sábado, 25 de fevereiro de 2012

O declínio das paixões




Depois de muitos anos, voltei a ouvir Yo Pisaré las Calles Nuevamente, do compositor cubano Pablo Milanés, uma canção de que gosto muito. Uma amiga tinha compartilhado várias músicas dele no Facebook e sugeri essa, que para mim pertence a um tempo em que as utopias ainda não tinham sido substituídas pelo cinismo – de parte a parte. “Yo Pisaré...” fala abertamente do golpe militar no Chile, que depôs o governo legítimo de Salvador Allende para implantar aquela que foi provavelmente a ditadura mais sangrenta da história da América do Sul. Durante muito tempo, Allende representou o elo perdido de um socialismo de face mais humana ao sul do Equador. Intelectual, íntegro e bem-intencionado, foi talvez o último sonho genuíno que os socialistas tiveram de se mostrar como uma alternativa viável pelas bandas de cá, apesar dos sérios problemas de gestão no seu governo.

Hoje, se não estou redondamente enganado (e posso estar, obviamente), não há mais espaço para utopias como a de Allende, muito menos para outras forjadas no decorrer do século 20. O socialismo ruiu com a queda do Muro de Berlim, em 1989, mas o fato é que já estava podre por dentro, como uma árvore consumida por cupins. A Revolução Cubana, a mais vistosa das utopias socialistas, agoniza em praça pública, e na Coréia do Norte não há sequer socialismo, mas sim totalitarismo hereditário. Um totalitarismo trágico e sanguinário muito semelhante ao que indivíduos como Stálin, Ceausescu, Hoxha, Mao e Pol Pot, entre outros, proporcionaram aos seus respectivos povos. Quanto à direita, ela teve a sua utopia sepultada com a derrocada do nazi-fascismo (que de vez em quando ensaia uma ressurreição) e acabou optando pelo pragmatismo neoliberal de Thatcher e Reagan nas últimas décadas do século passado.

Paixões costumam ser perigosas, mas sinto falta delas nas discussões políticas. Na última eleição presidencial aqui no Brasil, o que tivemos não foi paixão, mas sim uma defesa ferrenha de interesses que beirou o ridículo dos dois lados. Falo de paixões mesmo, da maneira mais ingênua possível, como um namoro entre adolescentes. Do acreditar que é possível um mundo menos desigual. Paixões capazes de criar uma canção como Yo Pisaré las Calles Nuevamente. Capazes de mover não só artistas e intelectuais, mas o povo também – ao menos uma parte dele. Mas não, não há ambiente propício à proliferação de quimeras, mesmo que alguns enxerguem uma delas na Primavera Árabe. Bem, talvez seja melhor assim. É mais fácil mudar de idéia, por considerá-la equivocada ou obsoleta, do que deixar de lado uma velha paixão de juventude. Estamos menos emotivos e mais racionais. Mas, por que ficamos assim? As escolhas foram infundadas? Nossos ícones nos decepcionaram?

De minha parte, gostaria apenas que olhassem com mais carinho e atenção para a experiência política que mais deu certo no mundo: os estados de bem-estar social, ou welfare states, surgidos após o fim da Segunda Guerra e defendidos por historiadores como Eric Hobsbawm e Tony Judt. Seus princípios – que as medidas para conter a crise econômica na Europa estão tentando solapar – são muito claros: Estado forte e provedor, mas não autoritário, capaz de controlar as instabilidades do livre mercado, e investimento maciço em políticas sociais, com ênfase em educação e assistência médica gratuitas, auxílio-desemprego e renda mínima.

Os resultados são inequívocos. Basta ver a vida que se leva em países como Noruega, Dinamarca, Canadá e Finlândia, ou em outros que adotaram em parte as premissas do welfare state: França, Austrália e Nova Zelândia. São nações que em maior ou menor medida unem a liberdade e o empreendedorismo, comuns ao capitalismo, com a implementação de políticas sociais fundamentais, que Marx lá atrás já defendia e pelas quais milhares de pessoas ao redor do mundo caíram de paixão, gritando palavras de ordem e levantando bandeiras por uma utopia que infelizmente nunca deixou de ser utopia.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Páginas de eternidade




Hoje me dei de presente um passeio de algumas horas por duas livrarias. Sem pressa, perambulei pelas estantes como um explorador de histórias infanto-juvenis, caçando reminiscências e visitando territórios inexplorados. Autores búlgaros, alemães, latino-americanos. Contos, romances, memórias. Aproveitei para trocar o vale-presente de aniversário que recebera do meu irmão por livros de Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges e o romance de um autor novo, Tom Rachman, chamado Os Imperfeccionistas. Em seguida, sentei no café da livraria e abri ao acaso o livro de Pessoa, Quando Fui Outro, uma antologia organizada pelo escritor Luiz Ruffato. E o mundo me pareceu entrar em suspensão.

