Às vezes tenho a impressão de que os anos 60 e 70 passaram
sem deixar sequelas comportamentais na sociedade brasileira. É como se
tivéssemos pulado do conservadorismo sisudo dos anos 50 diretamente para o
conservadorismo festivo dos anos 80. Em que esquina do esquecimento foram parar
o amor livre, a Era de Aquários, as farras regadas a ácido lisérgico, a porra-louquice,
os sutiãs queimados, as trincheiras do Maio 68 e as canções de Bob Dylan? Por
que chegamos ao século 21 tão profundamente moralistas, preconceituosos,
sexistas, como se a revolução comportamental que varreu o mundo de cinco
décadas atrás tivesse sido varrida do nosso quintal?
Bem, pelo menos é isso que me parece claro quando assisto às
mais tolas frivolidades (que eu imaginava superadas) reemergindo revigoradas,
como se habitássemos um museu de grandes novidades. Em boa medida graças ao
jornalismo chinfrim que cobre o mundo das celebridades, subcelebridades e
demais mortais que almejam fazer parte desse clube a qualquer custo. Tenho
acompanhado a distância segura o caso da jovem de 19 ou 20 anos que leiloou a
própria virgindade. Agora, os sites de notícias me dizem que ela continua
virgem, que revelou seu nome verdadeiro numa entrevista e que parece ter sido
barrada em um desfile de moda.
Receio que o meu próprio discurso possa soar moralista.
Afinal, é muito bom poder ter acesso diariamente a qualquer tema, inclusive
sexo, sem que exista algum tipo de censura a nos cercear. Mas uma notícia que
tem a virgindade como tema principal não é por si só moralista? Estamos assim
tão obsoletos? O tal tabu do hímen rompido a sangue, abolido a duras (sem
qualquer malícia aí embutida) penas pelas jovens mulheres de 40 anos atrás,
volta agora como farsa extemporânea, revelando uma caretice coletiva chata,
desinformada, incapaz de formular uma reflexão, um questionamento.
Lembro agora de O Céu de Suely, o bonito filme de Karim
Aïnouz sobre uma moça que organiza uma rifa, premiando o vencedor com uma noite
de sexo com ela mesma. Estamos aqui no Brasil arcaico, o Nordeste de costumes
profundamente arraigados, com leis morais rígidas. Hermila, a moça que leiloa a
si mesma, quer fugir desse universo a qualquer custo, e a rifa é a forma mais
rápida que encontrou de ganhar dinheiro e partir. Mas para onde ela iria?
O Brasil urbano, com suas metrópoles superpovoadas, parece
estar se convertendo em um povoado remoto, intelectualmente tosco, refratário a
conceitos mais arejados, a uma visão de mundo que enxergue tolerância e
alteridade em vez de obtusidade e indiferença. Um país que espanca e mata
mulheres e homossexuais com desconcertante naturalidade, e que ainda usa
popularmente expressões do tipo “crime passional”, talvez como uma evolução do antiquado
“crime de honra”. Nesse cenário desolador, a exposição da virgindade diante de
nós ainda ocupa uma posição central nos debates diários à mesa do jantar, nos
salões de beleza, no cafezinho do escritório.
2 comentários:
Paulo, belo texto, como sempre, sinto o mesmo, e me parece, posso estar enganado, que a incrível ( e terrível! ) capacidade do capitalismo fazer tudo, inclusive sentimentos, virar mercadoria, está por trás destes tristes tempos que vivemos. E não vejo luz à frente...
Obrigado, Zatonio.
Tenho a impressão de que vivemos um momento de imbecilidade coletiva, principalmente por parte da mídia, que deveria formar opiniões, guiar os novos leitores para os fatos e não para factóides. É um cenário desolador, que nem sei se tem relação com o capitalismo - tem certamente com um de seus vetores, o consumismo desenfreado.
Grande abraço
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