sexta-feira, 16 de março de 2012

Purgação



Nunca fiquei tanto tempo sem escrever no blog. Os temas se aproximam e escapam de mim sem que esboce disposição para aprisioná-los num texto. São temas recorrentes, gastos, e me sinto cansado de falar sobre eles. O mundo vai nos abatendo aos poucos, vencendo pelo cansaço e pelas sucessivas estocadas em nossas costas, como um toureiro paciente. Leio sobre episódios terríveis e incomodamente banais e não consigo refletir sobre eles. O que dizer, por exemplo, da menina marroquina de 16 anos que se matou por não suportar os maus-tratos do homem que a estuprou e que, beneficiado pelas leis do país, escapou da prisão casando-se com ela? Ou do garoto de 12 anos que pôs fim à vida por não suportar a violência excessiva e rotineira dos colegas de escola? Ou da criança de 9 anos morta nos braços do pai durante um tiroteio em São Paulo, enquanto esperava o transporte escolar? O que dizer da brutalidade cotidiana que nos apavora e nos desnorteia, como touros exaustos à espera do abate?

Por sorte somos animais duros, traquejados, e queremos continuar vivos apesar de tudo. Afinal, existem momentos que fazem a vida valer a pena. Eu mesmo me pego extasiado ao contemplar o sol sumir no mar ao lado de minha filha, admirando encabulado e apaixonado suas mudanças de fisionomia e comportamento, deixando aos poucos de ser criança para viver uma adolescência dourada. Seria o suficiente para viver em plenitude. Mas infelizmente não estamos imunes à vida, como diz o personagem de George Clooney em Os Descendentes, ao comentar o fato de que, por morar no Havaí, ele teoricamente habitaria um paraíso refratário ao sofrimento e à perda. Não, não estamos imunes à vida, ou melhor, não estamos imunes à violenta opressão da realidade. Não há invólucro capaz de nos tornar invulneráveis, e é isso o que mais tememos.  

Ao escrever, é como se eu me purgasse da dor dos outros, mitigando o temor de um dia também ser vítima da dor. Mesmo um texto como este, sem pé nem cabeça, me ajuda nesse processo de penitência. De certa forma, invejo quem segue seu curso imune à desgraça alheia. Pois para que serve a minha compaixão, a minha tristeza solidária, se ela não tem qualquer serventia? Não sei o que fazer. Absorvo o mundo à minha volta como um mata-borrão, uma esponja, e me sinto impotente e aparvalhado diante de massacres como aquele do soldado americano no Afeganistão ou do genocídio sistemático promovido pelo ditador sírio contra seu povo. Não me reconheço no meu país ou nas pessoas que o habitam, assim como não me reconheço no meu tempo. E, por mais que me refugiasse em um lugar remoto, o mundo me alcançaria.

É o que acontece com Bucky Cantor, o personagem atormentado pela pólio de Nêmesis, livro mais recente de Philip Roth. Cantor era uma espécie de zelador de um pátio para crianças no bairro judeu de Newark, quando, no verão de 1944, elas começaram a morrer em sequência, por conta de uma epidemia de paralisia infantil. Moído pela culpa (por irracionalmente se considerar o responsável pela epidemia), ele parte rumo a uma colônia de férias para crianças bem distante de Newark, totalmente isolada, onde a pólio não chegou. Mas o mundo acaba por alcançar Cantor: logo após a sua chegada, um surto da doença começa a fazer estrago na colônia, incluindo entre suas vítimas ele próprio. De certa forma, Roth defende que não existe lógica na escolha dos que vão sofrer, a não ser a lógica perversa do acaso, tão aleatória e cruel como uma bala perdida.

10 comentários:

Nina disse...

Belo texto! Parabéns!
Estava hoje pensando nisso, no que faço para combater o sofrimento, não o meu, mas o do mundo? Triste conclusão é que nada, nada faço...
Quem sabe volto em breve aqui para dizer que fiz a diferença.

Bjo

Paulo Sales disse...

