sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Faíscas



Quando um homem de 41 anos, pai de três filhos, morre assassinado, nós nos sentimos compelidos a vociferar contra a violência urbana crescente e o excesso de armas em circulação no país. Quando essa pessoa morre vítima de um acidente de carro, nós deploramos as condições das estradas, a irresponsabilidade dos motoristas alcoolizados e a permissividade das leis. Mas em quem devemos pôr a culpa no caso de uma morte causada por um acidente vascular cerebral? Contra quem devemos direcionar nosso ódio e nossa impotência?

Nas últimas horas do último dia de 2011, fiquei sabendo por meu irmão da morte de Daniel Piza. Aquilo me chocou e ficou remoendo aqui dentro por dias, enquanto me lançava aos prazeres de uma praia distante com minha família. Na mesma hora, entrei na internet e dei de cara com a foto de Piza sorrindo e as informações sobre a sua morte. Senti uma contração no peito e vontade de chorar, não exatamente por ser ele, mas por ser um homem da minha idade, jornalista como eu, pai de família como eu e um apaixonado por cultura como eu (há diferenças também, é claro, já que estou falando de alguém que era colunista do Caderno 2 de um dos melhores jornais do país e autor de mais de uma dezena de livros).

Nem sempre concordava com o que Daniel Piza escrevia e confesso que às vezes o achava meio pedante, sobretudo quando emulava Paulo Francis, um de seus principais inspiradores. Mas sempre lia o seu blog e sua coluna no Estadão. Era uma fonte de informação cultural muitíssimo relevante numa imprensa cada vez menos pujante nesse quesito. Entrei no seu blog após sua morte e reli seus últimos textos. O derradeiro post informava: “Parada de fim de ano. Volto no dia 11. Feliz 2012 para todos nós”. Essa frase foi escrita no dia 28 de dezembro. Dois dias, portanto, antes da sua morte. Ao que parece, estava claro para Piza que não havia qualquer problema com a sua saúde, tanto que foi passar o fim de ano com a família e os pais no interior de Minas. Mas, enfim, o “Feliz 2012” começou e terminará sem ele.

O que mais me deixou consternado na morte de Piza foi a sua absurda incongruência. Já vi pessoas muito mais jovens morrerem de forma também abrupta antes, mas algo nessa história me tocou particularmente. Não faz sentido. Mas, afinal, o que faz sentido? Volto à pergunta do início: a quem culpar por uma vida tragada em seu auge? Os religiosos têm ao seu dispor uma resignação obstinada, mas e quanto aos ateus? Para mim, ficou ainda mais clara a nossa absoluta vulnerabilidade, a minha em particular. O corpo que habito e que é tudo de mim hoje me parece ainda mais frágil, com seus ossos, órgãos, músculos e tecidos combalidos pelo sedentarismo trabalhando precariamente para me manter vivo. Uma máquina que pode falhar qualquer dia e para a qual não existe um mecânico especializado capaz de fazê-la funcionar de novo. Nesse ponto, somos um pouco formigas, amebas, peixes de aquário. A existência, que à primeira vista parece um incêndio arrebatador e quase incontrolável, é na verdade pouco mais que uma faísca, uma centelha, uma vela acesa ao vento.

14 comentários:

Sandro Lobo disse...

Paulo, não sabia disso, estou chocado!

Paulo Sales disse...

Pois e, Sandro. Foi assim que fiquei e ainda fico. Foi uma coisa muito brutal.
Abs

Tê Barretto disse...

Compadre, quando vi o título do post entendi "faíscas" como centelhas de atenção. Da sua atenção, até por saber do seu ateísmo. Não foi isso, mas a interpretação precipitada vale.
Sei bem o que é uma morte repentina por AVC. Vi meu pai ter um aos 42 anos e a imprevisibilidade é grande. Mas o corpo dá sinais, eventualmente. Lembre Loyola. Meu pai tinha sintomas, além de predisposições que foram ignoradas por médicos. Portanto, acender uma faísca é sempre bom quando se trata de saúde. E, ao mesmo tempo, não deixar passar nada da vida e dos momentos que nos alimentam. Às vezes estes dois cuidados são incongruentes. Eis o dilema. Porque nunca sabemos (e aí entra a minha doutrina religiosa) se estamos na cota do imprevisível ou do evitável.

DAVID FRANCO disse...

Tive o mesmo sentimento ao saber da notícia pela TV. Somos realmente frágeis. Abraços.

Socorro disse...