Após folhear algumas páginas, Pessoa me tomou pelo braço e me confessou: “Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu – a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim – sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nessas ruas, o que outros vagamente evocarão com um ‘o que será dele?’. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer”.

Fechei o livro por um momento e me dei conta de que o amanhã de Pessoa era o meu ontem. Ou melhor, era um tempo muito antes do meu ontem. Pessoa morreu em 1935, ano em que meu pai nasceu. E nos 68 anos seguintes meu pai viveu a sua vida, gerou outras vidas, incluindo a minha, e voltou para o território do oblívio. Um dia eu também voltarei. Mas o amanhã de Pessoa se eternizou quando o li, recostado ali naquela cadeira, quase 80 anos depois de ter virado ontem. E voltará a se eternizar muitos anos adiante, quando outro leitor desavisado, em outra cadeira qualquer, for tomado nos braços pelo poeta.

Terminei o café, peguei a sacola de livros e fui para outra livraria. Lá, após novas incursões pelas prateleiras, me deparei com uma edição recém-lançada de um clássico da minha infância: A Máquina do Tempo, de H. G. Wells. Guardo com carinho o livro, uma singela edição de bolso com tradução de Paulo Mendes Campos, dada por uma tia, que conta a história do cientista que constrói uma máquina revolucionária e com ela viaja rumo a um futuro muito distante, chegando ao ano de 802.701. Folheei o livro, me detendo em algumas passagens, até que cansei de permanecer em pé e procurei uma poltrona onde me recostar.

Lembrava de uma passagem na qual o personagem se dirigia a um futuro ainda mais remoto e lá encontrava caranguejos gigantes numa praia. Fui até esse futuro e reencontrei nele o meu passado, o do garoto excessivamente introspectivo que se refugiava no mundo das palavras. Os acontecimentos eram muito parecidos com os que guardava na memória: os caranguejos, o entardecer eterno, a sensação de absoluta desolação causada pela ausência do ser humano: “Continuei a viagem, detendo-me de tempos em tempos, em intervalos de milhares de anos ou mais, arrastado pelo mistério do destino da Terra, vendo com estranha fascinação o sol tornar-se cada vez maior e mais triste, enquanto a vida da Terra se extinguia gradualmente. Por fim, a mais de trinta milhões de anos do momento atual, a imensa abóbada rubra do sol havia acabado por obscurecer uma sexta parte do céu sombrio”. 

Como Pessoa, Wells falava também de finitude, embora de uma finitude quase infinita, se isso é possível. E, ao falarem de finitude, Pessoa e Wells falaram a mim sobre eternidade. Sobre a perenidade das idéias e dos sentimentos, mesmo após o fim propriamente dito. Continuei lendo até acabar o capítulo. Em seguida, levantei da poltrona, coloquei o livro de volta no lugar e saí da livraria. O sol por trás da abóbada de vidro do shopping e as pessoas passeando sem direção me causavam uma impressão estranha, como se eu mesmo tivesse acabado de sair da máquina do tempo. Mas de certa forma saí, atônito e feliz por dentro, como se vislumbrasse, nas entrelinhas das páginas de Wells, o garoto gordinho que um dia foi arrebatado pelo delírio silencioso ao ler aquelas mesmas páginas, trinta anos atrás.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Quando o Carnaval chegar




Ontem, revi depois de muito tempo a seqüência inicial de O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg. Filmada com apuro técnico irretocável, ela é de longe o que o longa tem de melhor (depois, com o passar do tempo, a narrativa vai ficando mais e mais edulcorada, muito em função da trilha de John Williams, carregada na sacarose). Lá estão os soldados norte-americanos morrendo como formigas no desembarque na Normandia, no litoral da França, que entraria para a história da Segunda Guerra e da humanidade como o Dia D. Ou, mais precisamente, o dia em que os aliados começaram a selar o destino do conflito a favor deles – e, de certa forma, a favor de todos nós.

