Eu era criança e gostava da canção Leãozinho, de Caetano
Veloso. Mas, para um incipiente amante do mundo animal, havia uma incongruência
na letra. “Gosto de te ver ao sol, Leãozinho, de te ver entrar no mar”. De
acordo com minha mente infantil, mas já suficientemente bem informada, leões
não entravam no mar. Eram animais que habitavam savanas, regiões áridas, sem
água abundante. Meu irmão mais velho então me explicou: “Leãozinho é uma
pessoa, um cara”. Aquilo me provocou um sentimento de decepção, uma sensação de
que o mundo era muito mais complexo e estranho do que imaginava aquele garoto
ingênuo, incapaz de perceber o conteúdo nitidamente gay daquela canção de
louvor a um homem por quem o autor parecia irresistivelmente apaixonado. Poucos
anos depois, já no colegial, apelidei uma colega de Leãozinho, e usava a canção
e o apelido para declarar a ela a minha paixão tímida e inaudita.
Caetano sempre esteve relegado a um segundo plano lá em
casa. O gênio indiscutível era Chico Buarque, e através dele a minha inocência
foi sendo aos poucos reduzida a pó. Chico tocava fundo em mim com suas canções lancinantes,
com seus versos que fincavam estacas de maturidade naquele cérebro
infanto-juvenil. “Leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a
saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu”. Era óbvio que aquilo
queria me dizer alguma coisa essencial, embora eu só fosse compreendê-la em sua
totalidade muitos anos mais tarde. Mas, enfim, Chico povoou a minha infância.
Caetano, não. Lembro do meu pai desqualificando sem meias medidas a poesia do
filho de Dona Canô: “Caetano só canta aquelas besteiras, tipo ‘eu tomo uma
Coca-Cola, ela pensa em casamento’”.
Talvez tudo isso tenha contribuído para que Caetano Veloso chegasse
tão tarde até mim. Logo agora, que ele está ancorado na sensatez inquieta dos
seus 70 anos. Eu, por minha vez, descubro aos 42 anos que estou diante de um
gênio. De um poeta com profunda sensibilidade, capaz de formular frases aparentemente
simplórias, mas que soam surpreendentes, verdadeiras, desassossegadas, atemporais.
Alguns de seus discos dos anos 70 são obras-primas incontestáveis: Transa
(principalmente), Muito, Qualquer Coisa, Bicho e tantos outros. Canções
impregnadas de um prazer sensorial que só agora, 40 anos depois de concebidas,
atingiram o alvo. É claro que este texto, embebido em duas garrafas de vinho e
diretamente influenciado pelo que ouço agora, neste início de madrugada, pode
soar um tanto laudatório. Mas o fato é que esse sentimento de revelação tardia vem
me acompanhando de forma permanente nos últimos meses. Caetano simplesmente me
fascina, como em outros tempos fascinou milhares de pessoas.
Confesso que não entendia essa devoção. Achava Caetano
supervalorizado, produto de uma espantosa capacidade de autopromoção. Afinal, o
que havia de genial em frases como “a força da grana que ergue e destrói coisas
belas” ou “que a força mande coragem pra gente te dar carinho durante toda a
viagem que realizas no nada, através do qual carregas o nome da tua carne”?
Bem, havia tudo. Claro que estou chegando atrasado, que o bonde já passou há
muito tempo. Não tive interesse em ouvir os últimos discos de Caetano, e
concordo com a tese do meu irmão de que ele não produziu nada de relevante nos
últimos, sei lá, 20 anos. O fato é que gosto do Caetano que existiu quando era
uma criança. Eu tinha dois anos quando Transa foi gravado, no exílio, fruto de
uma saudade que só hoje apreendo. A saudade de Santo Amaro, do cheiro inconfundível
do Recôncavo, da triste e dessemelhante Bahia, de um país que se encaminhava
sem dó rumo a um futuro sombrio. Uma saudade que, percebo agora, é minha também.
7 comentários:
Olá, Paulinho! Eu sempre achei - e ainda acho - Caetano Veloso um gênio. Ele foi quem melhor incorporou o que havia de melhor nos outros dois gênios baianos, que são fundamentais na Música Popular Brasileira: Dorival Caymmi e João Gilberto. Mas confesso que, nos últimos anos, tenho dado um tempo da música dele. Mas não resisto, de quando em vez, ouvir alguma coisa. A música "Um índio", por exemplo, que está no disco "Bicho", é simplesmente demais. Aliás, não sei se você já reparou, Caetano adora colocar gírias nos títulos dos seus discos: "Transa", "Jóia", "Bicho", "Velô"... Enfim, amigo, belo e oportuno post. O Caetano está prestes a lançar mais um trabalho, chamado "Abraçaço". E como bom marqueteiro que é, o famoso santo-amarense deve voltar à mídia a todo vapor. Vida longa para ele!
Valeu, grande Giovanni
Eu passei muito tempo dando um tempo da música dele, agora estou redescobrindo os discos que fez no seu auge (talvez descobrindo, dado o sentimento de revelação que eles estão provocando em mim). O mais legal, ouvindo esses discos, é perceber a ponte que ele fez entre Caymmi e João, como você citou, e a então vanguarda dos Beatles, Stones, Dylan, etc. E a sonoridade é muito moderna. Transa é um discaço.
Grande abraço, meu velho.
Meu caro, é sensacional ter descobertas tardias, afinal o mais importante é nunca se fechar totalmente para revelacoes. E ate quebrar alguns preconceitos. Adoro Caetano e so fui mergulhar em Chico recentemente. Caminhos inversos. Gosto ate de algumas coisas recentes que Caetano fez. Na epoca do Folha, entrevistei-o duas vezes, uma delas com um resultado bem bacana. Abracao!
Verdade, Léo, é fundamental se manter atento a novas descobertas. E o legal neste caso de Caetano é o fato de ele ser um velho conhecido, embora nunca tenha sido um amigo íntimo. Nunca o entrevistei, o que é uma pena.
Grande abraço!
Paulinho, em junho último, coloquei no Notícias da Paulicéia um post sobre o disco Transa que, realmente, é um discaço. Caso não tenho conferido, é só acessar o endereço abaixo:
http://noticiasdapauliceia.blogspot.com.br/2012/06/transa.html
Abração,
Claro que li, meu velho. Vou aproveitar e dar uma lida novamente.
Valeu.
Já que "estamos" falando de Jonh Donne, esse música é baseada em um poema dele:
http://www.youtube.com/watch?v=ICJugjDnq0I
(http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet206.htm)
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