Luiz Fernando Veríssimo escreveu por esses dias: "O mais terrível da morte aos 41 anos do Daniel Piza, com quem convivi menos do que gostaria, é não ter contra o que dirigir nossa indignação pela brutal injustiça. Foi a fatalidade, foi a vida... nada que se possa responsabilizar pelo que nos fizeram". Acho que é assim mesmo a vida, como diz Vinicius no seu belo Poema de Natal.
Amanhã completa 6 anos da morte do pai dos meus filhos, num rápido mergulho naquela linda praia da Pedra do Sal. Lembro que falei pra eles na época: "que bom que não podemos culpar ninguém, nem mesmo a falta de salva-vidas naquela praia perigosa". Podemos aprender muito em meio a perdas assim.

Paulo Sales disse...

Sim, Comadre, uma perda inesperada é sempre mais dolorosa, mais brutal. O problema é que nosso próprio corpo por vezes é traiçoeiro, não nos revela nada. E, para mim pelo menos, não importa se estamos na cota do imprevisível ou do evitável se a consequência for sempre a mesma. A sensação é invariável: a de que somos uma faísca, um quase nada.
Um beijo e obrigado pelo comentário.

Paulo Sales disse...

É, caro David, nossa fragilidade é impressionante.
Abração.

Paulo Sales disse...

Incrível, Socorrinho, Verissimo teve a mesma sensação que eu, de que não podemos culpar ninguém. Fica só a sensação de parvo, de impotência. Não sei se aprendemos com a perda. Acho que amadurecemos com ela, nos tornamos mais sofridos, mais cascudos, o que não deixa de ser um aprendizado para as perdas que virão na sequência. Não sabia que a morte do seu marido era tão recente. Fique bem.
Um beijo.

Socorro disse...

Ele não era mais meu marido, Paulinho, já estávamos separados e ele até já tava casado com outra. Mas era uma pessoa que eu admirava muito. Era um militante sonhador e correto, um jornalista muito bom e um ser humano raro. Meus filhos sofreram muito e sentem muita falta dele. Você vê Tiago assim calado? Se falar do pai, ele passa horas conversando. Mas voltei hoje aqui pra pegar emprestado um trecho desse seu texto pra falar da morte, também repentina e prematura, do ex-marido de Claudia Lessa, pai do filho dela, o presidente do Sindimed Luiz Caires. Coincidentemente, ele foi amigo de Pedro. Os dois eram militantes políticos desde os tempos do movimento estudantil. Curiosamente, Caires morreu num fim de manhã de um sábado da primeira semana de janeiro, como Pedro. E assim, sem que ninguém esperasse...
Vá lá no face ver o "roubo". E pode e corrigir se precisar...

Paulo Sales disse...

Não sabia desses detalhes todos, o que mostra que precisamos sair mais para conversar na companhia de uma cervejinha gelada. Não sabia também que o médico era ex-marido de Lessa. Que pena. Que perda.
Ah, e pode roubar à vontade os textos deste blog. Eles são feitos para isso mesmo.
Obrigado e um beijo.

ArmundoAlves disse...

Não sabia da morte do Daniel. Ando meio desligado desde os últimos dias de 2011. AVC na faixa dos quarenta anos é algo inquietante. Nosso primeiro contato entre leitor (eu) e jornalista (ele) foi o suplemento cultural que ele editava na Gazeta Mercantil (pouco antes do fim). Eu considerava um bom caderno cultural. Concordo com você, Paulo. Quando ele resolvia dar uma de Paulo Francis a coisa não pegava bem, como ainda não pega bem para ninguém, afinal o Francis criou um personagem que só ele mesmo sabia representar. E olhe que por ai anda cheio de epígonos.

Paulo Sales disse...

Bem lembrado, Armundo: o caderno de cultura da Gazeta era excelente, pena que durou tão pouco. Piza não era um polemista por natureza, e esse papel não lhe caía bem. Era muito mais um agregador, um jornalista muito culto que sabia expor sua erudição de um jeito envolvente, como o próprio Francis era capaz de fazer quando não se envolvia em polêmicas vazias. Fará muita falta.
Grande abraço, meu caro.

Giovanni Soares disse...

Paulinho, só fiquei sabendo agora, através do seu blog, da morte de Daniel Piza. Havia lido recentemente, inclusive, a biografia de Machado de Assis, que ele escreveu. Realmente, é uma pena. A notícia me pegou de supetão. Abração.

Paulo Sales disse...

Essa noticia, caro Giovanni, eh um baque e tanto ainda para mim tambem. Piza era um jornalista diferenciado. Muito culto, com uma bagagem que o fazia analisar livros, filmes e discos sob um prisma privilegiado. Uma perda.
Abracao.