De acordo com a teoria do caos,
concebida pelo meteorologista norte-americano Edward Lorenz nos anos 60, uma
mudança aparentemente insignificante no curso dos acontecimentos pode provocar
consequências imponderáveis no futuro. É o chamado efeito borboleta, segundo o
qual o ruflar das asas de uma borboleta no deserto do Saara pode provocar, digamos,
um maremoto na costa de Nova York. Partindo desse pressuposto, eu me pergunto: quais
as consequências, sobre nossa consciência, de um míssil israelense despencando
em um prédio cheio de mulheres e crianças na Faixa de Gaza? Ou, para não ir tão
longe, de um tiro desferido por um bandido contra um bebê no colo da mãe, em um
carro na periferia de São Paulo?
São atitudes infinitamente mais concretas
que o simples bater de asas de uma borboleta. Como elas chegam até nós? Como
reagimos a tamanha onda de agressividade reverberando por aí até nos atingir como
furacões? É possível que tenhamos desenvolvido anticorpos mentais, capazes de fazer
as balas e mísseis ricochetearem para longe das nossas preocupações diárias. Vamos
vivendo, e é o que importa. Mas será mesmo? Ou com o acúmulo dos anos algo em
nós vai lentamente erodindo, perdendo as formas originais, como uma rocha
exposta ao sol, vento e chuva? Nosso semblante anestesiado revela uma
resignação impotente, devidamente amadurecida em barris abarrotados de
sofrimento alheio. O efeito borboleta traz a desgraça de bem longe e ela se
aloja em nosso peito, na inquietude silenciosa que nos invade antes de cairmos
no sono. Mas em seguida adormecemos. “Amanhã é um outro dia. Não é”, como cantou
Renato Russo em A Via Láctea.
Há em nós algo de Winston, o personagem
de George Orwell na terrível distopia narrada em 1984, que foi confrontado com
seus medos mais profundos (no caso, o de ratos famintos) ao ter seu caso amoroso
descoberto pelo regime totalitário comandado pelo Grande Irmão. Winston renegou
a mulher que amava, renegou a liberdade, a lucidez, o direito ao delírio, para
preservar a própria vida. Tornou-se um homem oco, como acontece com os que sofrem
um trauma profundo ou passam por uma lavagem cerebral. O esquecimento
generalizado, no caso de Winston e também no nosso, se faz necessário. Deixamos de lado o disparate dos corpos
em cascata desabando ao nosso lado para preservar a lucidez. Caso contrário, nossa
mente os absorverá como um mata-borrão. É dor demais para um ser humano.
Mas é isso o que acontece comigo.
Absorvo como uma esponja cada perda inútil de vida, cada criança morta por obra
de adultos estúpidos, cada tiro letal disparado por armas em profusão nas mãos
de homens com o desenvolvimento mental de pulgas. Não tenho a capacidade de
esquecer, de virar a página e continuar imune. Com o tempo, aprendi a refletir, sem o auxílio de padres
ou psicanalistas, sobre a origem desse sentimento perene de perda. A deixar pedaços dessa dor em papéis ou confissões. De qualquer
modo algo permanece e se acumula, o ruflar das asas da borboleta que despeja sucessivos
maremotos dentro de mim. E é com eles que acordo todos os dias, aperto o botão
do elevador, levo minha filha na escola, converso com minha mulher, troco
ideias com os colegas de trabalho e por fim chego em casa, assisto tevê, leio e
adormeço. Afinal, amanhã é outro dia. Não é.
4 comentários:
A sentença que me persegue:
"Nenhum homem é uma ilha, sozinho em si mesmo; cada homem é parte do continente, parte do todo; se um seixo for levado pelo mar, a Europa fica menor, como se fosse um promontório, assim como se fosse uma parte de seus amigos ou mesmo sua; a morte de qualquer homem me diminui, porque eu sou parte da humanidade; e por isso, nunca procure saber por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”.
Beijo
Nossa, isso é lindo. John Donne, não é? Reproduzido por Hemingway em Por quem os sinos dobram. Diz em poucas palavras muito mais do que meus parágrafos inúteis.
Um beijo.
Seus parágrafos foram excelentes, ora!!!
Sim, é John Donne. Adoro. Incrível a perenidade dos gênios.
Beijo
Valeu, Nina. Vou ver o link que você mandou no outro comentário e que o Blogger inexplicavelmente não salvou. E por anda a Menina de Cachos? Nunca mais li um texto seu. Até citei ele em um post há alguns meses, chamado Ritos de Passagem. Quando puder dê uma lida.
Um beijo
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