Foi uma carnificina, e Spielberg não nos poupa de ver tripas expostas, soldados sem membros e um mar tingido de vermelho. Só no desembarque na praia de Omaha, reproduzido no filme, foram mais de mil mortos, atingidos por saraivadas de balas de metralhadora, minas, explosivos e todo um arsenal preparado pelos alemães para fazer o maior estrago possível. É um numero significativo, mas que se torna ínfimo quando sabemos que os seis anos de conflito mataram em torno de 50 milhões de pessoas. Se há algum alento em toda essa brutalidade, vale dizer que a Segunda Guerra Mundial foi provavelmente a única guerra necessária, na qual os papéis de mocinhos e vilões estavam bem definidos. O mundo seria, hoje, muito diferente se Hitler e sua trupe de lunáticos tivessem triunfado.

Partindo desse pressuposto, os mil e tantos rapazes chacinados em Omaha morreram por uma boa causa – se é que causa alguma justifica uma morte, muito menos milhares. Muito piores são as mortes vãs, que não trazem consigo qualquer promessa, por mais frágil que seja, de que as coisas vão mudar. Mortes que atingem apenas a vítima e seus parentes mais próximos, deixando intacta a Grande História. Em quase todas as guerras os combatentes abatidos caem em seqüência, como peças de dominó, sem que exista algum sentido ou justificativa plausível. Mais grave ainda é quando os abatidos não são sequer combatentes, e sim civis pegos de surpresa pela estupidez, sem qualquer espécie de lógica que não a da barbárie.

Na última semana, a cidade em que vivo – que de resto já vem sendo aviltada de todas as formas há anos – deixou à mostra a lógica da barbárie em toda a sua extensão. Os 152 mortos em tão pouco tempo são apenas a faceta mais exacerbada de um território brutalizado, pelo qual transitamos como soldados fugindo de balas no Dia D. Mais do que isso: não há qualquer indício de que esses assassinatos serviram ao menos para pensarmos em um desabafo, um esboço de ponto final, um “acabou, chega!”. São mortes menores, se é que podemos mensurar o tamanho de um morto. Um garoto de 12 anos aqui, um morador de rua que gostava de rap ali e vamos nessa, a vida continua, estamos prontos para outra. E, parafraseando Chico Buarque, quem nos vê assim sempre parados, é que estamos nos guardando para quando o Carnaval chegar.  

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Sonata de outono



Há alguns meses, li na revista Bravo uma reportagem sobre Caetano Veloso que citava uma teoria da psicanalista inglesa Mary Esther Harding. De acordo com Mary, a existência humana pode ser dividida do mesmo modo que as estações do ano. A primavera vai até os 21 anos. O verão, dos 21 aos 42. O outono vai dos 42 aos 63 e, a partir daí, só nos resta o inverno pela frente, que pode ser mais ou menos gélido e tenebroso, dependendo da maneira como o encaramos e do que o destino nos irá proporcionar.

Bem, de acordo com a divisão estabelecida por Mary Esther Harding, hoje é o dia em que abandono a temporada de verão para abraçar o meu outono particular. Daqui para a frente, a minha realidade será a de folhas secas na relva, de temperaturas amenas e de um olhar mais sereno e reflexivo sobre a minha condição de ser humano. Ou, como dizem os versos iniciais de Autumn in New York, canção de Vernon Duke imortalizada por Billie Holiday, é tempo de me preparar para enfrentar minhas aventuras e batalhas. Então, que sejam mais aventuras e menos batalhas.

A verdade, porém, é que o outono sempre esteve em mim. Gosto da cor que as folhas ganham quando começam a morrer ainda nas árvores, de um amarelo opaco pendendo para o vermelho vivo. Gosto dos céus tomados por nuvens, do vento frio que chega do oceano, da calmaria que vem depois da fúria. Poderia até dizer que esses meus 42 anos sempre foram assombrados por um sentimento de declínio que jamais se concretizou. Hoje, só desejo a mim mesmo um outono longo e sem sobressaltos, um tempo de colheita, que me lance sem medo ao inverno daqui a 21 anos. E, enquanto abro uma garrafa de vinho para comemorar o meu ingresso no ocaso, eu celebro a vida.

Como no poema de Whitman, eu quero sentir “minha expiração e inspiração, a batida do meu coração, a passagem de sangue e de ar através de meus pulmões. O odor das folhas verdes e de folhas ressecadas, da praia e das pedras escuras do mar, e de palha no celeiro. O som das palavras expelidas de minha voz aos remoinhos do vento. Alguns beijos leves, alguns abraços, o envolvimento de um abraço. A dança da luz e a sombra nas árvores, à medida que se agitam os ramos flexíveis. O deleite na solidão ou na correria das ruas, ou nos campos e colinas. O sentimento de saúde, o gorjeio do meio-dia, a canção de mim mesmo erguendo-se da cama e encontrando o sol”.