segunda-feira, 26 de março de 2012

Aquela coisa toda



Acabei de reler Este Lado do Paraíso, romance que batizou este blog. É como atracar em um cais seguro, tão familiar que sabemos exatamente onde ficam as pedras e armadilhas do caminho. Com ele, F. Scott Fitzgerald se tornou aos 24 anos uma celebridade, vendendo milhares de exemplares e moldando uma juventude que se espelhava naqueles jovens ricos, hedonistas e melancólicos personificados na figura de Amory Blaine. Este Lado do Paraíso fez de Fitzgerald a voz dos “anos loucos”, da geração perdida do entreguerras, recém-saída do front na Europa e prestes a enfrentar outro front ainda mais brutal na década seguinte. Uma geração que se esbaldou em festas intermináveis, patrocinadas por fortunas que pareciam também elas intermináveis, como um diamante do tamanho do Ritz. Mas, por outro lado, uma geração culta, que enveredava madrugadas adentro discutindo autores como Chesterton, Wilde e Tolstoi.

Hoje, penso o quanto é improvável que um romance como Este Lado do Paraíso seja capaz de atrair milhares de leitores, muito menos de moldar uma geração inteira. A literatura deixou de ser um meio de massa para se refugiar em trincheiras, sobreviver em guetos. A histeria (e de certo modo a angústia) juvenil está direcionada para outras mídias – o cinema, a música pop, os blogs, as redes sociais, os vídeos do You Tube – e os anseios e interesses estão cada vez mais fragmentados. Num panorama assim, dedicar-se a um ato que exige concentração, disciplina e introspecção, como ler um romance de mais de 300 páginas, soa no mínimo descabido.

Li outro dia um artigo falando sobre o livro A Geração Superficial, de Nicholas Carr, que defende que a internet está criando uma geração de leitores com pouca capacidade de concentração e compreensão de texto, mesmo entre pessoas acostumadas ao ato de ler. Isso me parece claro. Eu mesmo, enquanto estou absorto em um livro, às vezes me pego pensando em entrar na internet para ver se tem alguma atualização, seja no meu blog, no Facebook ou nos portais de notícias. Não estou lamentando tudo isso, é só uma constatação – embora de certa forma essa mudança me entristeça. Nascido em 1970, eu fui moldado em outra era geológica, herdeira direta dos tempos de Fitzgerald e de Este Lado do Paraíso. No meu paleolítico particular, parte significativa (ou não, posso estar redondamente enganado) da juventude cultuava livros que atravessavam gerações. Havia, de certo modo, tempo suficiente para que uma obra nascesse, crescesse e arregimentasse adeptos fiéis, para só então decair e morrer – quando morria.

Cresci lendo e ouvindo falar de obras que poderiam virar do avesso a minha visão de mundo, me elevar a um novo plano intelectual e, quem sabe, espiritual. Eram meus faróis. Não foram poucas as vezes em que varei noites discutindo entusiasmado com amigos os romances que tínhamos acabado de ler. Ou outras em que comemorei achados preciosos em livrarias, sebos e feiras livres nas calçadas. Já fiquei até sem dinheiro para comer durante uma viagem, depois de torrar uma pequena fortuna numa edição raríssima de Pra Cima com a Viga, Moçada, de Salinger, em uma livraria de Florianópolis. E já vibrei de satisfação ao receber, de um vendedor de livros usados no Bixiga, em São Paulo, exemplares em bom estado de Factotum (Bukowski) e Os Subterrâneos (Kerouac), esgotados havia muitos anos. Hoje eles são facilmente encontrados até em postos de combustível, em edições de bolso novinhas, mas naquele tempo, ah, naquele tempo...

Entendo que esse entusiasmo que marcou a minha juventude e a de meus amigos tende a morrer – se é que não já morreu. Entendo que a literatura tenha sido desbancada pelo cinema e pela música como fonte primordial de cultura e entretenimento. Mas ainda me intriga o fato de que muitas pessoas, mais novas ou não, simplesmente não leem sequer jornais. É claro que o velho hábito matinal de folhear notícias tornou-se em parte obsoleto com a internet. Mas onde encontrar informações que avancem para além do lide? Vou além: onde encontrar o fascínio que um romance como Este Lado do Paraíso provoca em nosso córtex cerebral?

Como um velho senil, sinto falta do meu passado, da minha geração, por mais apática e individualista que tenha sido. Sinto também uma nostalgia irrefreável da geração que não conheci, aquela que há quase 100 anos se deixou enlevar pelo livro de Fitzgerald, e que ele definiu com tanta sensibilidade nos derradeiros parágrafos do seu livro: “O espírito do passado meditava sobre uma nova geração, aquela juventude eleita que vinha de um mundo perturbado, impuro, que ainda se nutria romanticamente dos equívocos e sonhos quase esquecidos dos poetas e estadistas. Ali estava uma nova geração, bradando velhos gritos, aprendendo velhas crenças, através de um sonho que se prolongava por longas noites e dias, destinada finalmente a expor-se àquele turbilhão cinza, sujo, a fim de seguir o amor e o orgulho; uma nova geração, mais dedicada do que a anterior ao temor da pobreza e ao culto do sucesso; uma geração que cresceu para descobrir que todos os deuses morreram, todas as guerras haviam sido combatidas, toda fé no homem estava abalada...”

6 comentários:

claudina disse...

Querido, somente um poema de
Inácio para por luz no seu cansaço:

PAVÃO MYSTERIOZO


A juventude abriga a zoada,
bebe o vinho da aridez
e sente o gozo do oásis.


Em seu canto cabe
o voo imenso do Condor
para dentro de alguma paisagem.

Minha angústia pretende esse voo:
Ícaro partindo para o Sol:
maior de todas as transcendências.

E de repente voar diante dos homens,
Pavão Mysteriozo, pássaro formoso,
mesmo sob essa longa indiferença.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

Paulo Sales disse...

Obrigado pelo poema, querida Antonia. Gosto dos escritos dele, principalmente de um poema lindo que fez para o filho.
Grande beijo.

Karla disse...

Paulinho, é impresionante como também me vejo, diversas vezes enquanto estou lendo livros, com vontade de entrar na internet. E o que me assusta nisso tudo é a facilidade como tudo acontece. E como as pessoas estão se tornando fúteis. Não concordo quando você diz que a nossa geração foi apática e individualista. Acho que ao contrário, éramos e somos muito mais sensíveis aos outros e muito menos apáticos do que essa nova geração de tantas facilidades. Lindo texto! Beijos

Paulo Sales disse...

Valeu, Karlinha.
Essa fragmentação também me causa estranheza, assim como a falta de conversas em bares sobre os livros que nós amávamos tanto. Quanto à nossa geração, realmente não sei: observo as pessoas que muitos de nós se tornaram e percebo uma profunda indiferença em relação a tudo, algo que deve ter passado para a geração atual. Mas quem sabe isso não é uma característica de todas as gerações e nós é que somos as ovelhas negras?
Um beijo.

Franchico disse...

Imagine minha alegria ao receber em casa, do nada, uma dessas edições de Factotum - a que vc me enviou! Até hj ela está lá na minha estante, reluzente como um trofeu!

Paulo Sales disse...

É mesmo, Poetinha. O prazer de conseguir aqueles livros era acompanhado também do prazer de compartilhá-los. Tenho até hoje a carta que você me enviou, agradecendo pelo presente. Saudade das nossas conversas até altas horas sobre os livros e autores que a gente adorava.
Abração.