Certa manhã, após uma noite de sonhos intranqüilos, eu acordei com uma dor terrível na perna esquerda. Tinha 17 anos, e passara a madrugada escrevendo em sonho um romance ao qual dei o nome de O Livro Vermelho. Do conteúdo do livro restou quase nada. Mas a dor desse dia foi a primeira de muitas manifestações que desaguaram em uma doença chata, diagnosticada inicialmente como síndrome de Reiter e mais tarde como espondilite anquilosante, que me acompanha até hoje. Agora mesmo, enquanto escrevo, sinto uma pontada forte nas costas. Mas já estou acostumado.
Na época, fui tratado com antiinflamatórios e depois de algumas semanas me senti melhor. Mas em dezembro de 1991, pouco antes de completar 22 anos, a doença se manifestou de novo. O curioso é que novamente houve um componente literário nessa história. Estava escrevendo à máquina um poema enorme numa folha de fax e quando estava prestes a terminá-lo comecei a perceber os sintomas. Desta vez, eles foram ainda mais intensos. Praticamente não conseguia andar e passei mais de um mês sem sair de casa, a não ser para ir ao médico.
Os antiinflamatórios não surtiam o mesmo efeito e, ao lado de minha mãe, pulei de médico em médico à procura de uma solução. Uns deram de ombros como se eu não tivesse cura, outros insinuaram que eu estava muito deprimido e isso poderia agravar a doença, que tem um componente auto-imune (o sistema de defesa do meu organismo passa a atacar a mim mesmo, como se algumas de minhas células fossem um corpo estranho). Na verdade era a doença que estava me deixando deprimido, e não o contrário. Enfim, uma médica mais interessada me tratou com corticóides e finalmente eu melhorei, mas meu corpo nunca mais foi o mesmo.
Nos anos seguintes, a dor vinha e voltava, e eu passei por tratamentos que iam de fisioterapia e RPG a medicamentos de todo tipo. Minha mobilidade piorou sensivelmente, devido também a uma tendência irreversível ao sedentarismo, e a doença começou a formar pontes ósseas entre uma vértebra e outra. Somente há uns quatro anos minha reumatologista indicou um tratamento inovador, à base de um medicamento intravenoso que age diretamente nos sintomas da espondilite. Isso atenuou de maneira significativa as dores e me deu nova mobilidade. Mas quando o tratamento acaba, elas voltam, mesmo que com menos intensidade que antes.
Não sei por que estou relatando isso aqui. Talvez porque esteja lendo Outras Vidas que Não a Minha, um romance que, entre outros assuntos, aborda a rotina de pessoas com enfermidades muito mais graves do que essas prosaicas dores na coluna que me deixam entrevado. As histórias do livro de Emmanuel Carrère são todas reais, vividas por pessoas mais ou menos próximas a ele, embora tratadas de maneira romanceada. De certa forma, me identifiquei com o juiz Étienne, que sofre de um câncer na adolescência e depois na juventude, e acaba por amputar uma perna.
Não tenho propensão à hipocondria, e sempre que possível evito imergir nesse terrível universo de perdas e superações com que nos deparamos quando eventualmente precisamos circular por hospitais. Mas o fato é que uma doença – nossa ou de alguém que gostamos – nos lança em um território cinzento, opaco e asséptico, no qual é muito pequena a distância entre sucumbir e sobreviver. Há muitos fatores envolvidos nessa guerra interior, e temos pouquíssimo poder de decisão sobre a maioria deles.
Acredito que tiramos algum tipo de lição quando conseguimos escapar mais ou menos incólumes de uma temporada no inferno dos hospitais. O juiz do livro de Carrère, por exemplo, se tornou um profissional íntegro, que livra da falência pessoas às voltas com dívidas gigantescas. Não sei que tipo de pessoa eu me tornaria caso conseguisse me safar de tamanha provação, e espero nunca saber. Mas certamente não seria o mesmo, com os mesmos valores, preconceitos e idiossincrasias. O sofrimento não costuma aliviar: ele é como um espelho distorcido no qual nos miramos e enxergamos um estranho. Sendo que esse estranho representa quem fomos antes da tormenta, e quem nunca mais voltaremos a ser.
6 comentários:
Por isso que a única coisa que peço ao Universo é saúde. Passei por momentos muito dificeis de saúde com meu filho também(muito pior do que se fosse comigo), e, não existe nenhuma sensação melhor do que a de conseguir passar por essa luta e sobreviver. Assim, conseguimos dar valor ao "viver". Beijo, Paulinho
Saude eh certamente o item basico, primordial, de uma vida digna. E quando eh a saude de quem a gente ama que esta em jogo, o sofrimento eh muito maior, doi na gente. Que possamos viver sem dor o maximo de tempo possivel eh a minha esperanca.
Um beijo, Karla. Eh muito bom ter voce sempre por aqui.
Adoro o que você escreve - sempre com tanta sensibilidade. Beijo
Muito obrigado. Mesmo. Um beijo.
não acompanhei essa fase sua amigo, foi depois que nos afastamos, me alio a você nessas sensações e percepções pois aos 28 fui diagnosticada com uma "fibromialgia incurável" a qual aprendi a esquecer...Hoje cuido só da depressão e comecei a cantar depois de ter uma tendinite na perna esquerda e ficar 3 anos sem andar direito... Médicos e clínicas de fisioterapia eram minha sala de estar, local onde lia os melhores livros e comprovava as mais loucas teorias sobre as relações... Também espero que 2012 nos leve mais longe desses!!! beijos
Essas doenças que afetam a mobilidade são terríveis, mexem com nossa auto-estima, deprimem mesmo. Ainda hoje sofro com essas dores, embora bem menos que nos tempos de crise. Tomara que nunca mais a gente precise voltar a isso.
Beijão
Postar um comentário