quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Maremotos




De acordo com a teoria do caos, concebida pelo meteorologista norte-americano Edward Lorenz nos anos 60, uma mudança aparentemente insignificante no curso dos acontecimentos pode provocar consequências imponderáveis no futuro. É o chamado efeito borboleta, segundo o qual o ruflar das asas de uma borboleta no deserto do Saara pode provocar, digamos, um maremoto na costa de Nova York. Partindo desse pressuposto, eu me pergunto: quais as consequências, sobre nossa consciência, de um míssil israelense despencando em um prédio cheio de mulheres e crianças na Faixa de Gaza? Ou, para não ir tão longe, de um tiro desferido por um bandido contra um bebê no colo da mãe, em um carro na periferia de São Paulo?

São atitudes infinitamente mais concretas que o simples bater de asas de uma borboleta. Como elas chegam até nós? Como reagimos a tamanha onda de agressividade reverberando por aí até nos atingir como furacões? É possível que tenhamos desenvolvido anticorpos mentais, capazes de fazer as balas e mísseis ricochetearem para longe das nossas preocupações diárias. Vamos vivendo, e é o que importa. Mas será mesmo? Ou com o acúmulo dos anos algo em nós vai lentamente erodindo, perdendo as formas originais, como uma rocha exposta ao sol, vento e chuva? Nosso semblante anestesiado revela uma resignação impotente, devidamente amadurecida em barris abarrotados de sofrimento alheio. O efeito borboleta traz a desgraça de bem longe e ela se aloja em nosso peito, na inquietude silenciosa que nos invade antes de cairmos no sono. Mas em seguida adormecemos. “Amanhã é um outro dia. Não é”, como cantou Renato Russo em A Via Láctea.

Há em nós algo de Winston, o personagem de George Orwell na terrível distopia narrada em 1984, que foi confrontado com seus medos mais profundos (no caso, o de ratos famintos) ao ter seu caso amoroso descoberto pelo regime totalitário comandado pelo Grande Irmão. Winston renegou a mulher que amava, renegou a liberdade, a lucidez, o direito ao delírio, para preservar a própria vida. Tornou-se um homem oco, como acontece com os que sofrem um trauma profundo ou passam por uma lavagem cerebral. O esquecimento generalizado, no caso de Winston e também no nosso, se faz necessário. Deixamos de lado o disparate dos corpos em cascata desabando ao nosso lado para preservar a lucidez. Caso contrário, nossa mente os absorverá como um mata-borrão. É dor demais para um ser humano.

Mas é isso o que acontece comigo. Absorvo como uma esponja cada perda inútil de vida, cada criança morta por obra de adultos estúpidos, cada tiro letal disparado por armas em profusão nas mãos de homens com o desenvolvimento mental de pulgas. Não tenho a capacidade de esquecer, de virar a página e continuar imune. Com o tempo, aprendi a refletir, sem o auxílio de padres ou psicanalistas, sobre a origem desse sentimento perene de perda.  A deixar pedaços dessa dor em papéis ou confissões. De qualquer modo algo permanece e se acumula, o ruflar das asas da borboleta que despeja sucessivos maremotos dentro de mim. E é com eles que acordo todos os dias, aperto o botão do elevador, levo minha filha na escola, converso com minha mulher, troco ideias com os colegas de trabalho e por fim chego em casa, assisto tevê, leio e adormeço. Afinal, amanhã é outro dia. Não é.

4 comentários:

Nina disse...

A sentença que me persegue:
"Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.
Beijo

Paulo Sales disse...

Nossa, isso é lindo. John Donne, não é? Reproduzido por Hemingway em Por quem os sinos dobram. Diz em poucas palavras muito mais do que meus parágrafos inúteis.
Um beijo.

Nina disse...

Seus parágrafos foram excelentes, ora!!!
Sim, é John Donne. Adoro. Incrível a perenidade dos gênios.
Beijo

Paulo Sales disse...

Valeu, Nina. Vou ver o link que você mandou no outro comentário e que o Blogger inexplicavelmente não salvou. E por anda a Menina de Cachos? Nunca mais li um texto seu. Até citei ele em um post há alguns meses, chamado Ritos de Passagem. Quando puder dê uma lida.
Um beijo