Não sei se há diferentes escalas de barbárie. Pouco importa
se os motivos são radicalmente distintos ou se os assassinos são mais ou menos
cruéis, a brutalidade é sempre uma só, farta em sofrimento, escassa em sentido.
Um estampido de fúria e insensatez que nos atinge indiretamente, como uma bala
raspando nosso rosto, até que um dia nos acerta em cheio. Como aconteceu com Caroline
Silva Lee, 15 anos, executada com dois tiros no último domingo, durante um
assalto, em São Paulo. Ou como ocorreu com Malala Yousufzai, 15 anos, que
sofreu uma tentativa de assassinato no início do mês no Paquistão.
Como eu vinha dizendo, a barbárie não permite diferentes degraus
ou matizes: ela é chapada, seca, sem nuances. Não estamos, portanto, em um
estágio mais avançado do que o Paquistão. Malala é uma jovem ativista, que
escreve um blog no qual denuncia e combate a violência contra as mulheres cometida
pelos fanáticos do grupo Talibã. Por essa postura, rara em uma garota da sua idade, ela foi baleada na cabeça por um extremista que simpatiza com as ideias
(se é que podemos usar esse termo neste caso) do Talibã. É intolerância em
estado bruto, ocorrida do outro lado do mundo, em uma nação pobre e
convulsionada da Ásia. “Que situação triste vive esse país”, você pode pensar,
e eu concordo. Mas a verdade é que nós, brasileiros, estamos no mesmo barco.
Afundamos de mãos dadas.
Caroline foi morta por se recusar a entregar a bolsa. Levou
dois tiros à queima-roupa desferidos por um sujeito que, após ser preso, disse
que é isso o que acontece com quem reage. Segundo o seu namorado, ela deve ter hesitado
em entregar a bolsa por conta de uns desenhos para tatuagem que ela tinha criado
e não queria perder. O depoimento do rapaz à Folha de S.Paulo, dois dias depois
do assassinato, me deixou comovido. É um menino articulado, inteligente, gente
do bem, como também parecia ser a garota. Gente que batalha, que sofre com
transporte público precário e empregos mal remunerados, mas que mesmo assim
cultiva seus sonhos, por menos ambiciosos que sejam. Gente com os dois pés
fincados na realidade. Eles me lembraram um pouco o casal Miles e Pilar do
romance Sunset Park, de Paul Auster, que li recentemente: ele um pouco mais
velho, ela novinha. Os dois sem grandes expectativas além das próprias
expectativas, que para eles tinham a dimensão do universo.
O assassinato de uma menina tão jovem revela, em toda a sua sordidez,
o profundo fosso em que nós, brasileiros, estamos metidos. Ignoramos a guerra
civil não declarada que faz tombar diariamente gente muito nova nas cidades entupidas
em que moramos. Continuamos a entender o brasileiro como um ser cordial, boa-praça,
sempre disposto a uma conversa fiada num botequim. Não somos assim. Não pode
existir cordialidade em um país que mata de forma violenta milhares de pessoas
todos os anos, seja no trânsito ou em situações que envolvem armas de fogo, como
afirma em uma brilhante palestra o historiador Leandro Karnal. Aqui, a morte é
banal, vulgar, quase um efeito colateral do que chamamos progresso.
O atentado contra Malala causou uma comoção mundial, tanto
que ela acabou transferida para Londres, onde se recupera bem, apesar das
prováveis sequelas. Faz sentido. Malala é um símbolo de resistência, uma voz
quase infantil a bradar contra um dos regimes mais estúpidos surgidos na era
moderna. Seu grito reverbera fundo no mundo contemporâneo e ganha a adesão maciça
dos que prezam a liberdade. Mas... e o que fazer com o grito mudo de Caroline
ao receber os dois tiros que lhe arrancaram a existência? Quem vai abandonar a
zona de conforto para aderir a sua causa perdida? Seu silêncio nos incomoda,
porque nos iguala ao Paquistão, à Síria, ao Iraque. Barbárie é barbárie, e o seu
idioma é universal.
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