sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Quando o Carnaval chegar




Ontem, revi depois de muito tempo a seqüência inicial de O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg. Filmada com apuro técnico irretocável, ela é de longe o que o longa tem de melhor (depois, com o passar do tempo, a narrativa vai ficando mais e mais edulcorada, muito em função da trilha de John Williams, carregada na sacarose). Lá estão os soldados norte-americanos morrendo como formigas no desembarque na Normandia, no litoral da França, que entraria para a história da Segunda Guerra e da humanidade como o Dia D. Ou, mais precisamente, o dia em que os aliados começaram a selar o destino do conflito a favor deles – e, de certa forma, a favor de todos nós.

Foi uma carnificina, e Spielberg não nos poupa de ver tripas expostas, soldados sem membros e um mar tingido de vermelho. Só no desembarque na praia de Omaha, reproduzido no filme, foram mais de mil mortos, atingidos por saraivadas de balas de metralhadora, minas, explosivos e todo um arsenal preparado pelos alemães para fazer o maior estrago possível. É um numero significativo, mas que se torna ínfimo quando sabemos que os seis anos de conflito mataram em torno de 50 milhões de pessoas. Se há algum alento em toda essa brutalidade, vale dizer que a Segunda Guerra Mundial foi provavelmente a única guerra necessária, na qual os papéis de mocinhos e vilões estavam bem definidos. O mundo seria, hoje, muito diferente se Hitler e sua trupe de lunáticos tivessem triunfado.

Partindo desse pressuposto, os mil e tantos rapazes chacinados em Omaha morreram por uma boa causa – se é que causa alguma justifica uma morte, muito menos milhares. Muito piores são as mortes vãs, que não trazem consigo qualquer promessa, por mais frágil que seja, de que as coisas vão mudar. Mortes que atingem apenas a vítima e seus parentes mais próximos, deixando intacta a Grande História. Em quase todas as guerras os combatentes abatidos caem em seqüência, como peças de dominó, sem que exista algum sentido ou justificativa plausível. Mais grave ainda é quando os abatidos não são sequer combatentes, e sim civis pegos de surpresa pela estupidez, sem qualquer espécie de lógica que não a da barbárie.

Na última semana, a cidade em que vivo – que de resto já vem sendo aviltada de todas as formas há anos – deixou à mostra a lógica da barbárie em toda a sua extensão. Os 152 mortos em tão pouco tempo são apenas a faceta mais exacerbada de um território brutalizado, pelo qual transitamos como soldados fugindo de balas no Dia D. Mais do que isso: não há qualquer indício de que esses assassinatos serviram ao menos para pensarmos em um desabafo, um esboço de ponto final, um “acabou, chega!”. São mortes menores, se é que podemos mensurar o tamanho de um morto. Um garoto de 12 anos aqui, um morador de rua que gostava de rap ali e vamos nessa, a vida continua, estamos prontos para outra. E, parafraseando Chico Buarque, quem nos vê assim sempre parados, é que estamos nos guardando para quando o Carnaval chegar.  

6 comentários:

Tê Barretto disse...

Compadre, ontem um amigo que faz parte da coordenação da festa de Itapuã me falava do sucesso do evento em meio ao caos, como "marco" legítimo pré-carnavalesco. Na minha cabeça, francamente, o "valor" dos acontecimentos está nestas 152 vidas dizimadas. Uma delas, a do rapaz de 19 anos que eu conhecia de vista, pois trabalhava no pet shop que o meu cachorro toma banho. O sorriso deste menino e o trauma vivido pelos colegas do trabalho (ele morreu lá dentro), brutalmente fuzilado por tiros de escopeta, é o que ficou pra mim. Estou pesarosa com tudo isso e indignada porque o circo suplanta o horror e tudo vira estatística.

Paulo Sales disse...

Compartilho de tudo que você disse, comadre. O descaso com essas mortes é uma imensa falta de respeito por parte das autoridades e mesmo das pessoas, que vêem nelas apenas um efeito colateral da greve. É um mundo estúpido, individualista, que agora vai esquecer de tudo nessa festa classista e violenta que é o Carnaval.

Giovanni Soares disse...

Pois é, Paulinho. Quando morre alguém da classe média alta e da classe alta, vira um problema. Quando morre preto, pobre e morador da periferia, vira uma uma estatística. Infelizmente é assim em todos os lugares, em cantos e recantos do nosso injusto país.

Paulo Sales disse...

Sim, meu caro. E o que mais incomoda é esse descaso da sociedade com esses crimes absurdos, inclusive cometidos por policiais, indivíduos que têm o salário pago por nós. É algo que me enoja. E ainda ficam se preocupando com a realização ou não do Carnaval. Na boa, foda-se o Carnaval.
Grande abraço.

ArmundoAlves disse...

A banalização da morte está atingindo níveis assustadores. A morte da moça em São Paulo deverá render audiência e aumento de tiragens; a de 152 baianos serviu para a liderança da greve da PM comprovar o clima de pânico instalado criminosamente. Reina o pragmatismo, a utilização indevida. E quanto ao Carnaval, que belo feriado. Ilha, Aracaju, Chapada Diamantina são ótimas alternativas para isso que a festa se transformou.

Paulo Sales disse...

É, meu caro Armundo, e agora o pânico começa a ser paulatinamente substituído pela "alegria, folia e energia". E, como diria Fitzgerald, assim vamos nós, botes contra a corrente, impelidos incessantemente rumo ao passado.
Um abraço.