essa foi mesmo uma bela entrevista, e lembro o quanto lamentei ter deixado muita coisa legal de fora por falta de espaço. Adorava entrevistar gente interessante, principalmente cara a cara, como foi o caso de Agualusa, um sujeito especial.
Um beijo.