Obrigado, Nina.
Mas esse é um texto meio errático, quase uma forma de desabafo. E é difícil chegar à conclusão de que nada fazemos porque não podemos mesmo fazer nada - ou ao menos quase nada, um muito pouco capaz de ajudar alguém e que já nos serve de consolo. O mundo é muito maior do que nós.
Um beijo.

Clara Gurgel disse...

Paulo, tb sinto essa impotência diante de notícias tão escabrosas. Mas só o fato de, pelo menos, nos sensibilizarmos (ainda) faz a diferença. Sei que não vou conseguir mudar muita coisa nessa minha breve estadia por aqui mas, não consigo ficar imune. Escrever ao menos alivia. Pelo menos compartilhamos o fardo. Obrigada! Beijo!

Paulo Sales disse...

Sim, Clara, escrever é uma forma de alívio. E felizmente tenho encontrado aqui no blog pessoas que pensam e sentem o que eu sinto, como você. O fardo fica mais leve.
Obrigado também.
Um beijo.

Claudia Pedreira disse...

Inspirador, Paulinho... Muito bem representado o sentimento de lisergia, o mesmo que sinto a cada vez que me deparo com um novo menino na rua, querendo limpar a janela do meu carro; quando observo uma anciã andando com dificuldade e ainda tendo que trabalhar para sobreviver; ao me expor, já que não sou invulnerável, à violência cotidiana no trânsito. É um paradoxo buscar a prosperidade individual e olhar o que existe em volta. Interessante que tenha comparado humanos com touros, pois o que há neles de resistência e vigor, há também de torpor. Que ruminemos, ao menos, um mundo melhor!

karla disse...

Que texto triste, Paulinho. Mas, infelizmente é a nossa realidade. E é essa falta de controle na proteção, que deixa tudo tão pesado. A única coisa que podemos fazer é rezar e acreditar que um dia tudo pode melhorar. Beijos

Paulo Sales disse...

Sim, Claudinha, prosseguimos com resistência e vigor, mas também envoltos em torpor, como touros tentando sobreviver a qualquer custo. E acho que o que todos fazemos aqui, nesses comentários, é justamente ruminar um mundo melhor.
Um beijo.

Paulo Sales disse...

Karlinha, você disse tudo: é essa falta de controle na proteção que nos angustia. Esse desespero mudo por nos sabermos vulneráveis em um mundo cada vez mais brutalizado.
Um beijo.

Vovó Help disse...

Assisti ontem ao filme Canções, de Eduardo Coutinho, que eu acho que um entendido de cinema como você não vai gostar. Como Edifício Master, ele mostra pessoas como nós que em meio a esse turbilhão da vida guardam na memórias uma canção marcante. A maioria, mulheres, ligadas a um grande amor. Lembro dele aqui por duas razões: uma, de como somos, individualmente, esquisitos, complexos, estranhos até a nós mesmos. O segundo, porque o trailler que antecedeu esse filme era um filme de Letícia Sabatella - coloquei lá no face - sobre uma tribo onde alegria é a base da organização do grupo. Será que tudo isso que nos acontece não é o resultado dessa negação das nossas origens pra seguir uma cultura que não tem muito a ver com nossa natureza? E, como disse Caetano, citando uma conversa sobre a África com Agostinho Neto, não cabe a nós construir o futuro?

Paulo Sales disse...

Sim, vovó Socorrinho, podemos ajudar a construir o futuro, mas não sei bem se é a isso que me refiro aqui no texto - um texto por demais errático e confuso. Não sei se negamos nossas origens, acho que temos uma trizteza inata mesmo, algo que nos acompanha o tempo todo e que tem origem no nosso medo primordial, ou melhor, na falta de controle a que se refere Karla no comentário dela. A sensação de vulnerabilidade. Quanto a Coutinho, adoro quase todos os filmes dele, e quero muito ver Canções. Acredito, ao contrário de você, que vou adorar, assim como gostei muito de Edifício Master.
Um beijo e obrigado pelo comentário.